terça-feira, 31 de janeiro de 2017

(Continuação 13)



«…porque estando(…) metidos ao mar huns escabrosos penhascos, a que chama Leixoens o vulgo; por mais que as tempestades embravecidas ostentem nelles com encapellada inchação e horrorosos deliquios, nunca nelles se vio haver naufragio, antes sim seguro asylo a toda a embarcação, que de proposito encaminha o rumo a este surgidouro admiravel, para salvar-se de todo, o que de outra sorte seria infallivel estrago, e notorio perigo, conseguindo deste modo bonança na mais furiosa tormenta.»
António Cerqueira Pinto, In: História da Prodigiosa Image..., 1737


“Quis Deus ou a Natureza que na foz do rio Leça, a meio quarto de légua da costa, se elevasse das águas atlânticas um conjunto de rochedos a que os homens deram o nome de «Leixões». Eram o «Espinheiro», a «Alagadiça», o «Leixão» grande e pequeno, como grande e pequeno eram também os rochedos da «Lada». Mas havia também o «Tringalé», o «Galinheiro», o «Cavalo de Leixão», a «Quilha», a «Baixa do Moço», o «Fuzilhão», o «Baixo do Leixão Velho» e muitos outros…
Desígnio divino, ou tão só caprichosos afloramentos graníticos, que os geólogos classificam de grão médio ou gnáissico, os Leixões descreviam um semí-circulo no mar, formando como que um porto de abrigo natural.
Numa costa frequentemente assolada por tempestades e nevoeiros, perigosos dada a existência de abundantes penedias traiçoeiras só visíveis nas vazantes, e que muito contribuíram para o sombrio e nefasto título de «Costa Negra» dado a esta região durante séculos, o refúgio formado naturalmente pela enseada dos Leixões não poderia deixar de escapar à atenção e argúcia dos Homens. E, com efeito, desde a mais recuada Antiguidade é a intervenção humana, mais do que a natural ou a do Criador, que moldará a história de Leixões. Mesmo que, para tal, muitas vezes tenham os mortais enfrentado as adversidades impostas pela natureza, e outras tantas tenham vencido o que pareceu ser a oposição do divino ou, quem sabe, a vontade do Demo.
Não bastavam já os Leixões, também o próprio rio Leça contribuía e reforçava o apelo ao abrigo. Deslizando suave, nesta etapa final da sua viagem, o rio desaguava num convidativo estuário, navegável para montante até uma distância considerável. Tais potencialidades eram já aproveitadas no 1º milénio A.C. quando, muito próximo da sua embocadura, numa elevação da margem esquerda que hoje designamos por Monte Castêlo, surge um importante povoado da Idade do Ferro: o Castro de Guifões, habitado por Brácaros Galaicos. Na base do morro, junto ao rio, desenvolver-se-ia, seguramente, uma estrutura portuária, ainda que incipiente. Os achados arqueológicos recolhidos vêm atestando da chegada – por via marítima - de produtos originários de paragens longínquas.
Colonizado pelos romanos, a partir do século I A.C., o Castro de Guifões pertence agora, e insere-se com assinalável sucesso, no vasto espaço económico e comercial que é o Império Romano. Salvaguardadas pelos Leixões e conduzidas até à elevação onde se implantava este povoado através do rio Leça, as embarcações da época aqui fazem chegar produções agrícolas do sul da Península, conserva de peixe do estuário do Sado, cerâmicas e outras expressões da cultura material de Itália, sul de França, norte de África, oriente mediterrânico… Desta forma, a foz do Leça transformava-se, há já dois mil anos, num importante interface portuário e comercial da região, muito especialmente para os restantes povoados que se implantavam na bacia deste rio ou nas suas cercanias. E, desde então, ao longo da História, não mais a foz do Leça e o seu porto marítimo-fluvial deixaram de possuir tal importância. Por vezes a uma escala regional reduzida, muitas outras influenciando vastas áreas.
Entretanto o domínio romano resultara, igualmente, num povoamento mais disperso e contribuíra para uma maior aproximação das populações ao litoral marítimo e às margens fluviais. Neste contexto, ainda durante os primeiros séculos da nossa Era, iniciar-se-á a ocupação do espaço hoje coincidente com a cidade de Matosinhos-Leça. E se para esta última freguesia, implantada na margem direita da foz do rio Leça, uma vez mais a arqueologia revelou recentemente provas dessa ocupação tão remota, para o caso de Matosinhos, na margem esquerda, é a própria origem do topónimo que, segundo alguns investigadores, está decisivamente associada à época romana e à origem do porto.
Nos documentos mais antigos em que surge grafado o nome de Matosinhos, datados do século X e redigidos em latim, este aparece designado por Matesinus, topónimo que, por si só, é de difícil explicação ou significado.
Contudo, subdividindo a palavra surgem interessantes indícios explicativos da origem do topónimo. Com efeito sinus significava em latim, e muito particularmente para os romanos, recorte no litoral, côncavo na costa… porto de abrigo natural. Ou seja, algo que, como já analisamos, se adaptava perfeitamente à realidade geo-topográfica que os romanos aqui encontraram, devido à existência dos Leixões. De resto, o vasto mundo romano está repleto de topónimos que têm a referida designação sinus na sua origem ou como componente. Um outro exemplo elucidativo, em Portugal, é o de Sines.
Explicada a origem de metade da palavra, resta perceber o significado de Mate. Uma vez que os romanos tinham por hábito baptizar com o nome de divindades, imperadores, heróis ou figuras retiradas da mitologia as principais cidades, portos e outros locais de interesse geo-estratégico que fundavam ou conquistavam, é nesse campo que alguns estudiosos encontraram uma possível e, no mínimo, curiosa explicação. É que, com efeito, existe uma personagem mitológica, filho de Hércules, cuja designação – Amato – poderia facilmente estar na génese do actual topónimo. Matosinhos resultaria assim, como sabemos, de Matesinus e este, por sua vez, poderá derivar de Amato sinus: o porto de abrigo do filho de Hércules.
Porto de abrigo natural que, de facto, durante muitos séculos salvou milhares de vidas de marítimos, mareantes, passageiros e pescadores. Porque, como escrevia Marino Franzini, em 1812:
«talvez seja este o único ponto desta costa que oferece algum abrigo às embarcações acossadas pela travessia; e, em todo o caso, é a única paragem onde as equipagens podem ter esperanças de salvação quando seja inevitável encalhar. Os barcos de pilotos e pescadores quase sempre podem sair ao mar partindo deste ponto, quando pela ressaca é isso impraticável em outra qualquer paragem da costa.»
Mas, de porto de abrigo natural Leixões converter-se-á, no final do século XIX, numa gigantesca estrutura portuária artificial. Num dos mais dinâmicos locais onde a Europa encontra e abraça o Atlântico”.
Fonte – Site: “apdl.pt”



Numa costa muito traiçoeira para a navegação, ficou célebre o naufrágio, ao largo de Leixões, do vapor “Olga”, em 3 de Janeiro de 1879.




Naufrágio do vapor ”Olga”



Soares dos Reis estreou-se como repórter artístico do "Occidente", com o desenho do vapor inglês "Olga" que havia sido abalroado pelo vapor da marinha mercante francesa "Constantin". O "Olga", que sofreu danos irreparáveis, veio a encalhar na praia de Matosinhos, e Soares dos Reis dirigiu-se ao local do sinistro onde registou, em desenho, o acontecimento.




Foz do rio Leça com Matosinhos em fundo - Ed. César Reis



Foz do rio Leça com Matosinhos em fundo



Foz do Rio Leça com vista sobre Matosinhos



Na foto acima o arruamento em frente é a Rua Heróis de França e à direita está o quartel da guarda- fiscal ainda existente.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

(Continuação 12)

Perante este cenário, o cemitério público municipal do Prado do Repouso não podia, mesmo, engrandecer-se. Várias vezes as autoridades civis tentaram acabar com o privilégio de enterramento privativo das Ordens, mas sem sucesso. Em 1851 deram-se até graves tumultos por esse motivo.
O Cemitério do Prado do Repouso foi, assim, o primeiro cemitério público da cidade do Porto.
Nos finais do século XVI, o Bispo Dom Frei Marcos de Lisboa mandou construir uma brévia na Quinta do Prado, outrora no Couto de Campanhã. A quinta foi remodelada em meados do século XVIII, pelo Bispo Dom Tomás de Almeida. Pelo 2º quartel do século XIX, Dom João de Magalhães e Avelar cedeu parte dos seus terrenos para a construção da cerca do Seminário Episcopal. A 13 de Dezembro de 1838, o mesmo Prelado doou o que restava da Quinta para a construção do Cemitério Oriental da Cidade, hoje Cemitério do Prado do Repouso, quando à frente da edilidade estava Luciano Simões de Carvalho. O Cemitério foi inaugurado a 01 de Setembro de 1839 e a cerimónia de abertura centrou-se na transladação dos restos mortais de Francisco de Almada Mendonça, que tinha sido provedor da Santa Casa, entre 1794 e 1804, da capela-mor da Igreja da Misericórdia do Porto para o novo cemitério.
Junto às ruínas do Seminário, edificou-se, apesar do projecto nunca ficar concluído, a capela do Repouso.
Para o largo aberto junto aos moinhos, no contacto entre a parte sul da quinta do Prado, da quinta do Reimão e da quinta da Fraga, onde acabavam as ruas de Gomes Freire e de S. Vítor, levantou-se a porta sul do cemitério. Foi junto a essa porta que e defronte da capela do Repouso que ficaram os restos mortais de Francisco de Almada e Mendonça.



Avenida principal do Prado do Repouso em 1905 - Ed. Photo Guedes



O Cemitério do Prado do Repouso integra uma das melhores colecções em Arquitectura e Escultura existentes na Cidade do Porto, reunindo obras da autoria de Soares dos Reis e Teixeira Lopes.
Destaca-se a capela do cemitério, restos da inacabada Igreja de São Vítor, o mausoléu de Francisco Almada e Mendonça, a capela de Delfim Ferreira, o cruzeiro do antigo Mosteiro de S. Bento da Ave-Maria, e o ossário das freiras do antigo Convento de S. Bento da Ave-Maria, entre os muitos monumentos.



“O dono do terreno escolhido para instalar o cemitério, o bispo D. Manuel de Santa Inês, não cedeu de bom grado o espaço que lhe pertencia. Depois, a obra não atraiu interessados e acabou por ser um mestre-de-obras da própria câmara, Luciano Simões de Carvalho, a tomar conta do projecto. E, por fim, as pessoas não se convenciam da bondade de serem enterradas assim, em terreno descoberto. Num artigo publicado n’O Tripeiro, em 1997, o geógrafo José A. Rio Fernandes, diz que a inauguração do cemitério foi mesmo motivo de uma reunião extraordinária da Câmara do Porto, onde se decidiu que a melhor forma de cativar as boas gentes da cidade para esta nova forma de dispor dos mortos era trasladar para o Prado do Repouso alguém ilustre.
A escolha recaiu sobre Francisco de Almada e Mendonça, filho de João de Almada, um dos responsáveis pelo planeamento urbanístico que mudou a cidade e que fora também provedor da Santa Casa da Misericórdia. A 1 de Setembro de 1839, o cortejo com os restos mortais do primeiro ocupante do Prado do Repouso atravessou a cidade, da Igreja da Misericórdia, na Rua das Flores, até ao novo cemitério, marcando a sua inauguração oficial. 
Ainda seriam precisos alguns anos para que os portuenses se habituassem ao seu cemitério, mas o Prado do Repouso foi-se transformando, aos poucos, num espaço que já não era só para enterrar os mortos, mas onde estes se faziam lembrar através de obras de arte encomendadas a Soares dos Reis ou Teixeira Lopes. 
E, depois, há as lendas, como a que ouvi pela primeira vez numa visita que ali fiz com o jornalista e investigador da história da cidade Germano Silva e em que acabámos a observar, ao longe, o túmulo de Teresa Maria de Jesus, com a sua escultura de São Francisco. Ele contou-me, então, como Teresa fora amada por uma “excêntrica” portuense, que, no dia do enterro, roubou a cabeça da morta, acabando por ser julgada e ilibada por isso — o juiz, benévolo, encarou o roubo de Henriqueta Emília da Conceição como um acto de amor. 
A história tão excêntrica como a sua personagem podia acabar aqui, mas, no túmulo que Henriqueta mandou construir em 1868, continuam a aparecer flores frescas colocadas não se sabe por quem.
Com a devida vénia a Patrícia Carvalho



Como acima é narrado, após a morte de Etelvina, foi cortada a cabeça ao seu cadáver, tendo Henriqueta levado a cabeça para casa, no Largo da Trindade. O caso acabou por se tornar conhecido em Março do ano seguinte, na sequência de uma denúncia. Apesar do escândalo, a opinião pública acabou por aceitar tal paixão.
A 2 de Novembro de 1874 morre, de desgosto, Henriqueta Emília da Conceição, nascida em 1840 mas que tinha envelhecido precocemente após a morte da sua amada Etelvina (ou Teresa Maria de Jesus), em 1868.
Henriqueta foi sepultada no talhão da Irmandade do Terço (de que era devota e antes vizinha) no Prado do Repouso.
Em 1855 a situação dos cemitérios no Porto alterou-se radicalmente, devido à grande epidemia de cólera. As autoridades civis conseguiram fechar os cemitérios privativos que não tinham condições e, paralelamente, mandaram construir, de forma apressada, um novo cemitério municipal: Agramonte.


“A 2 de Agosto de 1832, por motivos de ordem estratégica D. Pedro IV deu ordem para queimar e arrasar a importante casa de campo, muros e árvores da bela quinta de Agramonte, uma das mais formosas e produtivas dos subúrbios do Porto. D. Pedro foi pessoalmente levar a notícia, à viúva de Joaquim Pinho de Sousa e apresentar-lhe as suas desculpas, e assegurar-lhe que seria a primeira a ser indemnizada pelo seu justo valor logo que as circunstâncias o permitissem. Afinal parece que tal nunca sucedeu, apesar de repetidos requerimentos do tutor dos menores. Continuou um monte inculto até ser expropriado, em 1855, por uma quantia “miserável” para se construir um cemitério.” 
Texto coligido por Jorge Rodrigues.



O cemitério foi benzido em 2 de Setem­bro de 1855 e desde logo ficou pronto a ser utilizado. O primeiro cadáver que lá foi enterrado foi o de uma mulher da fregue­sia de Mafamude, em Gaia, chamada Ma­ria Rosa. Tinha 50 anos, era solteira e mor­reu de uma febre tifóide. 
A Capela Geral do Cemitério de Agramonte, cuja construção foi aprovada pela Câmara Municipal do Porto em 24 de Maio de 1866, substituiu a capela original que era de madeira e existia desde a inauguração do Cemitério no ano de 1855. 
A planta da dita capela é da autoria do eng. Gustavo Adolfo Gonçalves e Sousa, Director e professor do Instituto Industrial do Porto. As obras de construção iniciaram-se em 1870/71, sendo inaugurada em 1874. Esta capela foi posteriormente alterada relativamente à capela-mor, que ficou com configuração redonda, saliente em relação ao edifício. Deve assinalar-se que o projecto da capela-mor, para ampliação da Capela, é da autoria do arquitecto José Marques da Silva e datado de 22 de Fevereiro de 1906.
No cemitério são de admirar diversos jazigos, entre os quais o dedicado às vítimas do incêndio do Teatro Baquet em 1888 e o mausoléu do Conde de Ferreira da autoria de Soares dos Reis. Também aqui se encontra o jazigo da família Santos Dumont, onde se encontra sepultada a mãe do famoso aeronauta, Francisca de Santos Dumont.


Monumento às vítimas do incêndio do Teatro Baquet



Conde de Ferreira


O cemitério de Agramonte em finais do século XIX, tornou-se o modelo preferido para os cemitérios mais pequenos da cidade do Porto e arredores, sobretudo pelo facto de prestigiadas Ordens Terceiras da cidade terem estabelecido ali os seus cemitérios privativos (Carmo, Trindade e S. Francisco), que rapidamente se encheram de belos monumentos. Sendo assim, os cemitérios do Prado do Repouso e Agramonte são também verdadeiros "museus da morte".
Após a epidemia de 1855, todos os cemitérios das Irmandades acabaram por ser reabertos, embora fosse já, cada vez menos consensual, a manutenção daqueles que não tinham condições.
Num processo longo e difícil, cada Irmandade foi negociando com a Câmara do Porto a aquisição de secções privativas nos cemitérios municipais, tendo sido a Misericórdia do Porto a primeira a fazê-lo, adquirindo terreno no Prado do Repouso para esse efeito. No Prado do Repouso também foram depois construídas as secções privativas da Ordem do Terço e da Caridade e da Confraria do Santíssimo Sacramento de Santo. Ildefonso.
Com a reestruturação do Cemitério de Agramonte, em 1869, as outras Ordens da cidade estabeleceram também ali os seus cemitérios privativos. Dos cemitérios católicos privativos já existentes, só os da Lapa e do Bonfim se mantiveram em local próprio, porque, apesar de não serem públicos, eram já cemitérios com concepções urbanísticas modernas (sobretudo o da Lapa), em locais elevados e razoavelmente afastados de habitações. Note-se que, no Porto, existem actualmente oito cemitérios ou secções privativas em funcionamento, o que é caso único no país.



Funerais

 “Uma das coisas que contribui para a melancolia do Porto é o antigo costume dos enterros à noite; este uso, especialmente de Inverno, dá uma impressão tristíssima a quem não estiver habituado a ele. Ao anoitecer, disfruta-se muitas vezes na Praça D. Pedro um espectáculo deveras lúgubre: os sinos dos Congregados dobram, atroando os ares; dentro da Igreja, grande quantidade de pessoas até à porta, com tochas acesas, assiste aos responsos; rapazinhos do Colégio dos Órfãos com seus trajes eclesiásticos, entoam cânticos fúnebres; a eça elevada deixa distinguir, mesmo da rua, o cadáver deitado no caixão, que tem as paredes desengonçadas para os lados; na rua a berlinda espera o corpo para o conduzir ao cemitério; na praça, olhando para o lado de Santo António ou para o dos Clérigos, vemos enterros subindo pelas acidentadas ruas e, à distância, o aspecto das duas longas fileiras de tochas, mexendo e treme tremeluzindo, dão-nos a impressão de que aqueles tristes cortejos têm pressa de desaparecer para sempre na eternidade. Os caixões das crianças, quer sejam conduzidos em berlinda, quer sejam levados à mão, têm sempre a tampa aberta, vendo-se o “anjinho” enfeitado de flores e muitas vezes deitado sobre grande quantidade de amêndoas e confeitos! Numa ocasião acompanhámos um enterro a pé, como são quase todos, ao Cemitério do Repouso; a noite estava chuvosa, relampejava, quando atravessamos a rua principal, por entre as duas filas de túmulos, e assistimos ao acto profundamente tétrico de meter o caixão na cova à luz de tochas, julgámo-nos transportados ao Hamlet de Shakespeare, lembrando-nos com saudade do nosso grande actor António Pedro, que tão magistralmente desempenhava o papel de coveiro.
Os enterros de dia são raros. Os cemitérios do Porto são verdadeiros jardins com grande abundância de mimosas flores, muito bem cuidados, numa ordem e asseio irrepreensíveis e possuindo artísticos e grandiosos mausoléus. As coisas fúnebres, parece não incomodarem muito os portuenses; pois se até há bilhetes postais ilustrados com vistas de ruas de cemitérios! Francamente achamos a ideia extravagante. Quem escreverá nestes postais? Talvez algum genro a saber notícias da saúde da sogra..."
Texto de um visitante sulista, In O Tripeiro Volume 2, 20/5/1910 



Carro funerário da Santa Casa da Misericórdia do Porto (1899) – Ed. Aurélio da Paz dos Reis



Carro funerário (1899) – Ed. Foto Guedes



domingo, 29 de janeiro de 2017

(Continuação 11) - Actualização em 10/05/2019


Desde tempos recuados que se conhecem documentos, mencionando locais, nos quais, os portuenses enterravam os seus mortos.
Assim, para os lados da Sé, adossado à Catedral, existiu o cemitério do Bispo.
Anexo ao Hospital Rocamador, conhece-se a existência de um outro cemitério, que servia essa unidade hospitalar.
As pessoas de posses, como se sabe, durante muitos anos, eram enterradas nas igrejas, situação que, estava vedada para todos, no caso de morte por lepra.
Para estes casos, houve um cemitério junto da capela de Santo André e de Santo Estevão, para as bandas do Largo da Ramadinha, onde terá existido um cruzeiro do Senhor da Consolação, que servia a gafaria de S. Lázaro, ali perto. Aquela gafaria tinha vindo de junto da igreja de S. Nicolau, lá para os lados da Ribeira.
O Porto também teve o seu cemitério catacumbal que, actualmente, pode ser visitado, na cave da Ordem Terceira de S. Francisco.
Cemitérios de comunidades próprias houve alguns, destacando-se o dos Ingleses, que começaram por dar descanso perpétuo aos seus entes queridos, na margem direita do rio Douro, mas, que, acabaram por levantar no Campo Pequeno, actual Largo da Maternidade Júlio Dinis, o chamado Cemitério dos ingleses.
Por outro lado, sabe-se que os Judeus tiveram o seu cemitério no Monte de Monchique.
Até 1732, ano em que se começou a levantar a Igreja dos Clérigos, o terreno em que ela seria erigida, servia de cemitério para quem era executado na forca.
Essa área conhecida como Cerro dos Enforcados ou Adro dos Enforcados, compreendia o cemitério e uma pequena capela em honra do Senhor dos Aflitos, que seriam transferidos aquando da construção da igreja dos Clérigos, para junto da Rua dos Carrancas, actual Rua Dr. Alberto Aires de Gouveia, numa área hoje situada, junto do Hospital de Santo António.
Seria para este chão que seriam enterrados os corpos dos doze mártires da Pátria, mandados executar pelo usurpador do trono, D. Miguel, em 7 de Maio e 9 de Outubro de 1829, na Praça Nova, por terem tomado parte na revolução de 16 de Maio de 1828 e pertencerem ao Partido Constitucional.


"A revolução, sejamos justos, começou em Aveiro e teve como seu grande impulsionador, a veneranda figura de Joaquim José de Queirós, avô do grande Eça. Mas foi no Porto que eclodiu. E não durou muito tempo.
Logo a 14 de julho as tropas miguelistas entraram no Porto, dominaram a revolta e D. Miguel assinou uma carta régia através da qual instituía “uma alçada especial (tribunal de exceção) para processar e julgar os indivíduos, direta ou indiretamente, implicados na Revolução Liberal de 16 de maio…”
Como resultado das investigações foram detidos cerca de cinquenta doze dos quais viriam a ser condenados a morrer na forca que, para esse efeito foi montada bem no centro da praça Nova".
Cortesia de Germano Silva, In revista "Visão" 18 de Agosto de 2018


Depois de terem sido decapitados e de estarem em macabra exposição durante três dias, foram os seus despojos enviados para o Adro dos Enforcados no chão do Robalo.
Os dois patíbulos usados nas execuções estiveram montados na Praça Nova durante três anos, até à chegada de D. Pedro.
Os doze executados foram:

- António Bernardo de Brito e Cunha, contador da Fazenda, natural do Porto;
- Bernardo Francisco Pinheiro, capitão de ordenanças, natural da Feira;
- Clemente da Silva Melo, juiz de Fora da Feira, natural de Aveiro;
- Francisco Manuel Gravito da Veiga e Lima, desembargador da casa da Suplicação; 
- Francisco Silvério de Carvalho, fiscal dos tabacos, natural de Aveiro;
- Joaquim Manuel da Fonseca Lobo, tenente-coronel de Caçadores nº 11, natural do Porto;
- José António de Oliveira Silva Barros, empregado dos Tabacos, natural do Porto; 
- José Maria Martiniano da Fonseca, Bacharel em Direito, Natural da Madeira; 
- Manuel Luís Nogueira, juiz de Fora de Aveiro, natural do Porto;
- Vitorino Teles Medeiros, tenente-coronel das Milícias da Lousã, natural de Coimbra.

Estes dez mártires foram sacrificados em 7 de Maio e em 9 de Outubro, seguir-se-iam:

- Clemente Morais Sarmento, sargente de Caçadores nº 10;
- João Ferreira da Silva Júnior, filho-família, natural de Albergaria-a-Velha

Passados sete anos, em 7 de Maio de 1836, os seus restos mortais foram transladados para um jazigo especial, mandado construir no átrio da Santa Casa da Misericórdia, à Rua das Flores e dali transladados, 40 anos depois, para um mausoléu mandado construir no cemitério do Prado do Repouso, onde se mantêm.
Alberto Aires de Gouveia (1867-1941), a personalidade relacionada com o topónimo desta rua, foi um distinto pintor portuense que nasceu na Rua da Restauração, no Porto, a 3 de Março de 1867, no seio de uma família portuense ligada ao negócio dos vinhos.
À face daquela rua, passou a existir a Capela do Senhor dos Aflitos que substituiu um cruzeiro da mesma devoção que, primitivamente, ocupou esse lugar e que tinha anexo um pequeno cemitério. 
Os enforcados passariam, então, a ter enterramento, numa área atrás da capela.
Em 1845, seria solicitado por Joaquim José da Costa Machado, uma licença de construção, que obteria o nº 259/1845, para os terrenos do Adro dos Enforcados ou Adro dos Justiçados.
Esse prédio acabaria por ser vendido a um súbdito britânico, que o habitou durante alguns anos e, mais tarde, c. 1900, a um tio do escritor Pedro Ivo, de seu nome Joaquim Maurício Lopes. 
Por necessidades urbanísticas, o templo acabaria por ser, então, transferido para o interior da cerca do Hospital de Santo António.
No interior do hospital esteve a capela, até que foi demolido, tendo sido, entretanto, novamente levantado e, hoje, serve de capela mortuária do referido hospital.
Há muito que não existe qualquer construção nos terrenos que foram cemitério e, hoje, eles fazem parte da área envolvente ao Hospital Santo António.



 “Luís Pinto de Sousa Pereira de Meneses, último representante, dizem os livros de linhagens, da nobre casa do Cutelo, em Miomães, no concelho de Resende, adoeceu e foi internado num dos pavilhões do Hospital de Santo António. Isto aconteceu por meados do século XIX quando, na cerca daquele hospital, havia dois pavilhões, um de primeira outro de segunda classe, para quem quisesse alguma privacidade e, naturalmente, tivesse dinheiro para pagar a estadia. O que era o caso do nosso fidalgo que foi admitido no pavilhão de primeira.
De uma das janelas do seu quarto avistava a capela do Senhor dos Aflitos e foi a este que fez uma singular promessa: se saísse do hospital completamente curado daria ao Senhor dos Aflitos o dinheiro equivalente ao seu peso em prata. E o fidalgo saiu do hospital curado. Não sabemos a quem atribuir o mérito da cura. Se aos médicos, se à interceção no caso do Senhor dos Aflitos. Mas de uma coisa temos a certeza: o tal fidalgo de Miomães cumpriu a promessa. Mas pagou em prestações.
Quando se foi pesar, logo após a saída do Hospital, verificou, naturalmente constrangido, que o seu peso excedia, muito, o previsto. O valor da promessa subiu assustadoramente e o Luís Pinto de Sousa não tinha disponível o dinheiro suficiente para pagar a promessa. Mas não havia problema. No dia 27 de Maio de 1872, no cartório do tabelião Francisco Pereira Pinto, perante a Santa Casa da Misericórdia do Porto, que administrava o hospital e zelava pelo culto na capela do Senhor dos Aflitos, constituiu-se devedor da quantia de 1 996$800 reis, importância em que foi avaliado o seu peso em prata. A dívida não foi saldada de uma só vez”.
Com a devida vénia a Germano Silva



Capela do Senhor dos Aflitos – Desenho de Gouveia Portuense


Capela do Senhor dos Aflitos na actualidade



Um outro cemitério existiu, ainda episodicamente, bem perto das Malvas, mais propriamente em frente à Porta do Olival. O padre Baltasar Guedes, num testamento, faz referência ao cemitério perto do Recolhimento do Anjo e a um “outro cemitério novo” entre as torres da Porta do Olival.
Este “Cemitério da Graça” parece ter tido grande clientela, como dá conta a notícia seguinte.

“Afirmam-nos que o acanhado espaço daquele cemitério não comporta o enterro de tantos cadáveres que aí afluem, mas é certo que eles para lá entram, que lá se enterram e que nunca faltam sepulturas.”

In jornal “O Puritano”, de 22 de Março de 1848 – 4ª Feira


Para os Cristãos, fora os enterramentos para alguns poucos, dentro das igrejas e nos conventos, foram desenvolvidos espaços exteriores anexos a esses templos, sendo muitos deles portadores de cemitérios, como são exemplo a Igreja do Bonfim, a Igreja da Lapa, a Igreja de Paranhos, a Igreja de Ramalde, etc.
O adstrito à Igreja de Santo Ildefonso, entretanto encerrado, ainda existia em 1869.
O Dr. Eugénio de Andréa da Cunha e Freitas, numa interessante monografia que escreveu sobre o Convento dos Lóios, termina um dos capítulos da seguinte maneira:

"… agora, na Casa de Deus, em vez dos honrados frades de Santo Elói, estão os gordos e opulentos senhores da Finança e da Indústria, perturbando, na febre do negócio e do lucro, o eterno descanso de tantas cinzas veneráveis que ali jazem…" 

Relativamente ao convento dos Lóios, diga-se, por exemplo, que em 1808 o corpo do general D. Francisco Taranco e Lhano, comandante da divisão da Galiza que ocupava o Porto, foi sepultado no jazigo que o visconde de Balsemão (o do palacete da Praça de Carlos Alberto) tinha na igreja dos frades Lóios. Durante a usurpação de D. Miguel também ali terão sido guardados os restos mortais do general Bernardo da Silveira. Em 1838, a igreja foi demolida por estar em ruína e ser uma ameaça pública. Quando se tentava saber o que fora feita do túmulo do Balsemão e dos cadáveres que lá estavam, um cronista da época (Peres Pinto) não teve dúvida em afirmar que:

“essas ossadas e entulhos estavam a descansar no aterro da praça ou mercado do Bolhão…" 



Mas há notícias de muitas outras sepulturas no corpo da igreja e na cerca do convento dos padres Lóios, muitas delas, de difícil localização, como nos fala o texto seguinte. 


"Na casa do Capítulo, junto ao claustro" foi sepultado D. Manuel de Sousa, que foi arcebispo de Braga; Filipe Gonçalves, cidadão do Porto, "morador defronte da Porta do Olival, da parte de dentro", teve sepultura em Santo Elói onde instituiu um morgado a que vinculou as suas casas da "Travessa que vai dos Coronheiros (actual Rua da Vitória) para a Rua das Flores. Ao pé de um altar colateral, do lado do Evangelho, esteve sepultada D. Maria… mulher do dr. Estêvão Monteiro da Costa a qual morreu em Junho de 1693; e "no cruzeiro, junto às grades" ficava a sepultura, coberta com lâmina de latão e com as armas dos Correias de Mariz, de Francisco Correia de Mariz. António da Costa, barbeiro e sangrador, morador na Rua dos Canos (a parte da Rua das Flores que vai da Praça de Almeida Garrett até à Rua de Trindade Coelho) para ser sepultado em Santo Elói deixou ao convento o seu casal da Quinta, em S. Cosme, Gondomar. 
A pressão demográfica e as questões higiénicas, num contexto ideológico Iluminista, foram os principais factores que fizeram com que, a partir do século XVIII, algumas vozes se levantassem contra as inumações no interior das igrejas. Em Portugal, as primeiras tentativas legislativas no sentido de acabar com os enterramentos nas igrejas não deram resultados, muito porque o processo de laicização da sociedade portuguesa estava bastante retardado em relação a outros países europeus. Assim, foi necessário que muita tinta corresse até que os cemitérios públicos portugueses fossem oficialmente criados, em 1835. Porém, existiram experiências anteriores e o Porto, como em quase tudo nessa época, foi pioneiro na criação de cemitérios fora das igrejas.
Em 1833, o Cerco do Porto gerou uma situação extremamente difícil de salubridade na cidade e favoreceu o surgimento duma epidemia muito mortífera: o cholera morbus. Esta rapidamente lotou os locais de enterramento, facto agravado pelos soldados que iam morrendo nas investidas dos Miguelistas. Perante este cenário, foi necessário recorrer ao chão de algumas igrejas que nem sequer estavam totalmente construídas (como a da Trindade) e aos terrenos anexos de outras, para sepultar tantos cadáveres.
Em 25 de Junho de 1833 a regência do reino oficiou ao vigário do bispado do porto os locais que no futuro serviriam de cemitérios públicos.
Esses locais eram os que se seguem: a cerca do mosteiro de Santo António da Cidade servindo as freguesias de Santo Ildefonso e a Sé; a cerca do convento de S. Francisco para S. Nicolau; a cerca do convento de são João Novo servindo Miragaia; e a brévia dos Beneditinos de Cedofeita no sítio do Bicalho servindo Massarelos.
Esta brévia, de que hoje só resta uma fonte e um poço muito bem conservados está numa propriedade pertencente a Carlos Albino Ferreira Bastos que a herdou do pai que por sua vez a tinha comprado a um inglês.
Naquele mesmo ano, a Mesa da Irmandade de Nossa Senhora da Lapa pediu a D. Pedro IV que autorizasse a construção de um cemitério privativo. A Mesa poderia ter em mente um mero terreno anexo temporário para sepulturas. Mas todo o processo de construção do posterior Cemitério da Lapa parece mostrar que, já em 1833, a Irmandade da Lapa pretendia um cemitério "ao moderno". Ou seja, convenientemente murado, enobrecido com portal, com locais próprios para a construção de monumentos, tal como se fazia já há algumas décadas em Paris, cidade modelo para quase tudo na época. Por isso, o Cemitério da Lapa é considerado o cemitério "moderno" mais antigo do Porto, mesmo não sendo público, até porque foi criado antes do decreto de 1835. Contudo, como situação de transição, foi necessário estabelecer um cemitério interino, por detrás da capela-mor da respectiva igreja. O Cemitério da Lapa propriamente dito só foi oficialmente benzido no Verão de 1838, tendo os primeiros monumentos surgido em 1839.
Em 1 de dezembro de 1839 procedeu-se à bênção solene do cemitério do Prado do Repouso, com enterro, de novo de Francisco de Almada e Mendonça, que tinha falecido em 1804. A trasladação deu-se para vencer a relutância das pessoas ao novo cemitério. Como estava inverno com muita chuva e ventania, o bispo Manuel de Santa Inês apanhou uma constipação de que nunca se curou”.
Com a devida vénia a Germano Silva

A brévia dos Beneditinos de Cedofeita, acima mencionada, ficava na área, que na Rua do Bicalho, está situada nas traseiras do antigo Frigorífico do Bacalhau.
O autor do texto anterior, Germano Silva, ter-se-á equivocado, pois segundo Geraldo J. A. Coelho Dias, no seu "Glossário Monástico-Beneditino", a brévia em causa pertenceu aos monges beneditinos do Mosteiro de S. Bento da Vitória.


In Glossário Monástico-Beneditino



Também, de acordo com o texto anterior, o cemitério da Lapa começou em 1833 a tomar forma com instalações atrás da capela-mor, de modo interino.
Com funcionalidade e oficialmente arrancou com a bênção, em 1838.
O actual teve bênção em 1860.


“Amanhã, 22 de Abril, de tarde, inaugura-se o novo cemitério, que a irmandade de Nossa Senhora da Lapa mandou construir, junto do antigo, a fim de haver o necessário espaço para enterramento dos irmãos.”
In o jornal “O Amigo do Povo”, de 21 de Abril de 1860 – Sábado

“Pelas 5 horas e meia da tarde de ontem, procedeu-se à bênção de um novo Cruzeiro, levantado no cemitério da irmandade da Lapa.”
In jornal “O Comércio do Porto”, de 25 de Julho de 1874 – Sábado

No cemitério da Lapa repousam os restos mortais de Camilo Castelo Branco, no jazigo da família Freitas Fortuna, homem de negócios de posses e amigo de todas as horas do romancista.
Em carta a datada de Abril 1886, o escritor rogou a João Freitas Fortuna que lhe desse a última guarida.


“Eu peço que conduzam as minhas cinzas na mão de uma criança, para assim significarem a pequenez a que me reduziram as enormes angústias. A desgraça que agigantou o grande fardo teutónico fez de mim o pigmeu da miséria. Ele e eu, todavia, somos dois grãos de areia envoltos no vagalhão da morte”.
Camilo Castelo Branco


A última morada de Camilo Castelo Branco – Ed. Lucília Monteiro, In jornal EXPRESSO



O Prado do Repouso, durante cerca duas décadas permaneceu pouco moderno. De facto, nesta vasta quinta, parcialmente transformada em cemitério, apenas iam sendo sepultados os portuenses mais pobres. Os cidadãos abastados, se a sua mentalidade era mais "esclarecida", preferiam ser sepultados na Lapa (podiam tornar-se irmãos no próprio dia em que compravam o terreno). Se fossem mais "conservadores", talvez preferissem ser sepultados nos cemitérios das várias outras Ordens e Irmandades existentes na cidade. Estas possuíam cemitérios já no exterior das suas igrejas (cumprindo parcialmente o decreto de 1835), mas ainda junto a elas e sem qualquer ordenação espacial moderna.
Excepção foi o privativo Cemitério do Bonfim que, apesar de ter sido estabelecido em 1849/50, junto à respectiva igreja, mereceu uma organização mais moderna. 
O cemitério seria benzido a 12 de Janeiro de 1851.
Acrescentado um novo campo santo, recebeu a respectiva bênção a 26 de Maio de 1879.

“Apesar do mau tempo, sempre teve lugar ontem, 12 de Janeiro, a bênção do cemitério da freguesia do Bonfim.”
In jornal “O Ecco Popular”, de 13 de Janeiro de 1851 – 2ª Feira

“Verifica-se depois de amanhã, 26 de Maio, a bênção do novo cemitério da irmandade do Senhor do Bonfim”.
In Jornal “O Comércio do Porto”, de 24 de Maio de 1879 - Sábado


sábado, 28 de janeiro de 2017

(continuação 10) - Actualização em 14/09/2020

“No relatório da gerência da Câmara Municipal do Porto, da presidência do visconde de Lagoaça, referente ao biénio 1858/59, leio este trecho: "Na freguesia de S. João da Foz fizeram-se consideráveis melhoramentos, como no Largo do Castelo, Rua de S. Bartolomeu e na maior parte da Rua da Senhora da Luz, tudo pelo sistema de macadame". 
O projeto para o arranjo de toda a zona envolvente do castelo de S. João da Foz do Douro é, efetivamente, de 1858. Nesse ano, a 16 de dezembro, para sermos mais concretos, a Câmara do Porto oficiou ao procurador-geral da Coroa a quem pedia "um decreto que a autorizasse a levar a efeito algumas expropriações de terrenos compreendidos na esplanada do castelo para que nos terrenos expropriados se leve a efeito um boulevard", assim mesmo, à francesa. Em português diz-se bulevar que significa ampla avenida ladeada de árvores.
Como se sabe, as ordenações militares portuguesas proibiam, desde os começos do século XVIII, a construção de casas e de quaisquer outros edifícios em terrenos que circundavam as chamadas praças de guerra em que estavam incluídos os castelos, os fortes, os fortins e as fortalezas.
Mais: nos campos adjacentes a essas praças não era sequer permitido lavrar, semear ou plantar, fosse o que fosse. Mas, por meados do século XIX, essas leis estavam ultrapassadas e a Câmara do Porto, com o argumento de que naquele tempo a esplanada do Castelo era, na estação dos banhos, o mais concorrido local da Foz do Douro, queria modernizá-la. E foi isso que fez.
Cinco anos depois, a Foz, no verão, era uma das zonas da cidade mais frequentadas pela burguesia portuense e por famílias provenientes da região duriense. Já lá existia, desde 1835, o Hotel Boa-Vista que em 1863, a fazer fé numa crónica do "Jornal do Porto" de agosto desse ano, era um dos quatro centros de conversação que havia na Foz daquele tempo. Os outros três, segundo o referido jornal, eram a praia, pela manhã; a Cantareira, pelo entardecer; e a botica a qualquer hora do dia.
O cronista especificava: "Na praia fala-se de banhos e de cada um; na Cantareira diz-se que a Foz é uma terra estúpida e que acabará um dia sufocada em sensaboria e poeira; no hotel ao redor da mesa do bilhar discutem-se as tacadas, os truques e as carambolas; e na botica contam-se as vítimas do garrotilho".
A farmácia, entretanto desaparecida, ficou célebre, também, por causa da ação cívica e cultural que o seu proprietário desenvolveu na zona. Foi ele o conhecido Francisco Amorim de Carvalho, fundador, na Foz, de um clube a que foi dada a curiosa denominação de Rigollot. Era frequentado pelas mais altas figuras da cultura, da política e da sociedade. Nos últimos anos do século XIX passaram pelo Rigollot ministros, professores catedráticos, titulares, militares de alta patente e até magistrados. O barão de Paço Vieira, que foi juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, chegou a desempenhar as funções de presidente do Clube Rigollot.
O arranjo a que se procedeu nos terrenos que envolviam o castelo de S. João da Foz do Douro conduziu ao desaparecimento do fosso que rodeava a fortaleza.
Já no século XX os melhoramentos na esplanada do Castelo prosseguiram. Em 17 de julho de 1907, ainda, portanto, no tempo da monarquia, o Ministério da Guerra oficiou à Câmara do Porto informando-a de que estava autorizada a dar continuidade do ajardinamento do Passeio Alegre até à esplanada do Castelo. Satisfazia-se um pedido que havia sido feito pela edilidade. Mas havia mais dois. E quanto a esses o Ministério disse o seguinte: "Quanto à construção de um campo de ténis e de outro de futebol, o assunto vai ser estudado". Pelos vistos chegou a ser projetado para a esplanada da Foz um campo de futebol. O de ténis veio a concretizar-se. 
Ali muito perto do castelo, ao longo da costa marítima, estende-se a Avenida do Coronel Raul Peres. No desempenho dessas funções, o coronel Raul Peres deu continuidade ao arranjo urbanístico que se continuou a fazer na esplanada do Castelo. A evocação do seu nome na toponímia local deve ser vista como um simples ato de justiça.
No gaveto da Rua da Senhora da Luz com a Avenida do Coronel Raul Peres, onde agora se ergue um moderno mas inestético imóvel, existiu uma das mais célebres pastelarias do Porto: a Casa Brasileira onde, nos idos de quarenta e cinquenta do século XX, se reunia o melhor da sociedade portuense daquele tempo. Era ali que os banhistas, depois do banho da tarde, iam tomar o seu chã com torradas. A esplanada, que ficava na frente do edifício, era o local preferido pelos frequentadores da casa para os seus chás das cinco. O estabelecimento ostentava na frontaria o nome do proprietário: Carlos Teixeira da Costa, avô de Jorge Nuno Pinto da Costa, o presidente do Futebol Clube do Porto”.
Com a devida vénia a Germano Silva




Esplanada do Castelo, em 1907 - Ed. Guia Ilustrado da Foz, de Joaquim Leitão




Da esquerda para a direita, é possível observar a Confeitaria Brasileira, Mercearia Primavera e Alfaiataria High-Life. De notar que a Confeitaria Brasileira, criada por Carlos Teixeira da Costa, quando este regressou do Brasil, veio a mudar-se, mais tarde, em 1911, para edifício próprio, na esquina da Esplanada do Castelo, com a Rua da Praia, onde esteve com a designação de Casa Brasileira.
 
 
 
 

A confeitaria de Carlos Teixeira da Costa, já na esquina das ruas da Senhora da Luz e da Praia
 
 
 
O carro eléctrico da foto acima com o nº 125 será um Brill-23 (23 lugares sentados).
A linha 18, cuja placa de identificação o carro eléctrico ostentava, era herdeira duma primitiva linha 18, assim começada também a identificar a partir de 1912, mista, a vapor, entre a Boavista e Matosinhos, via fonte da Moura e Cadouços e eléctrica entre a Praça da Liberdade e a Boavista.
Em Novembro de 1914, a tracção a vapor foi eliminada e aquela rota, via Foz (Cadouços), fechada.
Por esta ocasião, o número da linha 18 desapareceu.
Os locais servidos por aquela linha 18 passariam a ser visitados pelas linhas 2 e 2/.
Porém, a linha 18, reapareceria, desde 1934, durante a realização da Exposição Colonial do Palácio de Cristal, com uma nova rota via Palácio, Rua Júlio Dinis e Boavista.
Por isso, a foto acima, será posterior ao ano de 1934.




Casa Brasileira - Ed. P.C.


Perspectiva actual da foto anterior - Fonte: Google maps


Grupo de senhoras na Esplanada do Castelo junto da "Adega Vista Alegre", em 1928 - Fonte: AHMP


Quanto ao local da foto acima, ela foi obtida próximo da Casa Brasileira (que se divisa em fundo, à esquerda), no gaveto da Rua da Senhora da Luz com a Rua da Praia, estando as senhoras voltadas para o Castelo de S. João da Foz.
À direita da Adega Vista Alegre, a poucas dezenas de metros, encontraríamos o Cine-Foz.






Rua da Senhora da Luz


Cine Foz - In "portoarc.blogspot"

O edifício da foto acima, com o logradouro encostado ao que apresenta uma varanda, é o Cine Foz.




Farol da Senhora da Luz e Ermida da Senhora da Luz


O Farol da Senhora da Luz é um farol português, já desactivado, classificado como Imóvel de Interesse Municipal (IIM), que se localizava no Monte da Luz, lugar privilegiado, cuja vista se estende da barra do Douro até Espinho, na freguesia da Foz do Douro. O Farol ficava ao cimo da actual Rua do Farol.
Foi construído no cimo do Monte da Senhora da Luz, junto da Ermida da Senhora da Luz, à época existente no mesmo local, mandada construir pelo bispo D. Miguel da Silva em 1536, numa torre na qual foram colocadas 3 candeias para ajudar à navegação dos mareantes que demandavam o rio Douro. 
Em 1680, estando a capela em ruína, foi recuperada com as dádivas de mercadores do Porto, sendo o Farol da Senhora da Luz, mantido pela boa vontade da confraria do mesmo nome.
Em 1 de Fevereiro de 1758, por alvará do Marquês de Pombal é determinada a construção de um farol, no mesmo local, devido às dificuldades de entrada no Rio Douro.
O farol era constituído por uma pequena torre hexagonal no cimo de um torreão quadrangular, no lado Oeste de um edifício de dois andares, encimado por uma lanterna verde, hoje, já retirada, e substituída por um telhado.
Em 1761, estava construído e já dotado de uma estrutura capaz de lhe granjear a designação de farol, sendo assim, o primeiro farol que existiu na costa portuguesa.
Em 1814, foi destruído por um raio, mas foi recuperado e sucessivamente modernizado.
Durante as lutas entre liberais e miguelistas foi o local, bateria de guarnição daqueles e foi completamente destruído e recuperado, posteriormente.
A importância do farol durante o conflito foi imensa, já que era pelo porto de Carreiros, sobranceiro ao farol, que os abastecimentos ao Porto eram feitos, pois, o rio Douro, devido à tomada de Gaia pelos miguelistas, ficou intransitável.
Quanto à Ermida da Senhora da Luz seria em 1832, desactivada, mas, no entanto, algumas dezenas de anos após, a romaria à Senhora da Luz ainda se realizava e era muito concorrida.
Em 1865, foi substituído o antigo aparelho com candeeiros de Argand e reflectores parabólicos, por uma óptica de Fresnel de 4ª ordem.
Em 1913, 18 de Dezembro, é iniciada uma modernização deste farol, o qual passa a emitir clarões de cinco em cinco segundos, com o alcance de trinta e oito milhas, tendo dirigido estas obras de beneficiação o oficial de Marinha A. Newparth.
Quanto à data da sua desactivação, há algumas divergências. Segundo a Marinha Portuguesa, terá sido desactivado em 1926, devido à entrada em funcionamento do Farol de Leça, outras fontes, porém, indicam o ano de 1945, como o ano da sua desactivação, devido às obras de modernização do Farolim de Felgueiras.




Farol da Senhora da Luz, em 1833 - Ed. J. Villanova


Gravura antiga do farol da Senhora da Luz (ao cimo à direita)



Farol da Senhora da Luz em 1858, observando-se, à esquerda, uma estação semafórica de palhetas ou janelas, existente há dezenas de anos e, à direita, num mastro, uma outra que estava sob a alçada da Associação Comercial do Porto - Ed. Frederick William Flower (prova actual em papel salgado, a partir de calótipo)



Farol da Senhora da Luz, c. 1900 – Ed. Alberto Ferreira–Batalha-Porto; Fonte: CMP, Arquivo Histórico Municipal



Farol da Senhora da Luz, em 1925


Farol de Nossa Senhora da Luz - Casa do farol (antiga torre e a lanterna foram substituídas pelo telhado de quatro águas)


A alguns metros do edifício principal, existe uma pequena torre octogonal, de dois pisos, em alvenaria revestida a reboco caiado de branco, com cinco metros de altura. Possui uma pequena e íngreme escada exterior em pedra, com guardas de ferro. Até meados do século XX, serviu como posto de vigia.
No afloramento granítico, anexo ao complexo, foram recentemente descobertas, um conjunto de gravuras rupestres.






Torre hexagonal (antigo posto de vigia)


Bem próximo, entre a actual Praça de Liège e a Rua do Crasto, corre a Rua do Dr. Sousa Rosa que, antes, foi denominada de Rua do Monte e, posteriormente, de Rua de Lima Júnior e que, veria o seu nome ser alterado no início da década de 1950.
A Rua do Monte já aparece identificada em 1892, na planta de Teles Ferreira, sendo perpendicular à Rua do Crasto e à actual Rua da Agra (assentamento da antiga Ribeira de Gondarém).
Este território fazia parte, então, do Povoado das Areias Altas, onde foi identificada a presença do homem na idade do Bronze Regional.