domingo, 2 de novembro de 2025

25.290 Os Guardas-mores da Saúde, o “Manco de Gaia” e a Casa de Maravedi

 

Guardas-mores da Saúde
 

Antigamente, a função de Guarda-mor da Saúde era exercida por aqueles que, dada a responsabilidade da função, eram por nascimento ou por suas virtudes elementos destacados da sociedade.
O Guarda-mor da Saúde era escolhido por votação pelas autoridades administrativas do concelho, tendo por missão garantir a defesa da saúde pública, assistindo médicos e cirurgiões e outro pessoal que desempenhava serviço em casas de assistência.
Os Guardas-mores da Saúde pertenciam, por norma, às mais destacadas famílias da cidade e consideravam uma honra a sua escolha para o exercício do cargo.
Em tempos de peste, ao primeiro sinal, o Guarda-mor da Saúde providenciava, com os seus auxiliares, para que os pestíferos fossem isolados e entrassem de quarentena exercendo, ainda, a vigilância sobre as tripulações dos navios que aportavam pela barra do rio Douro ao cais da Ribeira e outros, com origem em portos onde grassava a doença.
Neste último caso, era norma içar uma bandeira visível, num mastro colocado na margem do rio Douro.
Assim, a tripulação quando via a bandeira içada no tal mastro, teria que estacionar no meio do rio, em frente a esse local, e esperar a visita efectuada pelos Guardas-mores da Saúde, para fazerem uma inspecção sanitária.
Aquele conjunto mastro/bandeira situado junto do Palácio das Sereias, ao fundo da Rua da Bandeirinha, era conhecido pela “Bandeirinha da Saúde” e o pilar de granito que o suportava teria sido construído, possivelmente, entre 1597 e 1633, pelo pedreiro Bastião Fernandes, tendo sido um importante marco da cidade durante os séculos XVI e XVII, uma vez que protegia a cidade de doenças trazidas de fora.
Para além daquela marca em Miragaia, terá existido uma outra, a “Bandeirinha de S. João da Foz”.
 
 
 

Bandeirinha da Saúde, junto do Palácio das Sereias
 
 
 
Em pleno século XVI, os Guardas-mores da Saúde estacionavam na Casa de Degredo de Vale de Amores (Valdamores, como então se dizia), sob a égide dos frades capuchos do Convento de Santo António de Vale da Piedade e, posteriormente, no Lazareto, situado mais a jusante, no local que, hoje, fica entre a Igreja Nova da Afurada e a Casa dos Pescadores.
Segundo estudos do Dr. Francisco Ribeiro da Silva, a escolha do local da Casa de Degredo, para recolha dos empestados, teria ocorrido em 1598, embora não fosse aquele o único lugar onde se efectuava o interrogatório dos potenciais infectados.
 



Convento de Santo António de Vale da Piedade – Desenho (1835) de J.J. Forrester



 

Vista, actual, desde Monchique, do que restou do antigo convento – Cortesia de Lucília Monteiro, In revista “Visão”

 
 
O controlo sanitário, em tempos de epidemia, era, também, exercido junto das portas da muralha da cidade.
Para o efeito, a Porta do Olival e a Porta de Cima de Vila eram abertas e fechadas todos os dias e, por determinação dos Guardas-mores da Saúde, o porteiro da Câmara fazia chegar a chave daquelas portas a cidadãos previamente escolhidos para o desempenho daquela tarefa.
 
 
 

Porta do Olival, em reconstituição, de Gouvêa Portuense
 
 
 
No caso das Portas da Ribeira e Porta Nova, aquela incumbência era executada por homens pagos, com a obrigação de as manterem fechadas desde o tanger das Avé-Marias até ao raiar do outro dia.
A primeira acomodação dos frades menores, em Vale de Amores (depois, Vale da Piedade), foi numa propriedade contígua à área onde, pouco-a-pouco edificaram o convento, que ocuparam em 1569.
Na sua obra “Os Narcóticos”, Camilo Castelo Branco refere a existência, na margem esquerda do rio Douro, da Quinta de Vale de Amores, que terá pertencido, em tempos de antanho, a Álvaro Gonçalves, que passou à história como “O Magriço” e a quem Camões se refere no Canto VI, estrofe 68, pela participação num torneio medieval, em Inglaterra, em defesa da honra de umas damas.
Pois…Vale de Amores, sendo um lugar recôndito, era propício à presença de namorados e, daí, o nome. Os frades não descansaram enquanto não o converteram em Vale da Piedade.
Algumas pestes ocorridas no Porto e seu termo, no século XVI, ficaram para a história. No acorrer a essas tragédias, à Câmara competia coordenar as acções de socorro que se impunham e suportar as despesas, que costumavam ser compartilhadas pela Santa Casa da Misericórdia.
Uma peste, em 1577, começada em Matosinhos, levou os Guardas-mores da Saúde, à data, Jorge de Babo e Diogo Leite, até àquele lugar.
Tendo surgido dúvidas sobre a própria saúde deles, após a visita referida, seriam substituídos por dois novos Guardas-mores da Saúde, João Cardoso de Miranda e Luís Pinto.
Nos anos de 1598 e 1599, a peste voltaria a picar, no Porto, para além de outras ocasiões, nomeadamente, durante o decorrer do século XVII.
De 30 de Julho de 1657, é o texto que se segue:
 
 
“ … neste dia foi o escrivão, por mandado do guarda-mor da saúde à cadeia da relação do Porto notificar o piloto da barra de S. João da Foz do Douro, Domingos Gonçalves Delicado, que estava preso por trazer o navio francês (que metera dentro da barra) para baixo do lugar de Vale de Amores, onde costumam lançar ferro, até serem visitados pelos guardas mores da saúde…”
Fonte : “Visitas da Saúde”
 
 
 
 
 “Que a justiça do Manco de Gaia te caia em casa”
 
 
Dos muitos guardas-mores da saúde que serviram na cidade do Porto e seu termo, João Corrêa Pacheco Pereira, passou para a posteridade pelo zelo com que exercia o cargo.
Membro da aristocracia nortenha, nascido em 1679, era filho de João Corrêa Botelho (um fidalgo transmontano, descendente do célebre navegador Diogo Cão e do alcaide-mor de Vila Real, Afonso Botelho) e de Mariana Pacheco Pereira, senhora da Casa de Valinho de Beire (sobrinha-neta do Capitão-mor da cidade do Porto, Sebastião Pacheco Pereira).
Portanto, João Corrêa Pacheco Pereira pertencia a duas das famílias portuenses mais importantes: a dos Pacheco Pereira, da Rua de Belmonte e da Quinta da Vilarinha, e a dos Sem (da Torre da Marca).
João Corrêa Pacheco Pereira tinha um defeito físico numa perna, em resultado de uma queda dada em rapaz, quando cavalgava e, por isso, mancava. Ficou como o “Manco de Gaia”.
Todos os dias, o “Manco de Gaia” vinha de Mafamude, da casa da Quinta do Maravedi, onde viveu e morreu (em 1746), para o Porto, para exercer o seu mandato de Guarda-mor da Saúde. O zelo com que exercia as suas funções era de tal ordem, que passou a ser o terror das vendedeiras dos mercados. Produto deteriorado, insalubre ou sem qualidade era mandado atirar ao rio Douro pelo “Manco de Gaia”.
Passados mais de cem anos, o “Manco de Gaia” continuava a ser referenciado pelas vendedeiras da Ribeira, quando lançavam maldiçoes sobre as rivais: “Que a justiça do Manco de Gaia te caia em casa”.
João Corrêa Pacheco Pereira acabou por ser também Vereador da cidade do Porto, Juiz Almotacé e Deputado do Subsídio Militar e, ainda, Capitão de Milícias e Familiar do Santo Ofício.
Seria sepultado em Valdamores, atrás referido, no Mosteiro de Vale da Piedade, onde foi Provincial um seu filho, Frei José de Gaia.
 
 
 
Casa e Quinta do Maravedi
 
 
A casa onde viveu o “Manco de Gaia”, em Mafamude, V. N. de Gaia, ainda existe após recuperação decidida pela Câmara de V. N. de Gaia, que evitou a sua demolição.
A casa apelidada de Casa de Maravedi fazia parte da Quinta de Maravedi, situada no coração de Vila Nova de Gaia, meio caminho entre as Devesas e o Largo Soares dos Reis.
Provavelmente, a sua construção, inicialmente, é do século XIV.
Quanto aos emprazadores (senhorios), por exemplo, o emprazador, em 1701, era o donatário de Gaia-a-Pequena Álvaro Leite Pereira, fidalgo da casa Real, cavaleiro da Ordem de Cristo, morgado de Quebrantões e senhor do paço e quinta de Campo Belo.
 
“A mais antiga notícia que consegui descortinar sobre a quinta do Maravedi remonta a 1577, ano em que, a 20 de Junho, foi emprazada por três vidas a Isabel de Magalhães.
(…) O emprazador de 1704, que se assina Álvaro Leite Pereira e invoca os títulos acima referidos, tinha nascido em 1646 e era filho de Diogo Leite Pereira e de sua mulher D. Helena de Távora e Noronha, filha de Martim de Távora e Noronha, senhor da quinta de Campo Belo e descendente e representante de Álvaro Anes de Cernache, a quem Dom Duarte doou, a 19.11.1433, o senhorio de Gaia-a-Maior. Diogo Leite Pereira, por seu lado, era trineto daquele Diogo Leite a quem Dom João II doou em 1491 o senhorio de Gaia-a-Pequena e que foi vereador do Senado da Câmara do Porto (1523), Procurador às Cortes (1535) e morgado de Quebrantões, onde vivia”.
Cortesia de Manuel Abranches de Soveral
 
 
Quanto aos detentores do domínio útil, no século XVII, a propriedade pertencia à família do impressor régio Pedro Craesbeeck que tinha casado, em 1709, na Capela (mandada construir em 1620) de S. João Baptista da Quinta do Maravedi, com Mariana Bernarda Angélica Ferreira da Maia, a herdeira da Quinta do Maravedi.
No século seguinte, por herança, a quinta passa por herança para uma neta de Pedro Craesbeeck, Rosa Francisca Craesbeeck de Mello que, em 1715, na capela de S. João Baptista, casa com João Correia Pacheco Pereira, o “Manco de Gaia”.
Os anos de 1691 e 1704 tinham sido de renovação do prazo.
A Quinta do Maravedi é, então, herdada pelo Tenente-Coronel João Corrêa Pacheco Pereira, que foi Governador do Castelo de Leça e era filho do “Manco de Gaia” e que casou, em 1748, com a filha de um Guarda-mor da Saúde. Em 1732, tinha sido renovado, mais uma vez, o prazo.
Em 1832, a Guerra Civil entre liberais e miguelistas obrigou a que os proprietários da Quinta do Maravedi a abandonassem e mudassem residência para uma casa que possuíam em Paredes designada Casa do Barreiro.
Na década de 1980, quando da Quinta do Maravedi só restava a casa, em ruínas, ela vai passar para a autarquia, que a vai classificar, em 20 de Junho de 1983, como Imóvel de Interesse Concelhio.

 
 

Casa da Quinta do Maravedi, na década de 1980 - Fonte: Manuel Abranches de Soveral
 
 
 
No entanto, a área de protecção à casa, então aprovada pela Câmara, acabou por não ser cumprida pela própria autarquia, que autorizou a construção, paredes meias, de um prédio de 27 andares.
Em 1992, a Câmara de V. N. de Gaia cede o espaço, gratuitamente, em regime de comodato, por um período de 70 anos, prorrogável, à Fundação Conservatório Regional de Gaia, comprometendo-se a fundação a recuperar e manter o edifício em bom estado.
Não se perdeu tudo.
 
 
 

Casa de Maravedi, junto da Travessa Barrosa, após a sua recuperação da responsabilidade da Fundação Conservatório Regional de Gaia 

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