domingo, 2 de novembro de 2025

25.290 Os Guardas-mores da Saúde, o “Manco de Gaia” e a Casa de Maravedi

 

Guardas-mores da Saúde
 

Antigamente, a função de Guarda-mor da Saúde era exercida por aqueles que, dada a responsabilidade da função, eram por nascimento ou por suas virtudes elementos destacados da sociedade.
O Guarda-mor da Saúde era escolhido por votação pelas autoridades administrativas do concelho, tendo por missão garantir a defesa da saúde pública, assistindo médicos e cirurgiões e outro pessoal que desempenhava serviço em casas de assistência.
Os Guardas-mores da Saúde pertenciam, por norma, às mais destacadas famílias da cidade e consideravam uma honra a sua escolha para o exercício do cargo.
Em tempos de peste, ao primeiro sinal, o Guarda-mor da Saúde providenciava, com os seus auxiliares, para que os pestíferos fossem isolados e entrassem de quarentena exercendo, ainda, a vigilância sobre as tripulações dos navios que aportavam pela barra do rio Douro ao cais da Ribeira e outros, com origem em portos onde grassava a doença.
Neste último caso, era norma içar uma bandeira visível, num mastro colocado na margem do rio Douro.
Assim, a tripulação quando via a bandeira içada no tal mastro, teria que estacionar no meio do rio, em frente a esse local, e esperar a visita efectuada pelos Guardas-mores da Saúde, para fazerem uma inspecção sanitária.
Aquele conjunto mastro/bandeira situado junto do Palácio das Sereias, ao fundo da Rua da Bandeirinha, era conhecido pela “Bandeirinha da Saúde” e o pilar de granito que o suportava teria sido construído, possivelmente, entre 1597 e 1633, pelo pedreiro Bastião Fernandes, tendo sido um importante marco da cidade durante os séculos XVI e XVII, uma vez que protegia a cidade de doenças trazidas de fora.
Para além daquela marca em Miragaia, terá existido uma outra, a “Bandeirinha de S. João da Foz”.
 
 
 

Bandeirinha da Saúde, junto do Palácio das Sereias
 
 
 
Em pleno século XVI, os Guardas-mores da Saúde estacionavam na Casa de Degredo de Vale de Amores (Valdamores, como então se dizia), sob a égide dos frades capuchos do Convento de Santo António de Vale da Piedade e, posteriormente, no Lazareto, situado mais a jusante, no local que, hoje, fica entre a Igreja Nova da Afurada e a Casa dos Pescadores.
Segundo estudos do Dr. Francisco Ribeiro da Silva, a escolha do local da Casa de Degredo, para recolha dos empestados, teria ocorrido em 1598, embora não fosse aquele o único lugar onde se efectuava o interrogatório dos potenciais infectados.
 



Convento de Santo António de Vale da Piedade – Desenho (1835) de J.J. Forrester



 

Vista, actual, desde Monchique, do que restou do antigo convento – Cortesia de Lucília Monteiro, In revista “Visão”

 
 
O controlo sanitário, em tempos de epidemia, era, também, exercido junto das portas da muralha da cidade.
Para o efeito, a Porta do Olival e a Porta de Cima de Vila eram abertas e fechadas todos os dias e, por determinação dos Guardas-mores da Saúde, o porteiro da Câmara fazia chegar a chave daquelas portas a cidadãos previamente escolhidos para o desempenho daquela tarefa.
 
 
 

Porta do Olival, em reconstituição, de Gouvêa Portuense
 
 
 
No caso das Portas da Ribeira e Porta Nova, aquela incumbência era executada por homens pagos, com a obrigação de as manterem fechadas desde o tanger das Avé-Marias até ao raiar do outro dia.
A primeira acomodação dos frades menores, em Vale de Amores (depois, Vale da Piedade), foi numa propriedade contígua à área onde, pouco-a-pouco edificaram o convento, que ocuparam em 1569.
Na sua obra “Os Narcóticos”, Camilo Castelo Branco refere a existência, na margem esquerda do rio Douro, da Quinta de Vale de Amores, que terá pertencido, em tempos de antanho, a Álvaro Gonçalves, que passou à história como “O Magriço” e a quem Camões se refere no Canto VI, estrofe 68, pela participação num torneio medieval, em Inglaterra, em defesa da honra de umas damas.
Pois…Vale de Amores, sendo um lugar recôndito, era propício à presença de namorados e, daí, o nome. Os frades não descansaram enquanto não o converteram em Vale da Piedade.
Algumas pestes ocorridas no Porto e seu termo, no século XVI, ficaram para a história. No acorrer a essas tragédias, à Câmara competia coordenar as acções de socorro que se impunham e suportar as despesas, que costumavam ser compartilhadas pela Santa Casa da Misericórdia.
Uma peste, em 1577, começada em Matosinhos, levou os Guardas-mores da Saúde, à data, Jorge de Babo e Diogo Leite, até àquele lugar.
Tendo surgido dúvidas sobre a própria saúde deles, após a visita referida, seriam substituídos por dois novos Guardas-mores da Saúde, João Cardoso de Miranda e Luís Pinto.
Nos anos de 1598 e 1599, a peste voltaria a picar, no Porto, para além de outras ocasiões, nomeadamente, durante o decorrer do século XVII.
De 30 de Julho de 1657, é o texto que se segue:
 
 
“ … neste dia foi o escrivão, por mandado do guarda-mor da saúde à cadeia da relação do Porto notificar o piloto da barra de S. João da Foz do Douro, Domingos Gonçalves Delicado, que estava preso por trazer o navio francês (que metera dentro da barra) para baixo do lugar de Vale de Amores, onde costumam lançar ferro, até serem visitados pelos guardas mores da saúde…”
Fonte : “Visitas da Saúde”
 
 
 
 
 “Que a justiça do Manco de Gaia te caia em casa”
 
 
Dos muitos guardas-mores da saúde que serviram na cidade do Porto e seu termo, João Corrêa Pacheco Pereira, passou para a posteridade pelo zelo com que exercia o cargo.
Membro da aristocracia nortenha, nascido em 1679, era filho de João Corrêa Botelho (um fidalgo transmontano, descendente do célebre navegador Diogo Cão e do alcaide-mor de Vila Real, Afonso Botelho) e de Mariana Pacheco Pereira, senhora da Casa de Valinho de Beire (sobrinha-neta do Capitão-mor da cidade do Porto, Sebastião Pacheco Pereira).
Portanto, João Corrêa Pacheco Pereira pertencia a duas das famílias portuenses mais importantes: a dos Pacheco Pereira, da Rua de Belmonte e da Quinta da Vilarinha, e a dos Sem (da Torre da Marca).
João Corrêa Pacheco Pereira tinha um defeito físico numa perna, em resultado de uma queda dada em rapaz, quando cavalgava e, por isso, mancava. Ficou como o “Manco de Gaia”.
Todos os dias, o “Manco de Gaia” vinha de Mafamude, da casa da Quinta do Maravedi, onde viveu e morreu (em 1746), para o Porto, para exercer o seu mandato de Guarda-mor da Saúde. O zelo com que exercia as suas funções era de tal ordem, que passou a ser o terror das vendedeiras dos mercados. Produto deteriorado, insalubre ou sem qualidade era mandado atirar ao rio Douro pelo “Manco de Gaia”.
Passados mais de cem anos, o “Manco de Gaia” continuava a ser referenciado pelas vendedeiras da Ribeira, quando lançavam maldiçoes sobre as rivais: “Que a justiça do Manco de Gaia te caia em casa”.
João Corrêa Pacheco Pereira acabou por ser também Vereador da cidade do Porto, Juiz Almotacé e Deputado do Subsídio Militar e, ainda, Capitão de Milícias e Familiar do Santo Ofício.
Seria sepultado em Valdamores, atrás referido, no Mosteiro de Vale da Piedade, onde foi Provincial um seu filho, Frei José de Gaia.
 
 
 
Casa e Quinta do Maravedi
 
 
A casa onde viveu o “Manco de Gaia”, em Mafamude, V. N. de Gaia, ainda existe após recuperação decidida pela Câmara de V. N. de Gaia, que evitou a sua demolição.
A casa apelidada de Casa de Maravedi fazia parte da Quinta de Maravedi, situada no coração de Vila Nova de Gaia, meio caminho entre as Devesas e o Largo Soares dos Reis.
Provavelmente, a sua construção, inicialmente, é do século XIV.
Quanto aos emprazadores (senhorios), por exemplo, o emprazador, em 1701, era o donatário de Gaia-a-Pequena Álvaro Leite Pereira, fidalgo da casa Real, cavaleiro da Ordem de Cristo, morgado de Quebrantões e senhor do paço e quinta de Campo Belo.
 
“A mais antiga notícia que consegui descortinar sobre a quinta do Maravedi remonta a 1577, ano em que, a 20 de Junho, foi emprazada por três vidas a Isabel de Magalhães.
(…) O emprazador de 1704, que se assina Álvaro Leite Pereira e invoca os títulos acima referidos, tinha nascido em 1646 e era filho de Diogo Leite Pereira e de sua mulher D. Helena de Távora e Noronha, filha de Martim de Távora e Noronha, senhor da quinta de Campo Belo e descendente e representante de Álvaro Anes de Cernache, a quem Dom Duarte doou, a 19.11.1433, o senhorio de Gaia-a-Maior. Diogo Leite Pereira, por seu lado, era trineto daquele Diogo Leite a quem Dom João II doou em 1491 o senhorio de Gaia-a-Pequena e que foi vereador do Senado da Câmara do Porto (1523), Procurador às Cortes (1535) e morgado de Quebrantões, onde vivia”.
Cortesia de Manuel Abranches de Soveral
 
 
Quanto aos detentores do domínio útil, no século XVII, a propriedade pertencia à família do impressor régio Pedro Craesbeeck que tinha casado, em 1709, na Capela (mandada construir em 1620) de S. João Baptista da Quinta do Maravedi, com Mariana Bernarda Angélica Ferreira da Maia, a herdeira da Quinta do Maravedi.
No século seguinte, por herança, a quinta passa por herança para uma neta de Pedro Craesbeeck, Rosa Francisca Craesbeeck de Mello que, em 1715, na capela de S. João Baptista, casa com João Correia Pacheco Pereira, o “Manco de Gaia”.
Os anos de 1691 e 1704 tinham sido de renovação do prazo.
A Quinta do Maravedi é, então, herdada pelo Tenente-Coronel João Corrêa Pacheco Pereira, que foi Governador do Castelo de Leça e era filho do “Manco de Gaia” e que casou, em 1748, com a filha de um Guarda-mor da Saúde. Em 1732, tinha sido renovado, mais uma vez, o prazo.
Em 1832, a Guerra Civil entre liberais e miguelistas obrigou a que os proprietários da Quinta do Maravedi a abandonassem e mudassem residência para uma casa que possuíam em Paredes designada Casa do Barreiro.
Na década de 1980, quando da Quinta do Maravedi só restava a casa, em ruínas, ela vai passar para a autarquia, que a vai classificar, em 20 de Junho de 1983, como Imóvel de Interesse Concelhio.

 
 

Casa da Quinta do Maravedi, na década de 1980 - Fonte: Manuel Abranches de Soveral
 
 
 
No entanto, a área de protecção à casa, então aprovada pela Câmara, acabou por não ser cumprida pela própria autarquia, que autorizou a construção, paredes meias, de um prédio de 27 andares.
Em 1992, a Câmara de V. N. de Gaia cede o espaço, gratuitamente, em regime de comodato, por um período de 70 anos, prorrogável, à Fundação Conservatório Regional de Gaia, comprometendo-se a fundação a recuperar e manter o edifício em bom estado.
Não se perdeu tudo.
 
 
 

Casa de Maravedi, junto da Travessa Barrosa, após a sua recuperação da responsabilidade da Fundação Conservatório Regional de Gaia 

sábado, 25 de outubro de 2025

25.289 O encalhe do navio “Gauss” no Cabedelo

 
Pelas seis horas da tarde do dia 11 de Maio de 1932, encalha na restinga do Cabedelo o vapor alemão “Gauss”.
Acorreram, em socorro, os salva-vidas “Porto” e “Carvalho Araújo” e naufragam.
O salva-vidas “Porto” tinha entrado ao serviço em 1922 e era movimentado por remadores.

 
 

Salva-vidas “Porto” com os seus remadores – Cortesia de Fotomar
 
 
 
Por sua vez, o salva-vidas motorizado “Carvalho Araújo”, tinha chegado a 17 de Setembro de 1931, a Leixões, vindo de Lisboa, para prestar serviço, não só no porto de Leixões, como na barra do Douro.
A viagem até Leixões foi realizada pelos seus próprios meios, desde a estação de socorros a náufragos de Paço de Arcos, Lisboa, para onde havia sido transportado a bordo do vapor Alemão APOLLO.

 
 
 

Salva-vidas “Carvalho Araújo” chegando a Leixões em 17 de Setembro de 1931 – Cortesia de Fotomar
 
 
 
 
Durante as manobras de salvamento do “Gauss”, o salva-vidas “Porto” volta-se, o que provocou que 6 tripulantes, remadores, falecessem por afogamento na barra do rio Douro. Foram eles o Patrão José Pinheiro Brandão e os remadores Serafim Pereira da Silva, António Martins Vinagre, Mário da Silva Rebelo e os irmãos Inocêncio e Matias Baptista da Silva.
O salva-vidas motorizado “Carvalho Araújo” também naufraga, na tentativa de resgatar a equipagem do salva-vidas a remos “Porto”, que se havia voltado junto ao navio naufragado na restinga do Cabedelo. 


 

O vapor alemão “Gauss” após o encalhe no Cabedelo, em 11 de Maio de 1932, com a presença do rebocador “Mars II” – Fonte: revista “O Tripeiro”, Série Nova, Ano I, Nº 6, Maio de 1982


 
 

O navio alemão “Gauss” nas areias do Cabedelo

 
 
Sobre a foto acima, Rui Amaro, aquele que foi uma autoridade e uma fonte inesgotável de conhecimentos, no que concerne ao sector marítimo e à actividade respectiva em Leixões e na barra do rio Douro, cuja memória singelamente homenageamos, escrevia:
 
 
“Depois de grande maresia o mar acalmou, o navio permaneceu em seco durante 22 dias, findos os quais depois de reparado voltou ao canal de navegação e continuou o serviço comercial. Teria sido mais um acidente sem consequências, não fora o salva-vidas que se encontra entre o navio e o rebocador ter-se virado e morrido todos os seus ocupantes. Faz parte dos momentos mais tristes e fatídicos do Instituto de Socorros a Náufragos, pelo único motivo de estarem lá, para tentar salvar umas quantas vidas. O infortúnio colocou-os na história e a imagem quase conta o resto”.
Fonte: Rui Amaro, administrador do blogue “Navios à Vista”
 
 
 
Então, no dia 3 de Junho de 1932, dois salvadegos estrangeiros, Valkyrien, dinamarquês, e Seefalke, alemão, desencalham da restinga do Cabedelo o “Gauss”, que segue para Leixões pelos seus próprios meios, regressando mais tarde ao serviço normal.
Em 20 de Dezembro de 1932, na Associação Comercial do Porto, ao Palácio da Bolsa, decorre uma sessão solene de homenagem aos participantes no salvamento do vapor “Gauss”.
À sessão solene presidiu António de Oliveira Calém, presidente daquela Associação, que tinha à sua direita W. H. Stuve, cônsul da Alemanha no Porto; Dr. Sousa Rosa, presidente da edilidade Portuense; Cte Almeida Teixeira, representante do chefe do Departamento Marítimo do Norte e à esquerda os representantes do comandante da Região Militar do Norte, Governo Civil do Porto e Associação dos Armadores Marítimos, respectivamente.
Na oportunidade, o cônsul da Alemanha prestou justiça à benemérita corporação dos Bombeiros Voluntários do Porto.
 
 
 
“Depois foram chamados o patrão do salva-vidas PORTO, José Maria Caetano Nora e os tripulantes António de Oliveira, Gabriel Sousa Araújo, Herculano Moreira dos Santos, António Cunha Rolha, Luís da Silva Mendonça, António Rodrigues Crista e António da Silva Saragoça.
Seguidamente foi a vez do patrão do salva-vidas CARVALHO ARAÚJO, José Rabumba (O Aveiro) e os seus camaradas Manuel Rabumba, José Fernandes Caseira e Joaquim Rodrigues Crista.
Um a um, o cônsul da Alemanha foi distribuindo os respectivos diplomas”.
Fonte: Rui Amaro
 
 
 
 

Os sobreviventes das companhas dos dois salva-vidas naufragados, durante o desencalhe do “Gauss”, ladeando José Rabumba (O Aveiro), patrão do salva-vidas Carvalho Araújo – Fonte: imagem da imprensa diária
 
 
 
 
 O salva-vidas “Carvalho Araújo” completamente reparado,
fundeou, ontem, na bacia de Leixões
O salva-vidas “Carvalho Araújo”, do Instituto de Socorros a Náufragos, adstrito à Capitania de Leixões, fôra a grande vítima. Mortos muitos daqueles que, então, o tripulavam, sobre a sua carcaça frágil se encarniçaram as vagas, quase a reduzindo a destroços.
Finda a tragédia, amainada a fúria dos elementos, o “Carvalho Araújo” recolheu ao seu posto, impossibilitado de cumprir, naquele estado, doravante, a missão admirável para que fôra construído.
Justiça, porém, se lhe fez. A casa alemã que o construíra, informada de que a ele se devia, em enorme parte, o salvamento do “Gauss” e da sua gente, prontificou-se a repará-lo, o que era, afinal, de elementar justiça.
O “Carvalho Araújo” foi, então, para a Alemanha. Lá esteve, nos estaleiros da casa construtora, em porfiada reparação. Foi, de alto a baixo remodelado, renovado. Ficou – dizem – mais sólido, melhor, mais capaz, para a sua missão de salvar, do que, antes, era.
E, ante-ontem, a bordo dum vapor alemão, o “Carvalho Araújo” aportou a Lisboa.
Dali, partiu, por mar, também, navegando, pelas 5 horas da manhã de ontem. E, às 4 horas da tarde, menos poucos minutos, o salva-vidas chegava, bandeira verde e vermelha drapejando no tope do mastro, nas águas mansas da baía de Leixões.
O simpático patrão do “Carvalho Araújo”, Sr. António Rodrigues Crista, confirmou a hora de saída de Lisboa, adiantou que a viagem correu bem e mais não disse.
Quando deixamos o futuro grande porto comercial, cujas obras vão num crescendo animador, as bandeiras do “Carvalho Araújo” brilhavam, sobre o ancoradouro, ao Sol frio da tarde...”
In jornal “O Comércio do Porto” de 4 de Novembro de 1933




O salva-vidas “Carvalho Araújo” na década de 1960, junto do Farolim do Esporão, à entrada do Porto de Leixões

 
 
Em 1979, o salva-vidas “Carvalho Araújo” foi substituído pelo moderno e sofisticado salva-vidas “Patrão Joaquim Casaca (UAM-673)”, construído no estaleiro do Alfeite da classe Americana “Waverney”.

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

25.288 O comércio na Praça de Carlos Alberto

 
A Praça de Carlos Alberto, que ganhou este topónimo a partir de 1850, está implantada em terrenos a que antigamente se chamava Horto do Olival e, aos quais, a cidade amuralhada tinha acesso através da Porta do Olival.
Intra-muros, nessa zona, esteve a judiaria até à expulsão dos judeus, em 1496, ordenada por D. Manuel I.
Por aquela porta se saía para rumar ao norte do País.
Primeiro, por caminhos rústicos através de campos da Quinta da Corredoura ou dos Carvalhos do Monte, mais tarde, por ruas, respectivamente, a Rua da Estrada (Rua de Cedofeita) e a Rua das Oliveiras (que ainda ostenta o topónimo com referência ao antigo local).
A Praça de Carlos Alberto é dominada a norte/nascente, desde o início do século XVIII, pelo Palacete Balsemão e, a sul/poente, pela fachada lateral da Igreja dos Terceiros do Carmo e fachada principal do respectivo hospital e, ainda, a sul/nascente pelo palacete dos Couto Moreira.

 
 

Palácio do Visconde de Balsemão - Desenho de Carlos Alberto Nogueira da Silva, In «Archivo Pittoresco», 4, 1861, p. 393
 
 
Aquele palacete foi antecedido no mesmo local por uma morada de três casas casas com os seus quintais, águas e mais pertenças que, em 1718,  eram propriedade de Diogo dos Santos Mesquita e, alguns anos depois, surgiria na posse do negociante portuense Luís Correia dos Santos.
A casa passa a ser conhecida como Palacete Balsemão, a partir de 1800, quando Maria Rosa Alvo Brandão Perestrelo de Azevedo casa com o 2.º visconde de Balsemão, Luís Máximo Alfredo Pinto de Sousa Coutinho (Falmouth, 30 de Maio de 1774 — Lamego, 2 de Outubro de 1832).

 
 

Hospital do Carmo, em 1833, voltado para a Praça Carlos Alberto, em desenho de J. Villanova

 
 
Em 1801, as instalações do que seria o Hospital do Carmo estavam concluídas.
Em 1811, decide-se montar uma botica, que será instalada numa das lojas do edifício do hospital. Todavia, em 1862, adquiriu-a Joaquim Baptista de Lemos, que a vai transformar na Farmácia Lemos com portas abertas até aos nossos dias.
A partir de 1865, o Hospital do Carmo passará a prestar assistência a doentes alheios à Ordem.


 
 

Palacete dos Couto Moreira, c. 1960, na esquina das praças de Carlos Alberto e Gomes Teixeira
 
 
 
 
Pela Rua de Cedofeita, começada a abrir em 1777, que rapidamente passou a Rua da Estrada e, depois, a Rua Direita de Cedofeita, se atingia a Falperra (Ramada Alta) e continuando se atingia o Carvalhido, pelo troço que, mais tarde, se chamaria Rua 9 de Julho. Daí, passando pelo Padrão da Légua e Padrão de Moreira, chegava-se à Estrada dos Nove Irmãos e a Vila do Conde, Póvoa, etc, percorrendo aquela que, a partir de determinado momento, foi chamada a Estrada Real 30.
Na notícia abaixo é dado conta de que a Rua Nova do Carvalhido passou a integrar a Estrada Real 30.



In "Jornal do Porto" de 22 de Fevereiro de 1889



Se se enveredava pela Rua das Oliveiras e, depois, pela Rua de Santo Ovídeo, actual Rua dos Mártires da Liberdade (para o povo sempre Rua da Sovela pelo seu traçado característico) atingia-se Santo Ovídeo (Praça da Regeneração topónimo que alternava com o de Praça da República), seguia-se a Rua da Rainha (Rua Antero de Quental), Lugar do Sério, Arca d’Água e continuava-se para Braga.
Tendo os itinerários referidos o seu início, no local da actual Praça de Carlos Alberto, não surpreende que, naqueles tempos, se lhe chamasse Largo dos Ferradores.
As oficinas dos ferradores de cavalos e muares seriam verdadeiras estações de serviço da época, colocadas num sítio estratégico, à saída da cidade, por isso, o topónimo sucessivo de Campo dos Ferradores, Largo dos Ferradores e Bairro dos Ferradores.
Não é de estranhar, também, que o local, após a introdução dos transportes de massas, fosse muito concorrido.
Na Praça Carlos Alberto, a partir de 12 de Agosto de 1874, começou a funcionar, sob a gestão da Companhia Carris de Ferro do Porto (CCFP), a linha de caminho-de-ferro americano até Cadouços, à Foz do Douro, passando pela Boavista.
Em 1883, uma outra linha concorrente dos “americanos”, os carros Ripert da “Empresa Portuense de Carros Ripert” (com sede na Rua de S. Dinis), que demandavam S. Mamede de Infesta e serviam vários outros pontos da cidade, passou a funcionar a partir da Praça de Carlos Alberto, com o término em frente à Tabacaria Havaneza, no local em que, mais tarde, esteve a Mercearia Pacheco.
Mas, desde sempre, foi também uma área que, pela sua localização, era propícia ao comércio.
Neste sítio, que já foi Campo, Largo e Bairro dos Ferradores e Largo da Feira das Caixas, acabando como Praça Carlos Alberto, realizou-se, entre c. 1676 e 1833, a “Feira dos Bois”.
Em 14 de Fevereiro de 1833, esta feira é transferida para o Poço das Patas, depois Campo Grande e, finalmente, Campo 24 de Agosto.
Por alvará de 1720, pelos dias 25, 26 e 27 de Julho, foi autorizada a realização de uma “Feira Franca”, anual, de fazendas e animais, que se realizaria pela primeira vez, no ano seguinte, passando pelas praças do Carmo, Cordoaria e Ferradores.
Tendo esta feira caído no agrado dos portuenses, passou a realizar-se bi-semanalmente (Terças e Sábados).
Até 1822, funcionou nesta praça, a “Feira da erva, carvão e lenha” e, depois a “Feira das Caixas” que comercializava cadeiras, caixas, bancos, tamancos e outros artigos em madeira.
Em 1823, esta feira funcionou no Mercado do Mirante (Praça Coronel Pacheco) e depois disso foi para a Praça da Batalha.
Durante algum tempo, na “Feira das Caixas”, no meio da praça, funcionou um teatro mecânico, cujos actores eram autómatos.
Em 1856, a “Feira das Caixas” foi para a já desaparecida Rua dos Lavadouros e, ainda hoje, podem ser observados os seus vestígios, na Rua da Picaria, que lhe ficava próximo.
Em Abril de 1858, passa a realizar-se nos Ferradores a “Feira dos Moços”, em Abril (nos contratos para os trabalhos de Verão) e em Novembro (para os de Inverno). Em 1876, foi transferida para a Rotunda da Boavista e depois para a Corujeira.
A partir de meados do século XIX, com o desenvolvimento que a cidade experimentou após a intervenção de João Almada e do seu filho Francisco Almada, o comércio que se baseava em feiras ao ar-livre passou, também, para debaixo de telha, em lojas. Apareceram, então, na Praça Carlos Alberto os hotéis, restaurantes, mercearias, casas de modas, etc.
Dada a impossibilidade de uma descrição cronológica apresentam-se, a seguir, alguns exemplos da ocupação comercial na Praça Carlos Alberto.
 
 
Lado Nascente
 
 
 

Praça de Carlos Alberto, com perspectiva sobre a Praça Gomes Teixeira, em foto do Plano Regulador de Almeida Garrett c. 1952

 
 
Na foto acima, no primeiro prédio, totalmente visível, à esquerda esteve, no nº 115, a “Leitaria Invicta”.

 
 

Anúncio publicado no jornal “O Alarme” (Diário Republicano da tarde) em 1904
 
 
 
Na mesma morada, a partir de 28 de Novembro de 1931, esteve a moderna e luxuosa Manteigaria Invicta de Alírio Tavares da Fonseca & Cia.
 
 
 

Publicidade à Manteigaria Invicta, em 1933
 
 


Neste lado da praça localizavam-se, segundo testemunho de Horácio Marçal, as casas de hospedagem e de comidas e bebidas.

 
 
 

Horácio Marçal, In revista “O Tripeiro”, Vª Série, Ano VIII, Nº 4, Agosto 1952
 
 
 
Ainda, segundo Horácio Marçal, outros estabelecimentos ficaram na memória de muita gente, como a “Mercearia dos Penas” na esquina da Praça Carlos Alberto com a Praça Gomes Teixeira (dos Leões ou da Universidade), a “Tabacaria Havaneza”, a “Camisaria Braga”, a “Camisaria Perdigão”, a “Confeitaria Abreu”, o armazém de fazendas ”Bártolo”, a casa de modas “Almeida & Cia”, a loja de miudezas de “Sousa Matos” a “Mercearia Campos”, o estabelecimento de artigos de verga da ilha da madeira “Casa Vilaça”, a casa de músicas “Eduardo da Fonseca”, o Café Carlos Alberto, funcionando nos baixos do palacete do Visconde da Trindade, na esquina da Rua das Oliveiras, de António Pires da Silva, com sala de bilhares e inaugurado em Outubro de 1901.
Para além da muito conhecida Hospedaria do Peixe, que estava instalada no palacete do visconde da Trindade, arrendada na década de 1840 por António Bernardino Peixe e onde se alojou o rei Carlos Alberto, existiam pelos Ferradores, várias hospedarias e hotéis.
No nº 120, a Hospedaria “Leão de Ouro”, cuja diária variava entre 600 e 800 réis.
 
 
 

No primeiro prédio, à esquerda, ficava a “Leão de Ouro”
 
 
 
Ainda do lado nascente da Praça Carlos Alberto, dá-se conta da “Pensão do Comércio” a 1$200 réis por dia, “Clarence”, “Hotel da Boa Esperança”, “Bons Amigos” e “Aurora”.
 
 
 

Hotel da Boa Esperança, do lado Nascente da Praça de Carlos Alberto – Ed. Photo Guedes
 
 
 
Na foto anterior, pode observar-se a confeitaria Oliveira e o Hotel da Boa Esperança.
No prédio onde teve portas abertas a confeitaria Oliveira, uns anos antes, esteve, o Hotel-Restaurante Carlos Alberto, na Praça de Carlos Alberto, nº 105.
 
 
 “O bem conhecido nesta cidade, cozinheiro Bernardo Crespo, abriu o seu novo hotel na praça de Carlos Alberto, 105, desde o dia 15 de março.”
In Jornal o “Comércio do Porto” de 15 de Março de 1865, cit. Guido de Monterey, “O Porto 2”, p. 582
 
 
 

Vista actual de foto anterior – Fonte: Google maps
 
 
 
 
As malas-postas ou diligências que faziam a ligação a Viana do Castelo tinham a estação no edifício da casa de pasto “Caldos de Galinha”, bem como as estafetas e recoveiros, para Viana do Castelo, Caminha, Valença e Tui, que chegavam às Segundas, Quartas e Sábados e partiam nesses mesmos dias.
A casa de pasto “Caldos de Galinha”, segundo informação de Horácio Marçal situava-se no nº de polícia 85-87-89, morada que ainda se mantem.
No final do século XIX, bem próximo daquele local seria aberta uma ligação entre a Praça Carlos Alberto e o Largo do Moinho de Vento, que já se chamou Travessa de Sá de Noronha e hoje, é a Rua Actor João Guedes.


 

Foto do prédio do Café Luso, anterior aos anos 80 – Ed. AHMP; Foto de Marco Gelehrter Ricca Gonçalves

 
 
Na foto, acima, é possível ver o Café Luso (prédio central com azulejos azuis) e, ao lado, o Restaurante Carlos Alberto.
Foi da varanda do Café Luso que, Humberto Delgado, em 14 de Maio de 1958, durante a campanha para as eleições presidenciais, disse à multidão: "O meu coração ficará no Porto ".
 
 
 
 

Humberto Delgado na varanda do Café Luso

 
 
O icónico Café Luso, inaugurado em 1935, fechou para sempre as suas portas em 2022.


 
 

Vista actual de parte do lado Nascente da Praça de Carlos Alberto – Ed. J Portojo
 
 
 
Na foto acima, no edifício, à direita, esteve instalado até 2022 o Café Luso e, ainda no século XIX, no edifício mais central esteve a casa de pasto “Caldos de Galinha”.
 

 



À esquerda, a sede da Companhia União de Crédito Popular, no lado norte/nascente da Praça de Carlos Alberto

 
 
 

Casa Pereira, na Praça Carlos Alberto, n.ºs 72-73, em 1970, no término da Praça de Carlos Alberto, já junto à Rua das Oliveiras
 
 
 
 
Lado Poente
 
 
O lado poente da Praça Carlos Alberto é dominado pelo hospital dos Terceiros do Carmo.
 
 
 

Fachada lateral da igreja dos Terceiros do Carmo e Hospital do Carmo – Ed. J Portojo
 
 
 
Tendo-se formado em 1736, a Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, passado vinte anos, começaria a construir a sua própria igreja numa parcela de terreno comprado aos padres carmelitas.
Em 29 de Agosto de 1756, a primeira pedra seria lançada por D. João da Silva Ferreira, bispo de Tânger, deão da capela de Vila Viçosa e prior da Ordem Carmelita.
Do lado poente da Praça Carlos Alberto, quanto à ocupação ao longo dos anos, importa referir o Hospital da Ordem Terceira do Carmo, e uma série de estabelecimento comerciais arrendados àquela Ordem, de que se destacam a antiquíssima Farmácia Lemos e as lojas “Lopo Xavier” e “Casa Damas”.
A loja "Lopo Xavier" de malhas e miudezas tem no seu interior uns baixos-relevos de Henrique Moreira.
 
 
 

Lopo Xavier (ainda existe) na Praça Carlos Alberto
 
 
 
 
 
A Casa Damas, por sua vez, tem uma história que merece ser contada.
A “Casa Damas”, de Manuel José Ferreira & Filhos, estava sedeada na Praça Carlos Alberto, tendo começado em 1833, por ser a “Mercearia Damas”.
Foi fundada por um antigo caixeiro da mercearia Dâmaso, situada na Porta do Olival.
Aquele caixeiro aproveitou a corruptela, Damas, por supressão da vogal final, do muito conhecido Dâmaso – o seu ex-patrão.
Manuel José Ferreira, assim se chamava aquele caixeiro, herdou do seu patrão Dâmaso, toda a fortuna, em virtude de este não ter herdeiros.
Acrescentou à mercearia, uma cervejaria e próximo do estabelecimento que tinha sido do seu ex-patrão, abriu um próprio, do mesmo ramo de negócio, nos chamados Passeios da Graça.
Fruto das obras realizadas, à data, no actual edifício da Reitoria, o estabelecimento foi obrigado a mudar-se e a instalar-se num prédio do Campo dos Mártires da Pátria, esquina da Rua da Restauração, onde permaneceu poucos anos, pois, em 1908, já ocupava a morada da Praça Carlos Alberto, nº 1-4, pegado à igreja do Carmo, de sociedade com os seus três filhos, António, Ernesto e Armando.
 
 
 

À esquerda, a igreja da Graça e, ao lado direito da sua torre sineira, no prédio alto, do qual se observam as suas traseiras, a meio da foto obtida a partir do Largo do Viriato, esteve a mercearia Damas, vinda dos Passeios da Graça


 
 

A “Casa Damas” ocupou o espaço onde na foto estão os “Armazéns Branco” – Fonte: Google maps

 
 
Pela cave do prédio da foto acima, observou, em visita efectuada ao local, Horácio Marçal, a existência de uma ramal de água que vinha da “Arca de Sá de Noronha”, como é dado conta no texto abaixo:


 
 
Revista “O Tripeiro”, Ano IX, Vª Série, Setembro de 1953

 
 
Para além desta loja de retalho, a sociedade tinha armazéns de exportação nas ruas do Barão do Corvo e antiga de Veloso da Cruz, em V. N. de Gaia; de retém, na Rua da Restauração, no regimento de infantaria 18 e na cadeia da Relação. Estes dois últimos eram privativos e destinavam-se apenas ao fornecimento da tropa e dos reclusos.
Na Rua de Sá de Noronha, tinha a Casa Damas, uma fábrica de confeitaria, para abastecimento dos seus estabelecimentos e muitos outros da província.
Esta rua ligava a Praça da Universidade e o Largo do Moinho de Vento, tendo sido atribuído aquele topónimo, em 1889, por referência ao músico, compositor e maestro, nascido em Viana do Castelo e que por aqui viveu, durante alguns anos.
Com o falecimento de Manuel José Ferreira, os filhos sem capacidade para gerir ao mesmo nível do pai, os negócios, trespassaram a firma a Manuel Joaquim Queiroz, de Guimarães que a manteve durante cerca de vinte anos.

 
 

Publicidade à “Casa Damas” na Praça Carlos Alberto
 
 
 
Junto da Casa Damas esteve, na Praça Carlos Alberto, 7-16, a casa de modas “Barros & Cia” que, em 22 de Outubro de 1931, reabriria após receber obras de vulto.
A poente da praça e contígua à Farmácia Lemos, em 1940, estava a casa de meias e miudezas de Mário Andrade.
 

 

Casa de meias e miudezas de Mário Andrade
 
 
 

Vista actual, aproximada, da foto anterior – Fonte: Google maps
 
 

 
Lado Norte
 
 
 

Edificado a Norte da Praça de Carlos Alberto – Ed. J Portojo