quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

25.179 Indústria de refinação de açúcar

 
A refinação de açúcar, na primeira metade do século XIX, no Porto, era considerada uma pequena indústria, normalmente, levada à prática em anexos das habitações dos proprietários.
Em virtude de uma lei de 21 de Outubro de 1861, a actividade industrial que lhe estava associada era considerada como insalubre, perigosa ou incómoda, pelo que, requeriam o licenciamento acompanhado de um processo administrativo correspondente.
Saídos muitos proprietários das unidades, após terem sido antigos trabalhadores, muitos deles eram oriundos da Galiza.

 
 
Cortesia de Jorge Fernandes Alves
 
 
 
 
Companhia União Comercial
 
 
O mês de Junho de 1872 foi profícuo em pedidos de licenciamento de refinarias de açúcar.
Conforme a seguir é explicitado, o “Jornal do Porto” de 12 de Junho de 1872 dava conta de que, em reunião do Conselho do Distrito, tinha sido decidido, sob certas condições técnicas, que fossem atribuídas licenças de funcionamento a refinarias de açúcar de José Leite Guimarães, para a Rua do Laranjal, 72-74, e a Benito Garrido Martins, para a Viela da Neta, 51.

 
 
“Jornal do Porto” de 12 de Junho de 1872
 
 
Naquele mês e ano surge, também, um pedido de licenciamento para uma unidade de refinação a vapor que, contudo, vai sofrer a oposição de futuros vizinhos, que acabarão por conseguir boicotar a instalação.
Para o efeito, a denominada Companhia União Comercial, em requerimento dirigido à Câmara do Porto, solicita um alvará de licença para uma refinaria de açúcar que obterá como registo a referência: Documento/Processo, 1872/06/01 – 1872/06/25.
Do processo constava as seguintes informações:
- Localização: Viela da Neta, freguesia de Santo Ildefonso
- Representantes da Companhia: José Marques Antunes; João Ribeiro Pereira; Francisco José de Araújo.
- Contém jornal O Primeiro de Janeiro de 6 de Junho de 1872
- Contém planta desenhada (parte a aguarela) com o projeto para o lugar onde se pretende estabelecer a fábrica de refinação.
- Confrontações de terrenos:
Quinta dos herdeiros de José da Silva Passos
Quinta dos herdeiros de António Joaquim Martins Guimarães
Campos de Dona Antónia Adelaide Ferreira

 
 

Gravura com plantas sobrepostas, em que a mais escura é de c. 1940, e a mais esbatida de 1875, observando-se o traçado da Viela da Neta, a azul



Na planta anterior, a área identificada com a letra L são terrenos lavradios de Antónia Adelaide Ferreira e, com o algarismo 1, são as casas da mesma proprietária, com frente para a Rua de Santa Catarina.
É, precisamente, Antónia Adelaide Ferreira, a “Ferreirinha”, que vai encabeçar a oposição ao licenciamento da fábrica de refinação de açúcar, que acabará por ser abandonado pelos requerentes, nos finais de Junho de 1872.
O “Jornal do Porto” trataria de acompanhar a contenda, como a seguir se realça.
 
 
 

In “Jornal do Porto” de 21 de Junho de 1872, pág. 2
 
 
 

In “Jornal do Porto” de 29 de Junho de 1872

 
 
De realçar que, cerca de duas semanas antes D. Antónia Adelaide Ferreira tinha arrematado a denominada “Quinta da Torre” dos herdeiros de José da Silva Passos (conhecido por Passos José, falecido em 1863), mencionado na notícia seguinte.
Essa quinta tinha pertencido, antes, a João Pinto Soares e, após o seu falecimento, em Novembro de 1822, passou para a posse da sua viúva Ana Joaquina Barbosa Soares. Alguma documentação situava-a na Travessa da Viela da Neta.
Em 18 de Outubro de 1843, já estava na posse de José da Silva Passos, que solicitava à Câmara  obras que obtiveram a licença nº 94/1843.
 
 
 

In “Jornal do Porto” de 6 de Junho de 1872
 
 
 
 
Surgindo a referência à Companhia União Commercial, no Almanaque de 1875, sita na Travessa do Bolhão, onde já estava em 1872, apesar da oposição de proprietários de outras fábricas próximas de outros sectores de actividade, um dos seus principais sócios, João Ribeiro Pereira, já tinha em 1881, a sua unidade indústria de refinação de açúcar, na Rua Mouzinho da Silveira, que passaria por ser a mais importante da cidade.



Cortesia de Jorge Fernandes Alves, In “A Indústria de Refinação de Açúcar no Porto – Um Percurso Amargo e Doce”


 
 
 Refinaria Confiança
 
 
Em 1901, Jerónimo G. da Veiga tomava de trespasse uma refinaria, sita na Rua do Bonjardim 404, que remodelaria, dotando-a com os processos de fabrico mais modernos, com a ajuda do sócio António Peixoto de Oliveira e Silva, filho de um outro industrial do ramo e, portanto, conhecedor do sector de actividade.


 

Fachada da Fábrica Confiança – Fonte: Jornal “A Voz Pública” de 12 de Janeiro de 1902
 
 
 
 

No prédio em destaque esteve, na Rua do Bonjardim, no início do século XX, a Fábrica Confiança – Fonte: Google maps
 
 
 
 

Interior da Fábrica Confiança – Fonte: Jornal “A Voz Pública” de 12 de Janeiro de 1902
 
 
 

Armazém e loja da Fábrica Confiança – Fonte: Jornal “A Voz Pública” de 12 de Janeiro de 1902



Publicidade à Fábrica de Refinação d’Assucar Confiança – Fonte: Jornal “A Voz Pública” de 12 de Janeiro de 1902


 
 
Companhia Portugueza de Refinação
 

Na segunda metade do século XIX, no Porto, começaram a proliferar as refinarias de açúcar de laboração manual. Nos anos de transicção de séculos, surgiriam as primeiras refinarias de cariz mecânico que, por isso, passariam a dispensar alguma da mão-de-obra.
A primeira unidade mecânica que foi montada no Porto teve uma oposição dos operários das fábricas manuais que, começaram a ver, no horizonte, sérias possibilidades, de virem a enfrentar uma situação de desemprego.
Em consequência, ou não, desta luta, ao fim de três anos, essa fábrica, pioneira da mecanização, apareceu incendiada, e foi o “cabo dos trabalhos” para os capitalistas conseguirem que o seguro pagasse os prejuízos. Salvaram metade do capital investido, o que já não foi nada mau.
A segunda fábrica mecânica, montada no Porto, ao fim de três anos de laboração, fechou, com prejuízos de 50 contos, e a terceira a aparecer, em 1906, e que dava continuidade a outra já instalada, seria denominada “Companhia Portugueza de Refinação”.
Laborou durante seis anos, tendo durante esse período de tempo, enfrentado as fábricas manuais, mas acabou por ser vencida, pois nunca conseguiu distribuir dividendos pelos seus accionistas.
Localizava-se na Rua de S. Dinis, nº 895 e, após laborar cerca de 6 anos, foi arrendada à “Hornung & Cia.”.
Esta firma tinha plantações de cana-de-açúcar em vastas áreas de Moçambique, e passaria a dominar o sector, a nível nacional, com unidades próprias e outras, na modalidade de arrendamento.
Uma outra fábrica abriria no Porto, denominada “A Lutadora”, mas apenas funcionou três meses, tendo-se o seu proprietário ausentado para o Brasil, onde montou uma fábrica manual e recuperou o capital que tinha perdido no Porto.
Diga-se, que o fabrico mecânico na refinação do açúcar implicava, relativamente ao produzido por métodos manuais, um preço superior em 20%, embora tivesse superior qualidade.
Tudo isso aconteceria, pela razão de que, no processo mecânico, existiriam muito mais quebras, relativamente ao processo manual.
A partir de 1919, o Estado viu-se obrigado a intervir para regular o sector, nos capítulos da qualidade e da quantidade.
 
 
 

Cartão Comercial da “Companhia Portugueza de Refinação” c. 1910
 
 
 
Pode afirmar-se, com alguma certeza, que as instalações da unidade fabril, acima representada, se situariam numa área, hoje, fronteira ao antigo Cinema Vale Formoso.

 
 

A “Companhia Portugueza de Refinação” esteve por aqui – Fonte Google maps
 
 
 
Refinaria de Açúcar de Angola
 
 
Esta unidade industrial foi inaugurada em Matosinhos Sul, em 1 de Março de 1924, muito perto do Senhor do Padrão, onde até aos anos 60 do século XX, teve nas suas traseiras, a estação ferroviária do Padrão, como término da linha ferroviária de S. Gens.
O seu fundador foi  António de Souza Carneiro (mais tarde António de Souza Carneiro Lara) que, quatro anos antes, em 4 de Março de 1920, já tinha inaugurado, em Luanda, uma outra unidade similar, a empresa “Companhia do Assucar de Angola, SA”.
A empresa foi fundada sob a firma Refinaria Angola, Lda. e, em 1973, seria comprada pela empresa RAR - Refinarias de Açúcar Reunidas, S.A. que tinha sido fundada no Porto em 1962, a partir da fusão de 9 pequenas unidades de refinação de açúcar, da região norte de Portugal.

 
 

Fachada principal da Refinaria de Açúcar de Angola, em Matosinhos, c. 1927 – Fonte: Fotograma de filme da Cinemateca
 
 
 
 

Publicidade incentivando ao consumo do produto refinado na Refinaria de Açúcar de Angola, em Matosinhos, em 1934 – Fonte: Catálogo da Exposição Colonial
 
 
 

Vista aérea, em 1936, da Refinaria de Açúcar de Angola, em Matosinhos
 
 
Houve, também, uma outra refinaria, a “Refinaria de Açúcar de Matosinhos”, no cruzamento da Av. Sousa Aroso e a R. D João I

 
 
 
RAR (Refinarias de Açúcar Reunidas)
 
 
Presentemente, o sector é dominado, desde há seis décadas, pela RAR (Refinarias de Açúcar Reunidas), uma empresa com sede no Porto e que foi o resultado da reunião de nove pequenas refinarias, que existiram na região.
A refinaria de açúcar “Maurício Macedo & Faustino” foi  o embrião da RAR, tendo estado por Massarelos, desde a década de 30 do século XX, a laborar no edifício onde se tinha estabelecido, durante muito mais de um século, a Cerâmica de Massarelos, que ali tinha fundado a sua actividade e que, após sofrer um incêndio em 1920, se instalaria na zona do Rego do Lameiro.
Apesar da construção da refinaria sobre os escombros da antiga fábrica, parte dos muros, dos fornos, e tanques e de uma viela que descia da Rua da Restauração, até uma das entradas, continuaram a ser visíveis, durante muitos anos.
Nesse local laborou, então, a refinaria de açúcar, até à década de 60, e nele haveria de ser construído, já neste século, um empreendimento imobiliário.
 
 
 
 

Na ponta direita do edificado, esteve a “Maurício Macedo & Faustino”, a poucas dezenas de metros da Casa dos Saavedras

 
 
A firma “Maurício Macedo & Faustino” haveria, também, de montar uma unidade de refinação de açúcar, na Rua da Bandeirinha, nº 60, no fim da década de 1930.
Os escritórios da firma e sede eram na Rua de S. João, nºs 96-98.

 
 
 

Prédio em ruínas, na Rua da Bandeirinha, nº 60, onde funcionou uma refinaria de açúcar da firma Maurício Macedo & Faustino


 
 

Semanário “Defesa de Espinho” de 18 de Março de 1934
 
 
 
 
"Até à década de 60 a indústria portuguesa de Refinação de Açúcar era composta por algumas dezenas de unidades de pequena dimensão, grande parte funcionando em termos artesanais, com equipamento muito rudimentar, incapazes de produzir açúcar de qualidade.
A política de condicionamento industrial então vigente impôs a criação de unidades industriais de refinação de açúcar modernas, de maior dimensão e bem apetrechadas tecnologicamente, obrigando assim à transformação do Sector Industrial de Refinação de Açúcar.
A RAR Açúcar é constituída em 1962, em resultado da concentração de 9 pequenas unidades de refinação de açúcar existentes no Norte do País, daí a sigla RAR (Refinarias de Açúcar Reunidas). A empresa passou a comercializar a produção existente dessas pequenas unidades até ao arranque da refinaria projectada para substituir essas unidades.
Iniciada, no ano seguinte, a construção das suas instalações, a RAR entra em laboração em 1967, com a capacidade de produção instalada de 25.000 t/ano. As vendas da RAR, em 1967, atingiram cerca de 22.000 t, correspondendo a 11,78% do País.
Em 1968 muda a composição accionista da RAR o que veio possibilitar um novo dinamismo que, nos anos seguintes, se traduziu num excepcional crescimento da empresa. Procedeu-se ao aumento do capital social da sociedade e foi ampliada a capacidade de produção da Refinaria, como forma de resposta ao crescente aumento das vendas e à progressão da quota de mercado da RAR.
Em 1973 a RAR adquire a Refinaria Angola, situada em Matosinhos, e o seu volume de vendas passa a representar cerca de 45% do mercado nacional. Durante os anos 70 e 80 a RAR empreendeu, não obstante as vicissitudes atravessadas pelo País nessa época, uma expansão da sua actividade e a diversificação para outras áreas, com a criação de numerosas empresas, que formam hoje o Grupo RAR".
Fonte: “portoarc.blogspot.com”

 
 
A RAR foi constituída por escritura de 20 de Março de 1962, como sociedade anónima, com um capital social de 9.746 contos, distribuídos por acções de 1.000 escudos cada, quando a “Maurício Macedo & Faustino” já era, desde há alguns anos, “Maurício Macedo & Cia”.

 
 
Distribuição do capital aquando da formação da RAR


 
 

Refinaria da RAR, na Rua Manuel Pinto de Azevedo, nº 272 – Fonte: Google maps

sábado, 11 de fevereiro de 2023

25.178 Procissões, Vias-Sacras, Ladainhas, Superstições, Senhor da Boa Fortuna e Senhor de Fora

Superstições

Uma das superstições mais presentes na religiosidade dos católicos tem que ver com a presença do Demónio nas encruzilhadas dos caminhos para desviar da fé a humanidade. Por esta razão, aqueles locais são servidos por cruzeiros, alminhas e oratórios que servindo para a oração, tinham também por função recolher as esmolas.
Uma outra curiosa superstição é contada, em 1899, pelo escritor e jornalista Alberto Pimentel, na qual foi interveniente, ainda criança, em meados do século XIX. Tratava-se de uma prática exercida por alguns portuenses, muito devotos e supersticiosos, denominada “andar às vozes”, que determinava uma visita à capela da Senhora das Verdades, na Sé.
 
 
“A locução “Andar às vozes” exprime o facto de qualquer pessoa vaguear pela rua à escuta do que os outros dizem, para tirar agoiro do que eles disserem. E, segundo o que ouvir, esperará boa ou má fortuna no negócio que traz no pensamento. Castilho, no “Amor e Melancolia” aludiu a esta tradição relativizando-a apenas com a noite festiva do Santo Percursor;
 
“Qual com bochecho na boca
Aplicando atento ouvido
Espera que á meia-noite
Seja um nome proferido”.
 
No Porto acresce á tradição o costume de, quando alguém “andar às vozes” se dirigir como em silenciosa romagem, à Capelinha da Senhora das Verdades. Tal é o pitoresco especial da versão portuense.
Crê que a Virgem daquela invocação fará com que as pessoas que encontramos pela rua nos revelem involuntariamente ou inconscientemente o porvir dizendo “verdades” que o tempo confirmará.
Eu fui muitas vezes, quando era pequeno, à referida capelinha, para acompanhar uma pessoa da minha família, que acreditava na tradição de que pelas vozes se ficava sabendo a verdade futura.
Saíamos de casa depois das nove horas da noite e íamos atravessando a cidade, sem dizer palavra, em direção à Sé…Eu e a pessoa que eu acompanhava ali, ajoelhávamos no degrau da porta, quando chegávamos ao termo da nossa silenciosa romagem… Chegava a aborrecer-me aquela maçada de atravessar em silêncio a cidade, do Bairro Ocidental para o Bairro Oriental. Quando já, perto de mim, negrejavam as paredes da Sé, na solidão e no silêncio, a minha tristeza, misto de enfado e terror, aumentava a ponto de me fazer tremer às vezes. Não sei se rezava ou o que rezava, enquanto essa querida pessoa orava fervorosamente com os lábios colados a um dos ralos, como se estivesse falando a Nossa Senhora para dentro da ermida… A pessoa que eu acompanhava, ao voltarmos para casa, vinha quase sempre preocupada, a resolver na mente as “vozes”, agradáveis ou desagradáveis, que tinha ouvido. Pobre e crédula criatura, antegosava a felicidade que lhe tinha sido anunciada, ou vergada ao peso de alguma profecia de desgraça, de algum aviso aziago, acreditando, por igual, uma ou outra cousa. Aqui está, pois, como segundo a versão do Porto, a Capela de Nossa Senhora das Verdades é o termo tradicional de “andar às vozes”. Como é do estilo não falar quando se ”anda às vozes” algumas pessoas para evitar o descuido de não guardar silêncio (o que estragaria a romagem) sujeitam-se ao incómodo do bochecho. Mas por isso mesmo que é incomodo, a maior parte da gente dispensa-o, cerrando os dentes uns contra os outros e pondo toda a sua atenção em não dizer palavra”.
Alberto Pimentel
 
 
 

Capela de Nossa Senhora das Verdades, na Sé



 

Escadas das Verdades. Ao cimo destas escadas, à direita, fica a capela das Verdades


 
 
 Procissões



Segundo, ainda, Alberto Pimentel:
 
"Burguês e religioso, o Porto não deixava de fazer nenhuma das suas grandes procissões, aliás muito dispendiosas".
 
 
O dinheiro para que aquelas manifestações de fé se realizassem, acabava sempre por aparecer.
O texto que se segue refere-se ao período, de 1850 a 1890, vivido pela sociedade portuense, no que concerne à expressão prática da sua religiosidade.
 
 
“ A burguesia, que chegara a andar um tanto arredada das igrejas, arrependera-se, parece, como já notámos; mas por voltar a praticar os actos externos do culto católico, não se deve concluir que tivessem recrudescido nela a Fé e o verdadeiro espírito religioso...
...Porém, o que é facto é que os burgueses eram, quase todos, segundo Ramalho Ortigão, “irmãos de Confrarias, mesários de Irmandades, fidelíssimos às pomposas procissões da Trindade, do Carmo e de S. Francisco, fervorosos devotos do Senhor de Matosinhos e do Senhor da Pedra, e grandes festeiros de S. João. Alguns iam à Missa das Almas em cada dia. Todos frequentavam regularmente os Sacramentos e visitavam aos domingos de tarde o Senhor Exposto...
...Quase todas as lojas comerciais tinham na parede do fundo um nicho com a imagem de Santo António, ...
...E na casa de qualquer bom burguês havia sempre um santuário, com relíquias de Santos, figuras de Cristo na Cruz, da Mater Dolorosa, de S. João – diante do qual uma lâmpada permanentemente ardia, “ nos lutos de família, nas duras atribulações domésticas e nas ocasiões de alguns júbilos inesperados, conta-nos Alberto Pimentel falando da casa de seus pais na Rua da Sovela, era diante do santuário, abertas de par em par as cortinas de seda vermelha, que todos ajoelhavam, de mãos postas, rezando a Deus”…
...Em benemerência não tinha o Tripeiro quem o ultrapassasse. Além da Misericórdia que os portuenses muito auxiliavam eram numerosos os estabelecimentos de caridade que o Porto sustentava”.
Artur de Magalhães Basto, em “O Porto do Romantismo”
 
 
 
Naqueles tempos, a sociedade portuense, por tradição, não deixava de marcar presença no chamado Lausperene.
No Porto, desde o séc. XVIII e durante muitos anos, havia Lausperene todos os dias, em diferentes igrejas: à Terça-Feira nos Terceiros Carmelitas; à Quarta-Feira na Igreja do Terço e Caridade; à Quinta-Feira na Capela das Almas; à Sexta-Feira na Igreja da Misericórdia e no extinto Convento de S. Domingos, até 1832; aos Domingos na Trindade.
A Igreja dos Clérigos foi a única que manteve esta tradição aos Sábados.
O Lausperene consiste na exposição da hóstia consagrada, chamada de Santíssimo Sacramento, na igreja, aos fiéis. O sagrado Lausperene tem, normalmente, uma duração de 40 horas, em referência ao período em que o corpo de Jesus Cristo permaneceu no túmulo até acontecer a ressurreição.
 
 
 

A Igreja dos Clérigos continuou a manter a tradição do Lausperene, todos os Sábados

 
 
Por sua vez, as grandes procissões eram as de Cinza, que saía de S. Francisco, a do Carmo, a da Trindade e a do Terço.
Havia duas outras procissões, menos aparatosas que aquelas, mas também muito concorridas, a de Passos e a da Paixão, que obrigavam as damas a toilettes pretas. 
Por último, a procissão do Corpus Christi, atraía muita gente pela presença da Câmara Municipal, do bispo, do Governador Civil e de toda a guarnição militar.
Esta procissão do Corpus Christi era grandiosa, mas nas últimas décadas do século XIX, já tinha perdido parte do seu fulgor.
O “Jornal do Porto”, de 7 Junho de 1871, na sua pág. 2, dava conta disso mesmo ao anunciar, para o dia seguinte, a saída de uma delas, descrevendo, ao mesmo tempo, como tudo se passava cerca de 150 anos, antes.

 
 



Procissão do Corpo de Deus, c.1910, passando na Praça da Batalha

 
 

Cortesia de Rui Cunha

 
 
Muito curiosa e divertida é a narrativa sobre as peripécias vividas por uma jovem durante uma procissão para as bandas dos Carvalhos do Monte (actual Largo 1º de Dezembro) e que o jornal "A Nação" publicou, baseado em notícia, originalmente saída no periódico portuense "O Nacional".



In jornal "A Nação" em 9 de Julho de 1856




Gravura da capela de Santo António do Penedo, aos Carvalhos do Monte



As vias-sacras e as ladainhas sempre foram, também, as cerimónias religiosas da maior predilecção das gentes portuenses.
Por exemplo, nas procissões dos Senhores dos Passos iluminavam-se as várias capelas dos Passos que estavam espalhadas pela cidade, de que restam ainda duas delas.
Uma está na Rua de S. Sebastião e, a outra, em frente à Igreja de S. Nicolau, na Rua do Infante D. Henrique. Esta última estava inicialmente na Rua de S. Francisco e passou, ainda, pela Rua Ferreira Borges.
As Procissões dos Senhores dos Passos eram realizadas pelos frades do convento dos Grilos, donde saíam na Segunda-Feira da Quaresma em direcção à igreja de S. João Novo.
O primeiro oratório era em S. Sebastião, seguindo-se dois na Rua do Loureiro, que foram demolidos para edificar a estação de S. Bento.
Um outro existia no Largo de S. Domingos, a que se seguia um na Rua das Congostas (encostado à cota mais alta à Fonte das Congostas) e, o tal, na Rua de S. Francisco. O último estava na Ferraria de Baixo, hoje Rua Comércio do Porto.

 
 

Capela do Senhor dos Passos na Rua de S. Sebastião

 
 

Capela do Senhor dos Passos em frente à Igreja de S. Nicolau – Fonte: Google maps
 
 
 
Na quinta-feira à noite, a imagem do Senhor dos Passos fazia percurso inverso, saía de S. João Novo para a Sé.
Acompanhava-a uma personagem paga em dinheiro e com uma refeição de polvo e feijão fradinho, vestido com uma capa escarlate e um capacete romano que, de tempos-a-tempos, tocava uma buzina, simbolizando um judeu, que chamava os seus, para virem cruxificar Cristo.
Essa personagem era o “Fagote”, que era continuamente apupado pelo povo.
Noutros tempos, outro cortejo saía na Sexta-feira Santa da igreja de S. Francisco para o convento de Santa Clara, na “procissão do Senhor Morto”.
Uma outra Procissão do Senhor dos Passos, na segunda metade do século XIX, acontecia no Domingo de Páscoa em Paranhos, durante a qual, numa cerimónia que consistia na reunião de dois andores, vindos de lados opostos, um do Senhor dos Passos e outro da Senhora das Dores, era produzido um sermão por um orador.
Algumas destas personagens, com grandes dotes de oratória ficaram célebres, pelo efeito produzido. Hoje, nas imediações duma capela próxima da qual se dava o “encontro” existe, ainda, a Rua do Encontro.
Também, na Semana Santa, organizou a Misericórdia do Porto uma procissão até 1835, chamada dos Fogaréus.
Os fogaréus eram grandes tigelas feitas de arcos de pipas girando sobre dois eixos a fim de poderem suster-se equilibradas sobre a haste.
Dentro delas ardiam pinhas para darem bom lume.
A Procissão das Endoenças (indulgências) ou dos Fogaréus, realizava-se, através das ruas do Porto, na noite de Quinta-feira Santa.
O préstito, fechando com a insígnia de Cristo Morto, partia da igreja da Misericórdia e dirigia-se ao Convento da Ave-Maria, em cuja igreja entrava, e seguia pela Rua do Loureiro acima, atravessava a Rua Chã e de Santo António do Penedo, e entrava na Igreja de Santa Clara. Subia a Calçada de Vandoma e, depois de passar sob o Arco, entrava na Sé Catedral. Descia, então, até à Rua Nova, entrando na Igreja de S. Francisco, e subia depois pela íngreme Ferraria de Baixo até S. Domingos. Daí, recolhia à Misericórdia já perto da meia-noite. 
Em 2018, a procissão das Endoenças voltou a sair da Rua das Flores, da Igreja da Misericórdia, subindo até à Sé. 

 
 

Gravura de Gouveia Portuense da Procissão dos Fogaréus– Fonte: “portoarc.blogspot.pt”



 

Última Procissão, promovida pela Venerável Ordem Terceira de São Francisco, na Quarta-Feira de Cinzas, em 1905, descendo a Rua de Sá da Bandeira - Cortesia do padre Vítor Ramos

 
 
Muitas outras procissões que percorreram as ruas da cidade eram dedicadas à Virgem Maria, à Nossa Senhora da Saúde e outras referências do calendário litúrgico.

 
 
 

Procissão, em 1905, passando na Rua dos Clérigos – Ed. Aurélio da Paz dos Réis


 
 

Procissão, em 1906, passando na Rua dos Clérigos – Ed. Aurélio da Paz dos Réis

 
 

Procissão, em 1908, descendo a Rua das Carmelitas – Ed. Aurélio da Paz dos Réis
 
 
 
Outras procissões eram levadas a cabo, como sejam as “Procissões de Graças” e as “Procissões de Preces”. Como exemplo, se refere no texto seguinte as que tinham a presidir o “Senhor Jesus d’Além”, adorado numa capela do lado de lá do rio, em V. N. de Gaia, que o povo costumava glosar numa cantoria:

 
“Capela do Senhor d’Além
Lá se foram as romarias
Estás do lado errado da ponte
Deus te dê melhores dias"
 
 
 
 
"A capela do Senhor d'Além, que fica nas abas da Serra do Pilar, mesmo em frente aos Guindais, além-Douro, portanto, e daí o nome, e a respectiva irmandade foram, durante muitos anos, "administradas pela cidade" (do Porto). Em determinadas ocasiões os edis portuenses, na qualidade de administradores do templo e da confraria, iam ao lado de lá buscar a imagem do Senhor d'Além para que participasse nas chamadas "Procissões de Preces". Acontecia, por exemplo, em tempos de seca ou de inundações. A Câmara organizava então "procissões de preces", para pedir chuva, se fosse o caso, ou para solicitar o termo de calamitosas cheias. Mas também se realizavam, com a presença da imagem do Senhor d'Além, "Procissões de Graças". Como aquela que aconteceu no dia 18 de Novembro de 1755. Dias antes a cidade de Lisboa havia sido destruída por um terrível terramoto. A cidade do Porto saíra praticamente ilesa dessa catástrofe. Aqui caíra apenas o tecto da capela de S. Roque, que ficava perto da Sé; a torre da igreja dos padres da Congregação de S. Filipe de Nery (Congregados) e pouso mais. Logo naquele dia, segundo consta da acta da reunião municipal que então se realizou, "… sendo convocados na forma do estilo a Nobreza e Povo foi proposto pelo Procurador da cidade que, não tendo acontecido entre nós nem ruína nem mortandade, era justo fazer-se uma Procissão de Graças e que estas deviam ser rendidas especialmente à Veneranda Imagem do Senhor d'Além…"
Cortesia de Germano Silva
 
 
 
 


 
 
 
Por vezes, para as “Procissões de Graças”, o Porto lançava mão de ajudas divinas externas e o Senhor Jesus de Bouças (Matosinhos) estava, ali, à mão de semear.
Assim, a imagem do Senhor de Bouças seria levada várias vezes em procissão solene à cidade do Porto, em situações fatídicas para o Porto e a pedido das gentes da cidade, fosse por calamidades de origem climatérica, fosse por doenças infecto-contagiosas.
A primeira vez foi em 1526, ano de tanta chuva, em Portugal, que levou à perda da maior parte das searas e a muitas cheias fluviais.
A segunda vez, de que se tem conhecimento, foi a 07/06/1585, seguindo-se a 31/05/1596 e a 20/06/1644.
Nesta última visita, em 1644, no dia 20 de Junho, a presença da imagem foi solicitada à irmandade do Bom Jesus, pelo Senado do Porto, que pediu auxílio para que tivesse fim um dilúvio, tornado calamidade pública e que afectara a cidade. Nesta procissão ter-se-ão incorporado cerca de quarenta mil pessoas.
Outro tipo de cortejo religioso era o chamado “Senhor de Fora”.
Estes cortejos, dirigidos por uma entidade religiosa, atravessavam as ruas da cidade e dirigiam-se a casa de moribundos, que estavam prestes a exalar o último suspiro.

 
O “Senhor de Fora” era um dos quadros mais sentimentais, de mais suave ternura e maior unção religiosa, tocante e pequeno na sua modesta simplicidade, mas grande e sublime no seu significado cristão, era a passagem do “Senhor de Fora”, através das ruas da nossa cidade.
 
 
 

O “Senhor de Fora” percorrendo as ruas do Porto – Desenho de Manuel Monterroso

 
 
A saída do cortejo religioso, para dar o viático a um moribundo, era sempre acompanhada pelo "toque do Senhor de Fora", badalado por um sino da igreja da paróquia.
Qualquer que fosse a hora, dia ou noite, os vizinhos acompanhavam o cortejo, mesmo não sabendo quem era a pessoa que ia ser assistida.
Viático é, na Igreja Católica, a comunhão eucarística dada àqueles que estão prestes a morrer.




Cruzeiros


Outras provas de devoção aconteciam dos cruzeiros dedicados ao Senhor da Boa Fortuna, a grande maioria já retirados e desaparecidos.
Pelo sítio dos Carvalhos do Monte e da Porta do Sol esteve, em tempos, um cruzeiro dedicado ao Senhor da Boa Fortuna.
Este ficava junto da actual Rua Saraiva Carvalho, onde se situa hoje o Largo 1º de Dezembro; o segundo ao cimo da Rua de Ferraria de Cima, actual Rua dos Caldeireiros, onde era feita uma festa; um terceiro pode ser observado na Rua do Barredo.

 
 
 

Largo de Santo António do Penedo e, à direita, o cruzeiro onde estava exposto a imagem do Senhor da Boa Fortuna – Gravura (antes de 1875) de Gouvêa Portuense





Senhor da Boa Fortuna
 
 
 
Na foto acima está a imagem do Senhor da Boa Fortuna, que encimava o cruzeiro existente nos Carvalhos do Monte e que, agora, se encontra junto do jazigo de Freitas Fortuna, no cemitério da Lapa, onde também está sepultado Camilo Castelo Branco.

 
 
 

Anúncio de festa do Senhor da Boa Fortuna, ao Postigo do Sol - In trisemanário "O Curioso", de 11 de Setembro de 1846 (6ª Feira)

 
 
Hoje, a festa da Rua dos Caldeireiros decorre no mes­mo sítio, mas junto  de um crucifixo que se encontra exposto num nicho existente na fachada de um prédio da Rua dos Caldeirei­ros, na esquina com a Travessa do Ferraz, já que os cruzeiros foram há muito retirados das ruas da cidade.
 
 
 
 

Na fachada do prédio, mais próximo, na Rua dos Caldeireiros, observa-se o nicho dedicado ao Senhor da Boa Fortuna – Fonte: Google maps



O trajecto das procissões era marcado por estações assinaladas por cruzeiros de pedra. Na cidade do Porto, eram às dezenas, essas cruzes implantadas nos percursos daqueles cortejos religiosos.
A cidade chegou a um ponto que, teve, no seu desenvolvimento natural, de as fazer recolher. Não foi fácil.
 
 
 
“(…) os chamados cruzeiros ou padrões, que estavam fixados na via pública. Eram produto da devoção popular e correspon­diam, em alguns casos, a promessas feitas por devotos.  Por exemplo: em 1643, três anos depois da restauração de independência de Portu­gal, um devoto do Santo António mandou levantar, nos Carvalhos do Monte, o atual largo do 1.° de Dezembro, junto da capela que aí existia dedicada ao Santo António, um cruzeiro da invocação deste santo com uma legenda na base em que se pedia "um Padre Nosso e uma Ave-Maria pela alma dos leais ao nosso reino". 
Durante muitos anos a única iluminação pública que à noite havia na cidade provi­nha da chama, mortiça, na maioria dos ca­sos, que tremulava em lampiões ou lampa­rinas colocados na base em que assentavam os cruzeiros que estavam espalhados um pouco por toda a cidade. Só na Rua do Bon­jardim havia quinze. 
Logo a seguir ao Cerco, ou seja, a partir de 1834 o Porto começou a progredir de uma forma até aí nunca vista. É o tempo do iní­cio da industrialização. Começam a ser construídas inúmeras fábricas. Da provín­cia vem gente para trabalhar na indústria. Aumenta a população e aumenta o consu­mo. Todos os dias abrem novos estabeleci­mentos de comércio. Constroem-se merca­dos públicos, abrem-se novas ruas, rasgam-se amplas avenidas, surgem os primeiros transportes coletivos. A cidade, especial­mente às terças-feiras, dia de feira semanal, abarrota de gente. O trânsito de "america­nos", de carroças e de carros de bois faz-se com dificuldade. 
Perante o cenário acima exposto, a edili­dade portuense chega a uma conclusão: os cruzeiros na via pública são um estorvo ao desenvolvimento da urbe. E em 1838, uma ordem camarária manda que se retirem da via pública. A imposição não foi bem rece­bida pela população. E levou muitos anos a ser executada. 
Entretanto, no que se refere ao cruzeiro do Senhor da Boa Fortuna que estava nas portas do Sol, como era conhecido o sítio, atrás referido, da atual Rua de Augusto Rosa, foi de lá retirado por João António de Frei­tas Fortuna, com a alegação de que o cruzei­ro era dele. Ninguém protestou. Nem a Câ­mara. Afinal, cumprira-se o que a edilidade pretendia: que o cruzeiro fosse retirado da via pública.  O cruzeiro está agora no jazigo da família Freitas Fortuna, no cemitério da Ordem da Lapa onde, para além dos membros daque­la respeitada família portuense, também está sepultado Camilo Castelo Branco, que foi grande amigo de António de Freitas For­tuna. Com o cruzeiro da Rua dos Caldeireiros, sucedeu exatamente a mesma coisa. Du­rante uma determinada noite de 1869, a cruz, representado o Senhor da Boa Fortu­na, que estava ao topo da antiga Ferraria de Cima, desapareceu misteriosamente. Ou talvez não! 
Soube-se, com efeito, que fora retirado do local por um vizinho também com a argu­mentação de que o cruzeiro era seu. Ainda houve quem se queixasse ao vereador To­más Joaquim Dias, responsável pela retira­da dos cruzeiros da via pública. Mas como no caso precedente, aqui a Câmara nem se­quer atuou. Afinal, cumprira-se a determi­nação camarária que ordenava a remoção dos cruzeiros da via pública. 
Uma curiosidade: aquele vereador empenhou-se com tanto afinco e determinação em fazer cumprir a disposição camarária que passou à história com o epíteto de "o arrinca Cristos". 
Na edícula (nicho reservado para abrigar as imagens dos santos) da Rua dos Caldeireiros está hoje uma pequena cruz com a imagem de Cristo crucificado. É junto dela que decor­re a festa ao Senhor da Boa Fortuna da fre­guesia da Vitória, uma tradição há anos re­cuperada. Festa grandiosa fazia-se, noutros tempos, ao Senhor da Boa Fortuna da Por­ta do Sol.
No Barredo, local outrora habitado por mari­nheiros, embarcadiços e estivadores, ainda hoje é possível encontrar vestígios de antigos símbolos de religiosidade ligados a patronos ou padroeiros das atividades marítimas. Na traves­sa dos Canastreiros, ainda se veem os restos de um oratório onde se venerava a imagem do Se­nhor de Matosinhos. Na Rua de Baixo é visível o nicho do Senhor dos Aflitos. Mas a imagem mais venerada por estas bandas é a do Senhor da Boa Fortuna, exposta numa espécie de capela como que embutida na frontaria de uma casa do século XVII, com a sua lâmpada suspensa de um varão de ferro”. 
Com a devida vénia a Germano Silva
 
 
Quase todos os cruzeiros eram importantes para quem os adorava. Um deles encontrava-se fronteiro ao edifício que foi os Celeiros da Cidade, à Cordoaria, no local que hoje é o Palácio da Justiça e, depois, alojou os quartéis militares dos terços destinados à guarnição da cidade.
Era o “Cruzeiro dos Peixeiros”, que foi removido para a igreja de S. José das Taipas, em 1 de Junho de 1869, quando foi dada ordem municipal para a sua remoção. Os devotos conseguiram que ele fosse preservado na vizinha igreja de S. José das Taipas.
 
 

Cruzeiro dos Peixeiros, actualmente, no Museu da Igreja de S. José das Taipas, à Cordoaria – Ed. Graça Correia
 
 
 
 
Em 14 de Outubro de 1869, recolheram-se no cemitério da igreja de Santo Ildefonso treze cruzeiros pintados com a Crucifixão, de várias invocações, os quais a Câmara retirou das ruas do Bonjardim e Calvário, não sem vivos clamores dos devotos.
No local se benzeram, no dia 1 de Novembro, motivo de gáudio e rija festa com iluminação, fogo, embandeiramentos e filarmónicas.
Nos nossos dias, restam muito poucos destes cruzeiros, implantados na cidade.
 
 
 
 

Cruzeiro do Senhor do Padrão, ao Carvalhido. Encontra-se, actualmente) a cerca de meia centena de metros do local primitivo – Ed. JPortojo

 
 

Cruzeiro do Padrão da Légua na confluência das ruas de Recarei e do Senhor – Fonte: Google maps

 
 
 
Alminhas, Oratórios e Nichos


As alminhas são locais de culto que se destinam à oração e à recolha de esmolas, colocadas, por isso, em locais de trânsito.
Estão ligadas à ideia antiga de Purgatório, que teve vencimento pleno a partir do Concílio de Trento (1545).
As alminhas tiveram grande expressão, em Portugal, principalmente, no norte, podendo ainda encontrar-se algumas espalhadas pela cidade do Porto. Há quem estime a sua existência, ainda, em cerca de vinte.
Muitas alminhas encontravam-se, então, distribuídas pela cidade.
A sua finalidade é a redenção das almas que vão para o purgatório e com a ajuda das esmolas e missas mandadas rezar pelos familiares dos falecidos, seja obtido aquele desiderato.
 
“As alminhas são a mais singular forma que o povo cristão encontrou para lembrar seus mortos (…). São quase sempre pedras velhas talhadas como capelinhas (…). Eram memorial. Encerravam a lição do Purgatório”. Alberto Correia – Fonte: “aviagemdosargonautas.net”
 
 
Por exemplo na freguesia de Ramalde ainda se encontram três “Alminhas”.
 
 
 

Alminhas junto ao viaduto da Rua Pedro Hispano (Ramalde) – Ed. José Magalhães


 

Alminhas na Rua do Castelo de Guimarães (Ramalde) – Ed. José Magalhães


 

Alminhas na Rua do Monte dos Burgos (Ramalde) – Fonte: “gisaweb.cm-porto.pt”

 
 
As alminhas da foto acima estão, hoje, no mesmo local (esquina da Rua do Monte dos Burgos com a Rua de Santa Luzia), mas embutidas num prédio.
 
 
 

Alminhas na esquina das ruas do Monte dos Burgos e de Santa Lúzia

 

 
 
Alminhas na Capela do Senhor do Socorro, antiga capela do Senhor do Olho Vivo, na esquina das ruas Antero Quental e Monte da Lapa

 
 
 

“Alminha” na fachada sul da capela do Senhor da Agonia, na Ramada Alta

 
 

“Alminha” nas traseiras da capela do Senhor da Agonia, na Ramada Alta


 
A "alminha", das fotos abaixo, ainda existe embutido na fachada de um prédio, situado na Rua Formosa, quase em frente à Rua Dr. Alves da Veiga, desde os tempos em que foi construído por um proprietário devoto.
Nos dias de hoje, o zelador daquelas alminhas é a paróquia de Santo Ildefonso.


 

Alminhas da Rua Formosa
 
 
 
 
 

Alminhas da Rua Formosa – Ed. “ruasdoporto.blogspot.pt”


 
 
Os oratórios eram locais de culto e reportavam a devoções específicas de alguns residentes na área de implantação.
 

Oratório do Senhor dos Aflitos, c. 1900 – Fonte: Foto Guedes; CMP, Arquivo Histórico Municipal
 
 
 
 
O oratório da foto acima esteve colocado, até 1911, na esquina das ruas da Bainharia (à esquerda), Escura (em 1.º plano), dos Pelames (à direita) e do Souto (em frente). Foi, naquela data, retirado por ser alvo de ataques a tiro, feitos por desconhecidos.



 

A mesma perspectiva (actual) da foto anterior – Fonte: Google maps
 
 
Na Rua do Barredo, também se presta culto ao Senhor da Boa Fortuna, exposto num nicho embutido num prédio.

 
 
Nicho do Senhor da Boa Fortuna, no Barredo









Em 18 de novembro de 1682, é constituída a Confraria de Nossa Senhora da Silva, no Hospital de São João Baptista (na Rua dos Caldeireiros, n.º 104), por fusão das duas associações dos ferreiros de Cima (de Vila) e dos ferreiros de Baixo (da Reboleira).
O hospital tem no 1.º andar uma capela de Nossa Senhora da Silva e, também, tem as imagens de São João Batista e de São Baldomero.

 
 

Oratório e capela de Nossa Senhora da Silva
 
 
 
 
Nas fotos abaixo, sen­sivelmente a meio da Rua de Cristelo (Cristelo, isto é, um Cristo pequeno?), do lado direito, para quem vai da Calçada de Sobre-o-Douro em direcção à Alameda de Basílio Teles, encontra-se uma cobertura envidraçada, en­costada à fachada de um prédio, sob um al­pendre, e que protege uma cruz de pedra, onde foi pintada a imagem de Cris­to. À entrada do ano de 2018, o oratório estava abandonado e vandalizado.
Em 2022, já se encontrava preservado.
 
 
 

Oratório na Rua de Cristelo em Massarelos, em 2018 – Fonte: Google maps

 
 

Oratório na Rua de Cristelo, em 2018 – Colecção do Engº Amaral Gomes

 
 
Ainda em Massarelos, mas na Rua da Fonte de Massarelos, encontra-se outro exemplo de devoção das gentes deste sítio, antigamente muito ligado às lides do rio e do mar.
 
 
 
 

Oratório da Rua da Fonte de Massarelos – Fonte: JPortojo
 
 
 
“Massarelos desde tempos imemoriais ligada ao rio e ao mar, as suas gentes criaram esta memória provavelmente em 1732. Reconstruída em 1907 com obras que incidiram sobre a cobertura, os azulejos e as grades em ferro. A manutenção é feita pelos moradores. Bem, os azulejos não os vi.”
Fonte: J. Portojo 
 
 
“ (…) trata-se, aqui também, de uma imagem de Jesus cru­cificado pintada numa cruz de granito. A pie­dade popular, para preservar a imagem da intempérie, mandou erguer um elegante al­pendre rodeado por igualmente elegante grade de ferro. O que nunca falta, mesmo nos nossos dias, junto à imagem do Senhor dos Aflitos, são flores frescas, nem nunca se apa­ga a chama votiva da lamparina que os devo­tos do sítio mantêm permanentemente ace­sa. Mas não era somente dos rendimentos da pesca ou do tráfego marítimo que, antiga­mente, viviam as populações de Massarelos”.
Fonte: Germano Silva, In JN
 


Procissões na actualidade
 
 
Embora com uma carga emocional mais contida estas manifestações de fé continuam a ter alguns seguidores.
Assim, numa organização das vigararias nascente e poente da cidade do Porto, uma procissão dedicada à Virgem Maria, realizou-se a 31 de Maio de 2022 (3ª Feira), sendo presidida pelo bispo do Porto, D. Manuel Linda.
Teve início na Igreja da Santíssima Trindade e percorreu as ruas de Fernandes Tomás, Santa Catarina, Passos Manuel, Praça D. João I, Dr. Magalhães Lemos, Avenida dos Aliados e regressou à Trindade onde teve lugar a Bênção nas escadas da igreja. Foi acompanhada por mais de mil fiéis.
O bispo diria que, naquele dia, o calendário litúrgico assinalava o Dia da Visitação de Nossa Senhora a sua prima Isabel para a ajudar no seu tempo de gravidez.
Na ocasião, o prelado anunciou, ainda, que a procissão do Corpo de Deus ocorreria a 16 de Junho de 2022.
 
 

Procissão das velas, pelas ruas do Porto, em 31 de Maio de 2022