segunda-feira, 24 de junho de 2019

25.54 Onde se comiam, no Porto, as melhores tripas, em 1957?


Já muitos têm conhecimento de que os portuenses são apelidados de “Tripeiros”, mas, alguns, poucos, desconhecem os pormenores que, por isso, interessa serem contados.
O Infante D. Henrique conhecendo os cabedais, as possibilidades e patriotismo dos portuenses, pediu-lhes que construíssem uma parte importante da armada com que D. João I pretendia, em 1415, conquistar Ceuta. Correspondendo a esse desejo a cidade, com grande esforço e despesa, ofereceu 20 naus e 7 galés. Diz a lenda que,

“Um dia, o Infante D. Henrique apareceu inesperadamente no Porto para ver o andamento dos trabalhos e, embora satisfeito com o esforço despendido, achou que se poderia fazer ainda mais. Então, o Infante confidenciou ao mestre Vaz, o fiel encarregado da construção, as verdadeiras razões do empreendimento. Pediu ao mestre e aos seus homens mais empenho e sacrifícios. Mestre Vaz assegurou ao Infante que iriam fazer o mesmo que tinham feito cerca de trinta anos atrás aquando da guerra com Castela. Dariam toda a carne da cidade para abastecer os barcos e comeriam apenas as tripas. Comovido, o infante D. Henrique disse-lhe que esse nome de "tripeiros" - alcunha que lhes tinha sido dada há trinta anos - era uma verdadeira honra para o povo do Porto.
Fonte: Infopédia



Muitos estudiosos da história da cidade do Porto e dos portuenses argumentam que, o epíteto de “Tripeiros” atribuído aos portuenses, nada tem a ver com aquela lenda.
De facto, a elaboração e confecção do pitéu, tão característico, reportará ao tempo em que por cá andaram os suevos, os mesmos, a quem se atribuiu o levantamento da igreja de Cedofeita, e que sabiam cozinhar, a preceito, as ditas tripas.
Seja como for, a lenda pegou e um monumento referente a ela, para consagração do feito dos portuenses, foi levantado no Jardim de António Calém ou Jardim do Ouro, em 1960, da autoria do escultor Lagoa Henriques.
O grupo escultórico compõe-se de três figuras: de pé, um construtor das naus, tendo á sua direita uma quilha; junto a si um carpinteiro com uma enchó prepara uma peça em madeira; atrás um açougueiro junto da rês já esfolada, e que representa a oferta da carne limpa à armada que seguiria para Ceuta, reservando para a cidade as tripas.



Monumento ao “Tripeiro”



As “tripas” (à moda do Porto) são, assim, prato que passou, desde há muito, a iguaria.
Ernesto Chardron foi livreiro e editor.
Nasceu em França, em 1840, falecendo no Porto, em 1885.
Fundou no Porto, a Livraria Internacional, na Rua dos Clérigos, nº 96-98, em 1869. No mesmo local seria, após a sua morte, instalada a livraria Lugan & Genelioux e, em 1894, a firma José Pinto de Sousa Lello & Irmão, a qual veio a construir, em 1906, na Rua dos Carmelitas nº 144, o actual estabelecimento, passando, em 1919, a designar-se por Lello & irmão.



Desfile de Carnaval, em 1905, passando em frente à igreja dos Clérigos


Comentando a foto acima, podemos afirmar que, à direita, no prédio mais recuado, esteve no canto (parcialmente visível) mais próximo, instalada a Livraria Internacional, de Ernesto Chardron e, após a sua morte, em 1885, sucessivamente, a livraria Lugan & Genelioux e, a partir de 1894, a de José Pinto de Sousa Lello & Irmão que, no ano seguinte a este corso carnavalesco, irá mudar a firma, um pouco mais para cima, para instalações que ainda hoje ocupa.


Planta de Telles Ferreira, de 1892, da zona envolvente à igreja dos Clérigos


Na planta acima está destacado e identificado o nºs de polícia, 96-98,  local onde esteve a Livraria Internacional de Ernesto Chardron.
Na planta pode ver-se também que, o edificado onde esteve a Livraria Internacional (nºs 96-98), era denominado de “Casa de António José Cabral”.
António José Cabral (1783 – 1865) foi avô paterno de Diogo José Cabral (Porto, 1864 – 1923), 1º conde de Vizela.
Proprietário de uma pequena tecelagem com 22 operários, sita na Rua do Príncipe (Miguel Bombarda), foi acionista fundador, em 1846, da Fábrica de Fiação e Tecidos do Rio Vizela, da qual, ao fim de algum tempo, passou a ser o sócio maioritário.
Foi então o proprietário do edificado no Largo do Correio ou Largo dos Clérigos, em frente à igreja dos Clérigos, na mesma área onde o seu neto haveria de construir, na Rua das Carmelitas, o chamado palacete do Conde de Vizela.
Sobre Ernesto Chardron, um apreciador da boa comida, Ramalho Ortigão, nas «As Farpas», 3º tomo, Agosto de 1886, diz-nos:



«Morreu no Porto o editor Ernesto Chardron, cujo nome ocupa na história da livraria portuguesa d'este século um dos logares mais importantes e mais vastos.
Antigo caixeiro da casa Moré, por alguns anos administrada por Gomes Monteiro, depois da morte do fundador, Chardron teve o prémio grande n'um bilhete da loteria; e foi com esse fundo de acaso, 8 ou 10 contos de reis, que ele se estabeleceu por sua conta e montou a casa editorial que em pouco se tornou famosa.
Entre os frequentadores ordinários do largo dos Loios e da praça D. Pedro no Porto, Chardron era muito mais celebrado pelos menus dos seus jantares do que pelos catálogos das suas publicações.
Ele foi, com efeito, durante os últimos vinte anos o homem que melhor comeu na cidade do Porto, onde a gastronomia está longe de se poder considerar á altura do seculo.
Tirem-lhe o arroz dôce, tirem-lhe o arroz de forno, tirem-lhe o peixe frito do Reimão, tirem-lhe as decantadas tripas - espécie de dobrada de estilo composito, que se serve dentro de uma terrina em que entra tudo quanto constitui um jantar, desde a sopa até o queijo e a pera - e a cidade do Porto tem esgotado todo o seu reportório culinário.
Chardron cultivava excepcionalmente a arte das boas ceias planturosas e finas, e era unicamente à sua mesa de celibatário rico, a que ele não reunia senão sábios compatriotas e raros literatos nacionaes arrancados á idolatria da tripa e da orelheira com feijão pela catequese do Café Anglais, que a gente podia, dentro dos muros da cidade invicta, reatar conhecimento com a suculenta galinhola ou com a aromática perdiz, sucessivamente assada e constipada no espêto, já por um hemisferio já pelo outro, entre as correntes de ar e as baforadas de lume mais sabiamente combinadas para manter no volátil assado e servido a ponto tudo quanto ele pode oferecer de mais requintado e de mais profundo no chorumento suco da polpa, na loura, estalante e fusível delicadeza da pele.
Era unicamente à comunhão da sua mesa que, ao lado da sagrada partícula venatória, o peregrino encontrava o fino legume de maravilhosa precocidade, a tenra ervilha apenas desmamada da primeira vagem do ano, a pingue alcachofra anodina, a trufa ardente e insidiosa, e o calmante espargo, enquanto na taça das libações corria num fio tépido, aromático e rubro, um legitimo Bourgogne, ou cahia em granizo um autentico Champagne.
A cozinheira de Chardron só fazia bem o assado. Seu amo não lhe permitia que se achincalhasse tocando em qualquer outro serviço que não fôsse aquele para que a providência manifestamente a destinara, e era única e exclusivamente como rotisseuse que a empregava.
Quem no Porto sabia fazer os civets, as gibelottes, as matellotes, as ramoulades, era a cozinheira de Genilioux.
Chardron, para comer em termos acabara por dividir o jantar em fascículos, fazendo aparecer a introdução e a primeira parte da obra em casa do seu amigo, a segunda parte e o epílogo em sua casa.
Na escolha dos livros era muito mais latitudinario que na escolha das iguarias. O seu depósito de impresso ocupa dois ou tres prédios, e é uma cousa assombrosa de variedade e quantidade; - tratados vários; relatórios, regulamentos, manuaes; traduções de Ponson du Terrail, de Montépin, de Eugène Sue, de Frederico Soulié, de Fernandez y Gonzalez, de Legouvé, de luiz Figuier, de perez Escrich, de Lamartine, etc.; compendios, dicionarios, enciclopedias; metodos facilimos, discursos, rudimentos, ocios, repositorios, noticias, elementos, viagens, fantasias, e vidas; sermonarios, alamanques, agendas, albuns, livros de missa, descobertas, maravilhas; e uma serie infindavel de obras devotas e de cartapacios consagrados á classe eclesiastica, como o Tesouro de prégadores, a Vida de Pio IX, o Catecismo exemplificado, a Cerimonia da missa, Ancora da salvação, Discurso ácêrca da religião catolica, Os heroes catolicos, Os jesuitas, A lei de Deus, A hospedaria do anjo da guarda, O maná do sacerdote, Ás senhoras da associação da caridade, etc., etc., etc.
Nada mais interessante para a história da mentalidade portuguesa durante os últimos vinte anos do que seguir atravez d'este dedalo de publicações, d'estes centenares de volumes em brochura e em papel, sobre assuntos mais variados, mais diversos e mais contraditórios, o fio da curiosidade publica, medindo a procura de cada obra pelo que resta da respectiva edição no armazém. Recomendo aos sucessores de Chardron esse interessante estudo estatístico.
Além da grande e confusa massa de livros a que me refiro, Chardron teve a honra de editar obras dos nossos primeiros escritores, como Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz e Guerra Junqueiro. Por muitos anos foi ele o editor único de Camilo, mas tanto este como outros eram já celebres e ilustres quando Chardron lhes imprimiu os livros. Não creio, de resto, que ele próprio os lesse, nem que, lendo-os, encontrasse uma diferença incomensurável entre o Crime do Padre Amaro - por exemplo - e O maná do sacerdote.
Chardron publicou muitos livros, comprou muitos manuscritos, e foi com todos os escritores da sua convivência um comerciante honrado, de um espírito conciliador e benigno, de um coração largo. Aqueles cujas obras ele editou, e que lidaram com ele, recordarão por muito tempo a sua jovial fisionomia, como a de um d'esses raros homens alegres, saudáveis e bons, que sabem adoçar a vida no que ela tem de mais áspero, tratando os negócios como se tratam os prazeres, e não sendo menos sérios nos seus contratos do que os maiores massadores d'este mundo. Essa é a bela e simpatica feição que o distingue.
Enquanto a determinar, atravez da publicidade, alguma especial corrente de idéas; enquanto a distinguir e a agrupar em torno de si, na confusa refrega, aqueles que teem de ser os vencedores e os chefes do movimento novo, Chardron não o sabia fazer.
Assim está inteiramente fora do seu plano de editor o fino tacto com que Jorge Charpentier, por exemplo, soube enfeixar a obra de Flaubert, de Zola, dos dois Goncourts, de Maupassant e de Daudet.
Todos os leitores conhecem hoje perfeitamente a afinidade que existe entre esses seis escritores. Charpentier sentiu-a antes que o público a compreendesse. Eis a habilidade que não teve Chardron.»


No texto anterior, Ramalho Ortigão faz referência às tripas à moda do Porto, como um dos expoentes do repertório culinário dos portuenses, que ele achava um pouco curto. Estávamos na 2ª metade do século XIX.
Fama nas tripas, por esses tempos, tinha o Restaurante do Reimão, na Rua do Reimão (depois, Rua de S. Lázaro e actual Avenida Rodrigues de Freitas), muito frequentado por Camilo Castelo Branco.


Planta de Perry Vidal, de 1844 (actualizada em 1865), com destaque para a localização do Restaurante do Reimão



Planta de Telles Ferreira, de 1892, com destaque para o local em que esteve o célebre Restaurante do Reimão, frequentado por Camilo Castelo Branco



Grande Hotel Reimão – Gravura extraída de postal


O Grande Hotel Reimão foi inaugurado em 1891 e construído no local em que esteve o célebre Restaurante do Reimão.
Tinha também serviço de restaurante, mas, para quem conheceu, nada tinha a ver com o que Camilo frequentou.
Este, estava instalado numa casa térrea com um amplo quintal e ramada, onde, na sombra dela, se comiam os petiscos em mesas de ardósia.
Num barracão coberto, comia quem não o quisesse fazer ao ar livre.


Local onde esteve o Hotel do Reimão – Fonte: Google maps


Perto da estação da mala-posta, para Viana do Castelo, defronte do convento dos carmelitas, no Carmo, o restaurante “Caldos de Galinha” tinha fama de servir as melhores tripas da cidade, e conhecido ainda por ser frequentado, assiduamente, pelo conde de Resende, sogro de Eça de Queiroz.
Bem perto, na Praça de Santa Teresa (hoje a Praça Guilherme Gomes Fernandes), o “João do Buraco” na confecção daquele prato não receava também as comparações com os melhores. Em 1899, as suas instalações haveriam de ser ocupadas por uma casa de pasto.

«Abriu na praça de Santa Teresa, 70, uma casa de pasto com a denominação de “Casa de Pasto do Ferreira” na antiga casa do” João do Buraco”.»
In jornal “A Província”, de 16 de Outubro de 1899 – 2ª Feira


Praça de Santa Teresa, em planta de Telles Ferreira, de 1892


Legenda

1. Fonte de Santa Teresa, à entrada da praça (hoje, a Praça Guilherme Gomes Fernandes)
2. Igreja do convento
3. No, nº 70, o “João do Buraco”




Não pode, aqui, também deixar de ser referida a Estalagem do "Rainha", que ficou célebre pelas suas tripas à moda do Porto. Situava-se a poente, na Praça D. Pedro (actual Praça da Liberdade), no local por onde estiveram também o “Restaurante Europa” e o “Hotel Antiga Cascata”.
Hoje, esse chão, é ocupado pelo edifício da delegação do Banco de Portugal.


Num dos prédios à direita esteve a “Estalagem do Rainha”. À esquerda, bem no alto, a Torre dos Clérigos (foto anterior a 1916)



Descrição da estalagem do Rainha


O texto acima foi inserido por Alberto Pimentel no “O Porto na Berlinda – Memórias D’uma Família Portuense” e foi extraído da obra “Viagem ao Minho” da autoria de Gomes D’Amorim (A Ver-o-Mar, Póvoa de Varzim, 13 de Agosto de 1827 - Lisboa, 4 de Novembro de 1891).
Esta obra de Gomes D’Amorim foi publicada na revista “O Panorama”, entre 1853 e 1857.
Aquela obra de Alberto Pimentel, viu a luz do dia, em 1894, e foi editada pela Livraria Internacional de Ernesto Chardron - Casa Editora, M. Lugan, sucessor.
Num outro texto, do escritor Arnaldo Leite, é feita alusão à denominação popular da iguaria culinária – TRIPAS.
Tudo se passa num restaurante a poucos quilómetros do Porto, e depois de ler na ementa, o prato, “Dobrada à Portuense”.
Chamado o chefe de mesa, ocorre o seguinte diálogo:

“- V. Exª desejava saber…!
 - A minha excelência desejava que a sua excelência me explicasse o que eu vou agora comer.
 - Saiba V. Exª que é dobrada.
 - E isso que vem a ser?
 - Saiba V. Exª que são tripas.
 - Ó homem de Deus! Exclamei dando um murro na mesa – então você sabe que são tripas e pranta, aqui, na ementa, dobrada?
 -É que…sim…vossa Exª compreende, é mais…sim…é mais…
Dobrada? Não! Nós somos dos dantes quebrar que torcer. Podemos partir, mas quebrar, nunca! Sempre firmes, tesos e direitos!
TRIPAS! TRIPAS! TRIPAS!”

A designação de dobrada, para as nossas tripas, tripas, tripas, é de uso a Sul do País, lá para Lisboa, como nos prova Álvaro de Campos.


“Dobrada à Moda do Porto

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,

Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo ...

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio”.

Álvaro de Campos, in "Poemas"
(Heterónimo de Fernando Pessoa)


E as histórias de restaurantes de sucesso, nesta vertente da restauração (tripas à moda do Porto), são imensas.
Em 1884, o Restaurante “Às Boas Tripas”, na Rua de Santo Ildefonso, 366, fazia-se anunciar.

“Há boas tripas às quintas, sábados e domingos e há também o bom vinho de Amarante.”
In jornal “O Primeiro de Janeiro”, de 19 de Janeiro de 1884 – Sábado



Restaurante Campestre, na Rua do Meio (Rua Coelho Neto), nº116
“Neste estabelecimento continua a haver bons petiscos, servidos por listas, assim como nas quintas-feiras e sábados tripas, não faltando o bom verdasco. Está aberto até uma hora da noite”.
In jornal “Diário Mercantil” de 7 de Julho de 1864 – 5ª Feira


Restaurante Porta do Sol, na Rua de Santo António do Penedo (Rua Saraiva de Carvalho), 29
“Tripas às quintas, sábados e domingos”.
In jornal “O Comércio do Porto” de 22 de Abril de 1866


Restaurante Café União, na Rua da Fábrica, 70-74
“Há neste estabelecimento, reformado recentemente, um tentador serviço de mesa. Aos sábados, as desejadas tripas feitas a capricho”.
In jornal “A Verdade” de 12 de Maio de 1884



“Em 6 de Maio de 1957, os restaurantes “Abadia” e “Tripeiro” são premiados em Caen (França), no Concurso das Melhores Tripas do Mundo.”
Cit. (Porto Desaparecido)


Situado na zona histórica da cidade, na Rua do Ateneu Comercial do Porto, o “Restaurante Abadia” foi fundado em 1939.
Conta-se que uma sociedade denominada “Neto & Leal” fundou esse restaurante, e há quem afirme, tê-lo feito, comprando uma pequena unidade de restauração que já existiria no local.
Contando uma estória, diz-se que o nome “Abadia” teria sido inspirado nos locais onde os peregrinos que demandavam Santiago de Compostela, repousavam algumas horas, dormindo e comendo, antes de encetar mais uma etapa da longa caminhada para alcançar aquela terra.
Como certo, tem-se que a “Abadia” foi sempre um marco na confecção da cozinha regional, em particular, no que às tripas à moda do Porto, diz respeito.


Entrada do Restaurante Abadia


A partir de 1952, a “Abadia” teria, na cidade, concorrente de peso na preparação daquele prato.
Bem perto do Abadia, nascia, a 29 de Março de 1952, na Rua de Passos Manuel, nº 195, e vizinho  da “Casa das Tortas”, o Restaurante “Tripeiro”, facto, do qual, “O Comércio do Porto” dava conta.

“Pode considerar-se como iniciativa de oportunidade e agrado o acontecimento que, na vida citadina, marca o dia de hoje, através da abertura ao público do Restaurante Tripeiro, título que é feliz alegoria, de acentuado cunho bairrista.
Situado no coração da cidade, na Rua de Passos Manuel, 191 a 193, Fica como uma «boite» atractiva, de ambiente acolhedor.
Pode afirmar-se que o Porto, com a inauguração do Restaurante Tripeiro, passa a ter uma casa, que no género, abre etapa diferente e constituiu legítimo motivo de orgulho.
Para comemorar a abertura do Restaurante Tripeiro foi ontem oferecido a amigos e convidados delicada ementa em ambiente íntimo.”
In “O Comércio do Porto”, de 29 de Março de 1952 – Sábado


Entrada do Restaurante Tripeiro



O Restaurante Tripeiro acabaria por ocupar o espaço de um outro estabelecimento, o “Restaurante Nau”, inaugurado em 1943.
 


Restaurante Nau, na Rua de Passos Manuel

 
 

Artigo jornalístico sobre a inauguração do Restaurante Nau
 
 
Por sua vez, a “Casa das Tortas”, atrás mencionada, começada como pastelaria, haveria de passar a ser uma instituição da cidade, graças aos seus pastéis de chaves, de confecção própria.
Aquele estatuto, começado a ganhar na década de 1940, manteve-o intacto até aos nossos dias.
Naqueles tempos recuados, os seus funcionários eram oriundos de Cinfães, da freguesia de S. Cristovão da Nogueira.
 
 

A “Casa das Tortas”, a meio da foto, em 2009 – Fonte: Google maps


 
No que concerne à confecção das tripas à moda do Porto, mais recentemente, o restaurante Pombeiro que vai nos 30 anos na posse da mesma família, e sempre fiel à cozinha tradicional portuguesa e regional portuense foi, por diversas vezes, vencedor de concursos de tripas, patrocinados pelo Jornal de Notícias, aquando dos festejos sanjoaninos.



O “Restaurante Pombeiro”, à entrada da Rua do Pombeiro

sábado, 22 de junho de 2019

(Conclusão) - Actualização em 06/11/2020


Naqueles tempos, tão bem descritos nos textos anteriores, o Concessionário e o Banheiro tinham um papel fundamental.
Por vezes, eram papéis desempenhados pela mesma personagem.
O concessionário era então entendido, como alguém a quem o espaço da praia tinha sido concessionado e que tinha mandato, geralmente renovável, e algumas regras próprias respeitantes à época balnear, que compreendia, praticamente, os meses de Verão.
Era o zelador da ordem e da limpeza do areal; tinha funções de socorro e salva-vidas; cuidava da gestão do acantonamento de barracas e era, ainda, o guardião dos pertences dos veraneantes habituais.
Nesta última função guardavam, de um dia para o seguinte, toda a tralha que acompanhava todos aqueles que alugavam as barracas para seu resguardo, sejam, toalhas, mantas, baldinhos e pás para trabalhar a areia, etc, que era acondicionada em sacos de lona, propriedade de cada um.
Tornou-se usual o concessionário contratar para funções específicas o banheiro (a).
Pela manhã, o banheiro instalava os toldos das barracas que durante a noite tinham sido recolhidos e, em cada uma delas, o respectivo saco. Sem um engano.
O banheiro (a) era também uma figura típica descrita no texto seguinte, cuja acção estava ligada a costumes ancestrais de tratamento de medos através da imersão na água.
Em meados do século XIX, já Ramalho Ortigão fazia referência às banheiras da Foz do Douro.

“…de madrugada, ao armar das barracas, quando ellas, accordadas com os primeiros massaricos prateados que debicam a salsugem da maré, entôam em côro de sopranos uma das muitas barcarolas locaes, uma aguda palpitação de poesia festival e triumphadora preenche o ar…”

No começo do século XX, já o banheiro(a) tinha o seu papel interventor nas praias, durante a época balnear.


Banheira (S. João da Foz do Douro) – Cortesia de “trajesdeportugal.blogspot.com”


“Banheiros e Banheiras, com os trajos profissionaes, largas toalhas aos hombros e bilhas com água nas mãos, crusam-se pelos arruamentos formados entre os quadrados das barracas.”
In jornal “O imparcial da Foz”, de 18 de Setembro de 1904 - Domingo

 “…o banheiro, um velho lobo do mar, vestido de negro, sem perder de vista a boia de salvação que se pendura n´um varão de ferro cravado na areia, vela cuidadosamente pelos banhistas mais temerarios que tentam afastar-se da praia, e reprehende-os com benigna severidade.”
In o periódico ” O Progresso da Foz”, de 29 de Setembro de 1907 – Domingo



A Banheira da Foz do Douro,

Desde madrugada, metidas na água até à cintura, pegavam crianças e adultos e mergulhavam-nos. Ofício muito duro, pois estavam no mar sete ou oito horas por dia. Era costume os veraneantes chegarem à praia, inclinarem-se e a banheira despejava-lhes a água na cabeça, com a gamela que está a seus pés. Também nós experimentámos este suplício quando éramos pequenos. Era o momento mais desagradável da época balnear. O banheiro apertava-nos o nariz antes de nos mergulhar.”
Cortesia de Rui Cunha do blogue “portoarc.blogspot.com”



Praia do Molhe c. 1940


Na foto acima, na Praia do Molhe, da esquerda para a direita, divisam-se os nomes dos Banheiros (Concessionários): Henrique Valente, Alzira Valente, António Teixeira e José Allen.
Passadas algumas décadas, ainda era possível apreciar o colorido que distinguia os equipamentos dos diversos concessionários, estabelecidos desde há longos anos e cujos apelidos se mantinham em parte: o branco da Laura Valente; o verde do António Teixeira; o vermelho da Maria Teixeira; o azul do José Allen.
Mais para a foz do rio Douro, pela praia do Caneiro, como nos contam alguns, eram conhecidos os banheiros Maria da Luz, Paulino e Leão e pela praia do Ourigo, o banheiro Claudino e o Joaquim Perfeito.



Barraca de exibição de robertos (fantoches), em primeiro plano, na  praia do Ourigo (Banheiro Claudino), no início do século XX



O texto seguinte dá-nos conta dos concessionários e banheiros que, pelos anos 40, pontificavam na Praia da Conceição ou Praia da Corda, hoje a nossa Praia de Gondarém.


“Eram concessionários da «Praia da Conceição», também conhecida por «Praia de Gondarém», o sr. António Magalhães e o sr. Francisco Sousa Costa Arruda, que guardavam as barracas nas actuais instalações da Esplanada da Praia de Gondarém. Era banheiro do sr. Magalhães, o Joaquim Silva, por alcunha o «Quim Lavadeira»,(…)”.
Cortesia de Damião Velloso Ferreira, In “Nevogilde há 50 anos” – 1999


A construção do Porto de Leixões viria a implicar que as praias adjacentes à foz do rio Leça tivessem um fim, e os banheiros e concessionários que as exploravam ocupassem novos territórios, exteriores à área, que passou a ser afecta ao Porto de Abrigo, entre molhes.
Os banheiros de Matosinhos transferiram-se em 1890, para a Praia D. Carlos, e os de Leça para a Praia do Sinal, depois Príncipe da Beira, em 1892.


Vista panorâmica de Matosinhos e do extenso areal de praias que seria transformado em cais - Ed. Illustração Portugueza (17 Agosto 1908)


No fim do séc. XIX, eram onze os banheiros do lado de Matosinhos:
Alberto Pinguinhas; António Aroso; Filomena; Carolina; Joaquina da Rosa; José Martins: José do Ello; Rosa do Bento; Rosa Miquelina; Rosa Ruiva e Viúva Cham.


Banheiro “Pinguinhas”


Praia de Matosinhos – Fonte: Ilustração Portuguesa, em 01/09/1913 



Em Matosinhos, à entrada das concessões, ainda não há muitos anos, encontrávamos os dísticos com os nomes das banheiras Carolina, Eugénia, Barbosa e Adelaide, junto do paredão a Sul do Porto de Leixões.
Entre o Castelo do Queijo e aquele paredão tínhamos a Praia Internacional e a Praia Moderna.




Banheira Adelaide, em Matosinhos, próximo ao paredão


“Praia Moderna” e o Castelo do Queijo, ao fundo


“Praia Moderna” e o paredão Sul, ao fundo


Banheiros da Praia de Matosinhos - Cortesia de Vítor Monteiro




Com a reestruturação da ocupação do espaço balnear em virtude da construção do Porto de Abrigo de Leixões, os concessionários de praias que passaram para território de Leça da Palmeira, foram:
Ana Filipa; Ana R. das Neves; Ana Virtuosa; António da Costa Neves; Carolina da Eufrásia; Josefina do Padrão; Maria da Rocha; Maria Rita; Maria Teresa e Vitória da Rocha.



Esplanada da Praia de Leça (Bar Atlântico) no começo do século XX


Praia de Leça em 1950


Banheiros na Praia de Leça da Palmeira, na década de 1960 - Cortesia Vítor Monteiro




Praia do Cabo do Mundo




 Evolução da indumentária usada nas praias


A D. Albertina Marinho dos Santos descreve as suas memórias dos primeiros anos do passado século, no que à indumentária balnear dizia respeito, no texto que se segue.



“ Naquele tempo as pessoas antes de iniciar a época balnear, iam, primeiro ao médico para se certificar do seu estado de saúde, isto é, se estavam em condições de poder tomar banhos de mar. Os médicos eram todos unânimes em receitar, antes de mais, um laxativo, que geralmente era óleo de rícino, um dia de cama com grande dieta e, obrigava a estar 8 dias em casa para não apanhar ar nem sol. Era assim que procediam os médicos tais como o Dr. Caldas, Dr. Forbes Costa, Dr. Maia Mendes, etc… Passados 15 dias já se podia, então, ir tomar banhos de mar. Para tomar o banho, as senhoras vestiam os seus fatos de banho, compostos de calças até aos tornozelos e um vestido até abaixo do joelho e meia manga. Os homens com calças até ao joelho e umas blusas. Os fatos de banho, tanto das senhoras como dos homens, eram pretos e guarnecidos de fitas brancas.”
Em “O Tripeiro”, Série VI, Ano X


Praia do Ourigo em 1900


“Estender a toalha e apanhar sol é um ritual que tinha apenas fins terapêuticos no fim dos anos 1880 – e, em público, o corpo tinha de estar completamente tapado. Os fatos de banho eram como vestidos e quem ia ao mar tinha de o fazer em traje de passeio e sombrinha. Muda-se de século e até aos anos 1920 os banhos de sol eram uma espécie de fruto proibido. “O tom bronzeado era associado às classes mais baixas”.
(…) Mas muita coisa iria mudar nessa década de prosperidade pós-guerra, de jazz e rádio.
(…) O bronzeado passava a ser associado “ao luxo de poder viajar para lugares distantes com sol ou à prática de desportos de luxo ao ar livre”.
Declaração de Maria João Mota Veiga, a Inês Garcia, In Jornal Público 2014


Em 1946, quando chegávamos à praia, íamos a um balneário trocar a roupa normal, para uns fatos de banho.
Os homens, na praia, devidamente equipados, tinham uns calções até debaixo do joelho e uma camisola de meia manga.
Quanto às mulheres, noutro balneário, vestiam um género de macacão inteiro.
Com o passar dos anos, as senhoras veem crescer os decotes, as cavas aumentam e os saiotes de praia diminuem.
O fato de banho evolui para o chamado maillot, tanto usado por homens como por mulheres.


Regulamento para o uso dos fatos de Banho em 1941


Em Junho de 1946, o francês Jacques Heim lançou o fato de banho “mais pequeno do mundo”, de duas peças – um soutien de dois triângulos unidos por cordões e cuecas –, mas ninguém se atreveu a vesti-lo, muito menos as mulheres portuguesas.
As duas peças só cá chegariam nos anos sessenta e a moda entrou devagarinho.
No que aos homens diz respeito, em 1957, no “Regulamento dos Fatos de Banho”, foi permitido o tronco nú aos homens que, até aí, usavam o chamado “maillot”, com alças.


O nadador João da Silva Marques envergando em 1943, um maillot – Capa de Setembro da revista “Stadium”


Alguns fatos de banho femininos deixam as suas portadoras expor, mesmo, a parte superior da barriga.
A execução da regulamentação do traje balnear, tinha a vigilância da autoridade marítima, o famoso Cabo do Mar.
Quanto ao "topless", nas mulheres, só foi possível assistir a essa moda, por cá, já nos anos 80 do século passado.