quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

(Conclusão)


Outros factos natalícios

O Natal foi sempre reflectindo as diferentes épocas.
Recuando a épocas que ainda nos são próximas, como sejam as de 30 até 70 do século passado, éramos sempre (um pouco) diferentes a cada Natal.
Antigamente, havia tantas mesas de Natal quantas as zonas do país. No Alentejo comia-se carne de porco ou até cação de coentrada, no Norte, o bacalhau.
Depois, com o tempo e a influência da televisão a ceia de Natal dos portugueses foi ficando cada vez mais parecida.
Hoje, a chamada consoada minhota influencia os hábitos alimentares do país inteiro. Por todo o Portugal começou a comer-se bacalhau, couves, rabanadas (mesmo que em muitos sítios se chamem a estas, "fatias douradas").
"Nós que tínhamos 20 ou 30 consoadas passámos a ter praticamente só uma."
Sobre o costume de jejum na véspera de Natal, passada a Sul e a comparação com o dos portuenses, há mais de 100 anos, escreve um lisboeta:


“Hoje em dia, a ceia da véspera de Natal tem tanta importância como o almoço de dia 25. Mas, há 100 anos, era coisa que existia essencialmente no Norte do País, acima do Porto. Aí, sim, havia uma tradição de jantar em família, com bacalhau – cozido ou em pastéis –, polvo guisado, arroz de polvo ou outros pratos sem carne. Na véspera de Natal, a família reunia-se à mesa para celebrar a festa em conjunto. E Missa do Galo não existia na região.
No Norte, ninguém rezava pelo Menino Jesus à meia-noite. A essa hora toda a gente estava sentada à mesa, à volta de um polvo ou de um bacalhau. Só as famílias da nobreza nortenha fugiam à tradição. Numa investigação sobre "os alimentos nos rituais familiares portugueses", Maria Antónia Lopes, do Centro de História da Sociedade e da Cultura, da Universidade de Coimbra, publicou um menu de uma ceia de Natal de uma família nobre do Norte, em 1891: puré de jardineira, arroz de fantasia caseira, costeletas nacionais e "ervilhas idem" e couve-flor composta. Para sobremesa, bolo experimental, pudim incógnito e broas de Natal, entre outros.
No final da II Guerra Mundial, o bacalhau começou então a espalhar-se por todo o país. Segundo Nuno Miguel Costa, do Museu Marítimo de Ílhavo, o Estado Novo via no bacalhau um prato "simples" e "humilde" que ajudava a educar o povo a ser poupadinho e bem comportadinho. Com a massificação da televisão e a distribuição de bacalhau garantida pelo Estado, a ditadura aproveitou para impor uma propaganda nacional em defesa do bacalhau, tornando-o tradição em todo o país.
Com o devido crédito ao site: “casalmisterio.com”

Nas últimas décadas, fruto, como é óbvio, de conflitos acontecidos e do desenvolvimento tecnológico e social, o Natal foi sofrendo alterações pontuais no modo como foi sendo vivido.

«A década de 30, não permitia grandes euforias e o Natal era sobretudo ocasião de, à boa maneira do Estado Novo, mostrar caridade para com "os pobrezinhos".
Havia, por exemplo, a Campanha de Camaradagem do Natal dos rapazes da Mocidade Portuguesa.
"Merecem particular atenção os filiados mais necessitados", refere o Diário de Lisboa de 19 de Dezembro de 1943, "para o que têm sido recrutados todos os rapazes pobres da rua, como ardinas, engraxadores, etc. Estes rapazes, para além de bens materiais que lhes são concedidos, como refeição diária e fardamento, recebem uma acção educativa, pois são vigiados e acompanhados por dirigentes da Mocidade Portuguesa".
(…) Em 1945, os portugueses - e o mundo - festejam finalmente o primeiro Natal sem guerra. Os anunciantes descontraem. "Quer agradar à sua esposa? Ofereça-lhe um Electrolux. Aspiradores de pó, enceradoras, frigoríficos." E tornam-se mais ousados: "Quer dar uma prenda que nunca seja esquecida? Seja criança ou adulto, se ela gostar de Desenho, é porque tem habilidade. Oferece-lhe um curso de Desenho (método americano de estudo em casa). Será um alegre passatempo que poderá trazer uma bem paga profissão."
(…) Na entrada da década de 50, a situação económica melhora. Aparecem nos jornais anúncios a voos das grandes companhias aéreas internacionais para a Suíça e Alemanha, ou até América do Sul e Próximo Oriente. Faz-se publicidade às máquinas fotográficas Kodak, a aspiradores, rádios, electrodomésticos.
O jornal Mundo Desportivo promove um concurso que tem como primeiro prémio uma Lambretta. E o regime decide eleger a "rapariga modelo".
Noticia o DN: "O aspecto inteiramente inédito, a objectividade e o elevado sentido moral do questionário relativo ao Concurso Internacional da Rapariga Modelo e ainda a circunstância de proporcionar singular oportunidade de exteriorização de opiniões, gostos e formas de ser e sentir despertaram excepcional interesse entre as raparigas portuguesas."
Os bodos aos pobres continuam, as meninas nas escolas competem para fazer o berço mais bonito para oferecer a uma família pobre que esteja à espera de mais um filho. E as grande empresas - a General Motors, a Kodak, a Shell, a Sacor, a Mobil Oil - oferecem festas de Natal aos filhos dos seus funcionários, todas elas com direito a notícia (e em muitos casos fotografia) nos jornais diários. Nas principais cidades do país, o Automóvel Clube de Portugal promove o Natal do Sinaleiro, em que os automobilistas deixam junto aos polícias sinaleiros prendas "traduzindo o reconhecimento pela meritória acção" daqueles.
A revista para rapazes O Cavaleiro Andante promove em grande o seu número especial de Natal com 100 páginas, por dez escudos, e com três prémios, entre os quais uma bicicleta motorizada.
(…) Anos 60 e o mundo acelerou.
O nível de vida dos portugueses ia subindo gradualmente, mas nos anos 60 muitas famílias ainda podiam ser descritas como "remediadas". O dinheiro "ia dando", mas para um dia "um bocadinho melhor" era preciso fazer algumas economias. Não é por acaso que em 1960 surge o Cabaz do Natal, uma iniciativa do Clube das Donas de Casa, que se torna um enorme sucesso.
Nos primeiros meses do ano começava a aparecer nas revistas o anúncio ao cabaz, com o respectivo boletim de inscrição. Uma família sorridente - pai, mãe, avó e neta - olha encantada para o que vai receber no Natal por um custo de 650 escudos (pouco mais de três euros), pago em prestações mensais de 65 escudos: latas de Atum Toneca, Nesquik, tomate Guloso, Nescafé, Puré de Batata Maggi, bolachas Triunfo, vinho do Porto, brandy, espumante, vinho de mesa, uma "maravilhosa boneca", um "brinde para o marido", brinquedos, leite creme, fruta líquida, chocolates, caramelos e drops, e muitas outras coisas.
O mundo começava a mudar e um dos factores dessa mudança era a televisão, que chegou a Portugal em 1957. O Natal dos Hospitais já conta com a colaboração da Radiotelevisão e da Philips portuguesa.
Portugal parece mais aberto a esse mundo que lhe chega agora pela televisão. Em 65, o DN manda um enviado especial a Berlim para relatar, junto do "Muro da Vergonha", o Natal na cidade dividida. Do lado ocidental há repórteres da Europa ocidental, do outro lado há russos, jugoslavos, chineses. No dia de Natal, o jornal noticia, optimista, que "desde o Rio até Saigão a humanidade celebra o espírito de fraternidade e Amor".
(…) O mundo parece girar mais depressa.
E, no entanto, Portugal continua a ser um país pobre e de emigrantes, que no Natal regressam para estar com as famílias. O ano de 1965 ficou marcado por uma enorme tragédia: perto de três dezenas de mortos e mais de uma centena de feridos no descarrilamento do Sud-Express. Os relatos na imprensa são carregados de drama: "Dos destroços impressionantes de uma das locomotivas esmagadas pelo espantoso choque, mãos piedosas e ensanguentadas descem o cadáver desfigurado de um dos ferroviários."»
Fonte: “publico.pt/”, 2009


Como ficou expresso no texto anterior, o “Cabaz do Natal”, na segunda metade do século XX, foi um sucesso enorme.
Apareceu em 1960 como resultado da actividade do “Clube das Donas de Casa”.
O programa do Clube das Donas de Casa começou na Rádio Renascença em 1960, tendo, mais tarde, em 1964, sido emitido pelo Rádio Clube Português.
Nesse programa, com conselhos para o público feminino, era promovido o “Cabaz do Natal”. Era, a venda deste, o seu principal objectivo.
Como o nome indica era um cabaz com os mais variados produtos de uso na quadra natalícia e que tinha associado um concurso de âmbito nacional.
Durante a emissão daqueles programas foram lançados, por exemplo, concursos como a eleição da “Mulher Ideal” e o “Abril em Portugal”.
Henrique Mendes, Júlio isidro, Ana Zanatti, João David Nunes e muitas outras vozes conhecidas da rádio desses tempos passaram por lá.


Maria Emília Trigueiros (pertencente à alta sociedade da época) vencedora em 1973 do concurso “Mulher Ideal”


Publicidade em 1964 ao “Cabaz do Natal” – Fonte: “restosdecoleccao.blogspot.com”



Publicidade em 1966 ao “Cabaz do Natal” – Fonte: “restosdecoleccao.blogspot.com”


Publicidade em 1976 ao “Cabaz do Natal” – Fonte: “restosdecoleccao.blogspot.com”


Agradecimento público e calendário do “Lar do Orfanato” de Ruílhe em 1968 – Fonte: “restosdecoleccao.blogspot.com”


Publicidade em 1963 ao Atum Toneca


Publicidade de Natal das bolachas “Triunfo”


 Publicidade da Confeitaria Cunha no Natal de 1950


A revista Eva, começada a publicar em 1925, viria, mais tarde, com o seu número de Natal, conhecido como a “Eva do Natal”, a preencher o imaginário de muitos portuenses pelos prémios que sorteava durante aquela quadra festiva.
Quem comprasse a revista habilitava-se a um concurso de âmbito nacional.


Lista de prémios do concurso “Eva do Natal” de 1963


Capa da revista “Eva do Natal” de 1939 – Fonte: “diasquevoam.blogspot.pt”


Capa da revista “Eva do Natal” de 1950


A revista era dirigida ao público feminino e tornar-se-ia um veículo de propaganda do Estado Novo, embora, por vezes, tentasse afrontar o braço tentacular da censura.

“Uma tiragem média de 18 mil exemplares é indicativa de uma expansão considerável, principalmente ao relembrar a existência de somente 25 mil mulheres cujo grau de capital escolar as tornaria aptas à fruição da revista. Por forma a apelar a tão vasto público, a revista focava-se em temáticas muito diversas, com enfoque em modas e sociedade (registo próximo ao da atual imprensa "cor-de-rosa", principalmente a partir de 1935: notícias de Hollywood, alguns eventos sociais nacionais), mas sem desconsiderar as lides domésticas, o cuidado com a cosmética e a literatura leve. Paralelamente, dinamizava sorteios, concursos e outras iniciativas de captação e participação de público. A edição de Natal era o pináculo disto: mais extensa, colorida e oferecendo prémios sorteados de valor avultado, incluindo casas e carros, dependendo da situação financeira. Posteriormente esmiúça-se a iniciativa paralela que mais relevo apresenta para a temática orientadora desta dissertação, que é a dinamização da Escola Técnica de Donas de Casa, uma campanha de sucesso que contou com várias edições”.
Com o devido crédito a Francisco Pereira da Silva Pais Rodrigues – Mestrado em Sociologia, FLUP


Outra actividade que a cidade não dispensa é o circo que se realiza em vários locais e se repete todos os anos.
Um deles, como já é tradição desde 1941, tem lugar no Coliseu Porto.


Coliseu do Porto – Ed. “sapo.pt”


Espectáculo de circo no Coliseu do Porto em 12 de Dezembro de 1996


O espectáculo da foto acima teve lugar decorridos que foram cerca de 3 meses desde o incêndio aí acontecido em 28 de Setembro daquele ano.
A sala só ficaria completamente recuperada 2 anos depois, reabrindo com a ópera Carmen, de Bizet, em 24 de Novembro de 1998.
Hoje, pelo Parque da Cidade do Porto (Queimódromo), outrora pelo Palácio de Cristal, Campo 24 de Agosto, Campo do Luso, Praça das Flores, Covelo (Paranhos), Seca do Bacalhau (junto do antigo Bairro de Xangai), Campo do Lima (antigo estádio do Lima) e Bairro Fernão de Magalhães, levantaram tenda várias companhias de circo que fizeram as delícias de muitos.
Uma realização que perdura nos nossos dias é o Natal dos Hospitais.
O Natal dos Hospitais é, hoje, um programa de televisão e uma festa que se realiza todos os anos.
Em tempos, o evento tinha a parceria da RTP, Diário de Notícias e Philips.


“Este evento foi inaugurado em 1944 pelo jornal Diário de Notícias para trazer um sorriso às pessoas que estão nos hospitais durante o Natal. Começou a ser transmitido na RTP em 1958 com a apresentação de Henrique Mendes e cujo início foi com a artista Beatriz Costa, tornando-se assim no programa de entretenimento mais antigo da RTP.
Tem origem no anterior "Natal das Crianças dos Hospitais", um evento promovido pela poetisa algarvia Lutegarda Guimarães de Caires no início do século XX.
Em 1962 começou a ser transmitido em simultâneo com a antiga Emissora Nacional e tal transmissão se prolongou, de uma maneira bastante irregular, até ao fim do século XX na RDP- Antena 1.
Nos anos 70, o Natal dos Hospitais era transmitido entre as 14 e as 19 horas, e era transmitido às vezes fora dos hospitais, e em lugares públicos conhecidos, como o Casino Estoril e o Coliseu dos Recreios”.
Fonte: “pt.wikipedia.org”



Vasco Santana e Mirita Casimiro, em 23 de Dezembro de 1944, no primeiro Natal dos Hospitais


terça-feira, 18 de dezembro de 2018

(Continuação)


O Natal do Porto em imagens

De acordo com a história terá sido em 1865 que pela primeira vez, se ergueu uma Árvore de Natal no país. Aconteceu na cidade do Porto no antigo Palácio de Cristal.


Palácio de Cristal, em 1865, e a primeira Árvore de Natal, montada no país


Rua D. Pedro (Já desaparecida. Foi Rua Elias Garcia) no Natal de 1908


Mesmo local da foto anterior (hoje a Avenida dos Aliados, lado nascente, com a Câmara lá no fundo) – Fonte Google maps


Rua dos Clérigos engalanada c. 1960 


Rua dos Clérigos no Natal de 1973


Rua de Santo António no Natal de 1959 - Fonte: Gisaweb

Rua de 31 de Janeiro na década de 60 do século XX



Natal na Praça de D. João I


Perspectiva da Praça D. João I no Natal de 2008



Rua de Santa Catarina (próximo à Praça da Batalha) no Natal 1960


Rua de Santa Catarina (mesmo local da foto anterior) no Natal de 1973


Natal na Rua de Santa Catarina possivelmente na década de 60 do século XX em perspectiva idêntica às fotos anteriores



Mesma perspectiva das fotos anteriores no Natal de 2006


Rua de Santa Catarina junto à capela das Almas em época natalícia


Vendedores no Natal de 1977, junto do Café Embaixador


Venda ambulante no Natal de 1977, na Rua de Sá da Bandeira


Natal de 1978, na Rua dos Clérigos



Rua 31 de Janeiro no Natal de 2006


Natal de 2014, na Rua de Cedofeita




Rua Senhora da Luz, no Natal de 2014


Avenida dos Aliados – Natal 2015 – Ed. Pedro Guimarães


(Continua)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

25.26 O Natal pela pena dos nossos escritores e outras histórias natalícias


Muitos dos nossos escritores mais conceituados se referiram ao Natal.
Sobre as memórias do Natal de meados do século XIX, nos dá conta o escritor portuense, Júlio Dinis, na sua obra “A Morgadinha dos Canaviais”.


“Eu não sei se esta história terá leitor tão mal-aventurado, que não possua recordações e saudades associadas à noite de Natal, aquela festiva e abençoada noite, em que as ruas e os lugares públicos se despovoam, e nos lares domésticos parece crepitar e cintilar o fogo mais acalentador do que nunca. Se algum deserdado da fortuna há aí que não saiba o que é a festa das consoadas em família, esse que não leia este capítulo, que nele não encontrará prazer. Se alguns as gozaram já noutros tempos, porém hoje erram a essas horas pelas ruas solitárias, olhando com inveja para cada raio de luz que rompe das frestas de tantas janelas discretamente fechadas, ouvindo comovidos o ruído das alegrias que vão no seio das famílias, e pela fantasia criando em cada morada um mundo íntimo de afetos e de venturas como o de que a sorte os privou, que esses me perdoem as amargas saudades, que porventura lhes avive assim.
É certo que não há noite mais alegre; alegre desta alegria que vai direita ao coração, sem perturbar os sentidos com fumos de embriaguez; alegre deste alegria cândida a que o homem é sujeito do berço à velhice, a qual respeitam os estos das paixões, na idade delas, e o gelo do egoísmo, no declinar da vida.
Bem escura, bem ventosa, bem fria e húmida surjas tu sempre, noite de vinte e quatro de Dezembro, que melhor então se avaliará pelo contraste a luz, o calor, o aconchego dos lares, e mais íntimos se estreitarão os círculos da família em roda da ceia patriarcal.
E vós todos, a quem uma moda tola não constrangeu ainda a abandonar os hábitos que de pequenos contraístes, e festejais ainda o Natal de Cristo
segundo o estilo velho, continuai a manter genuínos esses costumes nacionais, que não resultará daí desdouro para o vosso nome ou brasão. A roda da civilização, a que aplicais ombros com tanto denodo, não se cravará por isso. — Podeis, elegantes meninas, cantar loas sem escrúpulo diante do presepe armado na sala mais íntima da casa, que nem por isso cantareis pior na das visitas as árias italianas que aprendestes no colégio; não coreis de colaborar, por exceção, esta noite nos misteres da cozinha, que sobra de água-de-colónia e perfumes tendes no toucador para as abluções purificatórias. Homens graves, a república perdoar-vos-á uma pequena infidelidade, a política do país e da Europa não periclitará, desnorteada, se, por um pouco, lhe negardes a vossa atenção; humanizai-vos, pois, uma vez por ano, e baixai ao seio da família os olhares que poderosos empenhos vos trazem sublimados. — Entrai com as crianças em jogos pueris e fáceis, que não destemperareis a inteligência para as filosóficas cogitações do boston e do whist”.
Júlio Dinis, In “A Morgadinha dos Canaviais”


Publicado pela primeira vez em 1870, a obra “Serões da Província” é uma compilação de contos e curtas novelas que Júlio Dinis publicou em folhetim no Jornal do Porto, entre 1862 e 1864.
A narrativa seguinte é publicada naquela obra, mas acontece em 1852, com uma alusão ao desfazer do presépio.
 
 
“Eu não sei de nada mais triste do que o terminar de todas as festas.
Em criança arrasavam-se-me de água os olhos quando assistia ao desfazer do presépio que, em honra do Menino Deus, se armava na minha casa pelo Natal.
Cerrava-se-me o coração de melancolia, ao ver guardar outra vez na arca — e por um ano! — o Menino,
Nossa Senhora, S. José, os grupos dos pastores, a vaca, o jumento, os três reis, os anjos e todos os mais acessórios do pitoresco santuário, diante do qual, nesses quinze dias, se rezava a coma em família e se cantavam as loas da ocasião! Amargo dia de Reis, último desta abençoada quinzena, já te não via assomar sem que se me enevoassem aquelas puras alegrias infantis. Que não encontrásseis mais estorvos pelo caminho, venerandos Magos! Que aquela milagrosa estrela, que vos trouxe a Belém, vos não fizesse errar mais tempo antes de lá chegardes! Fatal 6 de Janeiro! com o teu anoitecer, anoitecia-me o coração.
Voltava a vida normal, voltavam os bancos das aulas, a aritmética, a caligrafia, oh! a caligrafia sobretudo tão associada à férula do mestre-escola! e o que era pior que o mais — acabava naquela santa comunidade, em que durante quinze dias vira a família; o lar doméstico já não oferecia o alegre tumulto e desordem, em que velhos e crianças tomavam parte, esse ruído e confusão que tão fundo calava no coração de todos. A solenidade que nos reunira sob o mesmo teto, que nos fizera viver a mesma vida, ia acabar. Nós, as crianças, chorávamos às claras na despedida; mas suspeitávamos que as nossas lágrimas tinham companheiras envergonhadas. Quantas vezes surpreendíamos segredos de comoção, que nos redobrava o choro!
Suspeitava-o eu então, mas acredito-o agora que, apesar de na idade em que a lei autoriza a não me considerar criança, ainda não sou superior a cenas daquelas”.
Serões da Província (Justiça de Sua Majestade) Júlio Dinis
 
 
Por sua vez, Augusto Queiroz, na revista portuense “A Esperança”, Volume 1, em 1865, versejava sobre o Natal.

 
 




Quanto a Camilo Castelo Branco, portuense por adopção, diversas vezes faz referência também ao Natal, nas suas obras.


“Os rapazes escaldam as pinhas para lhes descelularem os pinhões, que hão-de jogar e comer na noite de Natal. Nas hortas medram as viçosas couves galegas, cujos olhos hão-de ser cozidos com o farto bacalhau naquela noite almejada”.
Camilo Castelo Branco, In “Ecos humorísticos do Minho”



“Gostou muito de a ver entretida com o presépio do Menino Jesus, cheia de devotos carinhos, ora beijando-lhe os pés, ora incensando o recinto do religioso espectáculo, guardando em todos estes actos umas atitudes misteriosas e uns silêncios respeitosos e dignos das primitivas cristandades nos subterrâneos da Roma pagã. Acompanhou o tio Manuel a sobrinha à missa do galo e embirrou com o fidalgo do Toural, que lhe atirou confeitos a ela, e a ele dois rebuçados velhos à cara que pareciam de chumbo”.
Camilo Castelo Branco, In “A viúva do enforcado”



Por sua vez, a propósito da primeira festa de Natal que ocorreu no Palácio de Cristal, inaugurado a 18 de Setembro de 1865, pelo Rei D. Luís, Ramalho Ortigão, outro portuense, nascido na Lapa, descreve nas Crónicas Portuenses (1865), Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1944, a forma como o pinheiro de Natal foi recebido pelas crianças:


“Vi ante-ontem no Palácio de Cristal o enlevo das crianças portuenses ao pé do pinheiro do Natal, todo resplandecente de luzes e vistosíssimo de bonecos, de tambores, de cornetas e cartonagenzinhas com amêndoas, e declaro que não lhes tive a menor inveja.
Ah! os directores do Palácio de Cristal entraram demasiado no espírito da época (...)”.


O escritor portuense Alberto Pimentel, nascido num prédio hoje inexistente, num largo da cidade que tem o seu nome e que muito escreveu sobre o Porto, sobre o Natal, diz-nos na sua obra “Entre o Caffé e o Cognac”:




Por sua vez, Ramalho Ortigão, no conto, “O Natal Minhoto”, diz-nos, a determinado passo, a propósito do Natal Minhoto acontecido numa casa abastada e que ele considerava, como aquele que era mais tradicional:


“Depois celebrava-se a ceia, o mais solene banquete da família minhota.
Tinham vindo os filhos, as noras, os genros, os netos. Acrescentava-se a mesa.
Punha-se a toalha grande, os talheres de cerimónia, os copos de pé, as velhas garrafas douradas. Acendiam mil luzes nos castiçais de prata. As criadas, de roupinhas novas, iam e vinham ativamente com as rimas de pratos, contando os talheres, partindo o pão, colocando a fruta, desrolhando as garrafas.
Os que tinham chegado de longe nessa mesma noite davam abraços, recebiam beijos, pediam novidades, contavam histórias, acidentes da viagem; os caminhos estavam uns barrocais medonhos; e falavam da saraivada, da neve, do frio da noite, esfregando as mãos de satisfação por se acharem enxutos, agasalhados, confortados, quentes, na expectativa de uma boa ceia, sentados no velho canapé da família.
E o nordeste assobiava pelas fisgas das janelas; ouvia-se ao longe bramir o mar ou o zoar a carvalheira, enquanto da cozinha, onde ardia no lar a grande fogueira, chegava num respiro tépido o aroma do vinho quente fervido com mel, com passas de Alicante e com canela.
Finalmente o bacalhau guisado, como a brandade da Provença, dava a última fervura, as frituras de abóbora-menina, as rabanadas, as orelhas-de-abade tinham saído da frigideira e acabavam de ser empilhadas em pirâmide nas travessas grandes. Uma voz dizia: — Para a mesa! Para a mesa! Havia o arrastar das cadeiras, o tinir dos copos e dos talheres, o desdobrar dos guardanapos, o fumegar da terrina. Tomava-se o caldo, bebia-se o primeiro copo de vinho, estava-se ombro com ombro, os pés dos de um lado tocavam nos pés do que estavam em frente. Bom aconchego! Belo agasalho!
As fisionomias tomavam uma expressão de contentamento, de plenitude.
Que diabo! Exigir mais seria pedir muito. Tudo o que há de mais profundo no coração do homem, o amor, a religião, a pátria, a família, estava tudo aí reunido numa doce paz, não opulenta, mas risonhamente remediada e satisfeita. Não é tudo?”


A antiga ceia do Natal
nos velhos costumes do Porto
Ramalho Ortigão, in "Crónicas Portuenses" (27/12/1865)








(Continua)