No ano de 1879, em 6 de Março, começava a correr no Porto a notícia de
que tinha dado entrada numa esquadra de polícia, para averiguações, uma mulher
que habitualmente se disfarçava de homem.
O Jornal “O Comércio do Porto” noticiava os pormenores do caso
acontecido no dia anterior.
O alvo das averiguações chamava-se pelo baptismo, Maria da Trindade,
tendo nascido, em 1859, segundo dados obtidos a partir de declarações dela
própria na esquadra da polícia, em Quintela (Sernancelhe), mas, ainda de tenra
idade, mudou-se para a Granja do Tedo.
Maria da Trindade, de seu nome Antónia Custódia das Neves, desde cedo teve
desejos de encarnar um perfil masculino, embora se tratasse de uma bonita
rapariga, não denotando, porém, qualquer natureza hermafrodita. Nas
brincadeiras escolhia para comparsas os rapazes – uma “Maria Rapaz”.
Por volta dos dez anos de idade, começou a vestir-se como um rapaz e,
enquanto jovem, desempenhou tarefas em quintas no Alto-Douro, sempre ao lado de
homens feitos, não desmerecendo deles.
Maria da Trindade, a Mulher-Homem
Ainda jovem, na Granja do Tedo, apaixonou-se por uma rapariga a quem
dedicou poemas.
Dizer que me tens
amizade
Isso é no mesmo
instante
Na ausência se
conhece
O amor que é
constante
Quando fores
minha esposa
Serás feliz e
venturosa
Terás tudo quanto
possuo
Minha bela, minha
rosa.
Um dia, deixou de vez o seu passado feminino e a Granja do Tedo e rumou
ao Porto, como António, em 1875. Teria 16 anos de idade.
Pensava que, assumindo-se como homem, podia ultrapassar alguns escolhos
que a vida lhe colocaria pela frente.
No Porto, o “António Custódio das Neves” namorou com muitas
costureirinhas e criadinhas de servir, que se perdiam de amores pelo “António”,
vendeu cautelas de lotaria e bilhetes às portas de teatros.
Parece, no entanto, que a sua Rosa, da Granja do Tedo, não estaria
esquecida.
Diz, minha Rosa,
Sem impostura;
Se amas a outrem
Com mais ternura.
Oh! Não me percas
O teu amor;
Espera por mim,
Minha alva flor.
Espero de em
breve
Aí voltar,
Então mil vezes
Te hei-de
abraçar.
Sabes tu que este
meu peito
Só para ti está
aberto,
Ninguém mais o ocupará
No povoado ou no
deserto.
Vivo por ti, só
por ti;
Deves conhecê-lo
há muito;
Não te esqueças
pois de mim
Como estando de
ti junto.
Como sabia ler e escrever e fazer contas, empregou-se num armazém de
vinhos na Rua do Bonjardim.
Seria nesta rua que, em 5 de Março de 1879, “António Custódio das
Neves”, alvo com certeza de uma denúncia anónima, foi “interpelado” pelo chefe
da 1ª esquadra de polícia, José Ribeiro dos Santos.
Em face da ausência de justificação para a sua vida militar
e dos documentos respectivos, foi “levado” para a esquadra da polícia e, a
seguir, entregue ao poder judicial.
O “interpelado” disse ter profissão, trabalhar como caixeiro
em casa de António Joaquim da Silva, mas acabaria por se descobrir que, afinal,
era uma mulher, passando a incorrer no crime de falsa identidade.
Foi, quando, a Antónia Custódia das Neves passou a ser a
mulher-homem.
A notícia completa publicada no Jornal “O Comércio do Porto”
de 6 de Março de 1879 é apresentada a seguir:
In revista “O Tripeiro”, 3ª Série, N.º 4, 15 Fevereiro de
1926
Curiosa é a descrição da indumentária do detido.
“Trajava jaqueta de
ratina, calça de casimira, chapéu branco de feltro e camisa com peito de folhas
com botões de ouro.
No colete via-se-lhe
uma corrente de ouro e no bolso o respectivo relógio”.
Fonte: Dr. João Lobato Costa, In revista “O Tripeiro”, 7ª
Série, ano XXI, Setembro de 2002
Os periódicos esgrimiram argumentos sobre um assunto que não
era comum naqueles tempos.
Seria o Jornal “Actualidade” que iria tomar o partido de Antónia
Custódia das Neves e fazer cair para o lado dela a opinião pública.
Dizia-se, no âmbito dessa argumentação que:
Se apresentava publicamente como António e sempre tinha sido conhecida
como tal, pois vestiu-se sempre como homem e assim era conhecida;
Ao adoptar uma faceta masculina, a acusada tinha como
intenção defender-se melhor da sociedade; ser uma pessoa muito competente e
zelosa na sua profissão.
E, no habitual choradinho, apontava-se uma infância infeliz
e de abandono, que o afinco e a vontade de ganhar o pão de cada dia, ultrapassavam.
O tribunal mandou-a em liberdade, fruto das boas referências
transmitidas por quem foi ouvido como testemunha. A partir daí, readquiriu a
sua “condição” de mulher.
“António Custódio das Neves” (A mulher-homem)
A “Voz do Povo”, que se publicou entre 1878 e 1880, dedicava-lhe,
então, naquele mês de Março, um poema.
In “A Voz do Povo”, Março de 1879
Em Abril de 1879, com 20 anos de idade, Antónia Custódia das
Neves casou, na igreja de Santo Ildefonso, com António Joaquim da Silva Júnior,
de 19 anos, filho do taberneiro da Rua do Bonjardim onde trabalhara.
Viria a falecer, em 20 de Março de 1888, num incêndio
ocorrido no Teatro Baquet, no qual terão morrido 120 pessoas.
António Joaquim da Silva Júnior, também presente, mas que
sobreviveu à tragédia, contava que por três vezes conduziu pessoas para o
exterior do braseiro pensando serem a Antónia.
Teatro Baquet, Rua de Santo António, em 1875
Teatro Baquet na Rua de Santo António
Daquela tragédia ficou a lembrança num memorial de homenagem
às vítimas no Cemitério de Agramonte.
Memorial às vítimas do Teatro Baquet no cemitério de
Agramonte
Um poeta satírico daquele tempo evocou a infeliz Antónia
Custódia na quadra seguinte:
Era um rapaz às
direitas
a Maria da Trindade
Todas as moças
bem-feitas,
Inda a choram com
saudade
António Joaquim da Silva Júnior haveria de exercer durante
anos as funções de fiscal no Teatro Águia d’Ouro, tendo falecido, algures, na
década de 1920.
Em 1879, seria publicado no Porto um livro com o título “Maria
Coroada ou Scisma da Granja do Tedo, Verdadeira História da Mulher-Homem ou
Homem-Mulher- António Custódio das Neves ou Antónia Custódia das Neves”.
Os autores eram Patrício Lusitano e Pantaleão Froilaz, pseudónimos, respectivamente, de
Pinho Leal e do Dr. Pedro Augusto Ferreira, abade de Miragaia.
Surge, então, a teoria de que Antónia Custódia das Neves era filha de
Maria das Neves ou Maria Coroada, uma profetiza que liderou entre 1840 e 1847,
na Granja do Tedo, uma seita religiosa com laivos e folclore associados à
crendice popular, que acabou interditada pela autoridade administrativa, à
data, sediada em São Cosmado.
Aliás, dizem que teria sido a sua mãe que instruiria as suas filhas,
argumentando, que sendo este mundo comandado por homens, a metamorfose em causa
se justificava.
Assim sendo, as declarações de Antónia Custódia das Neves, na esquadra
da polícia, quanto à paternidade, eram falsas, ou, então, ela própria desconhecia as suas origens.
O certo, é que viria a descobrir-se, mais tarde, no Douro, uma irmã de
Antónia Custódia das Neves, igualmente vestida de homem, que exercia a
profissão de moleira.
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