quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

(Continuação 1)


A Consoada


Há mais de 100 anos, a ceia de Natal apenas existia no Porto e no Norte de Portugal. A Sul, cumpria-se o mais rigoroso jejum.
A partir do início do advento, as famílias faziam jejum de carne, e na véspera de Natal, no Sul do País, jejuavam até à Missa do Galo.
Advento vem do latim “ad-venio”, que quer dizer “vir, chegar”. Começa com o Domingo mais próximo da festa de Santo André (Apóstolo, irmão de Pedro e patrono da Igreja Ortodoxa e com festa a 30 de Novembro) e dura quatro semanas – uma espécie de Ramadão.
No Porto, toda a família se sentava à mesa para passar a noite de Natal, comendo o tradicional bacalhau regado com o bom azeite de Trás-os-Montes e todas as outras iguarias próprias da quadra festiva.

 
 

Publicidade ao azeite das Quintas de Jerusalém do Romeu, in “A Voz Pública”, em 13 de Dezembro de 1891 (Domingo)


A Missa do Galo também não fazia parte da tradição dos Portuenses.
Nesse momento, o portuense estava deglutindo uma boa posta de bacalhau acompanhado de umas suculentas couves e ninguém estava preocupado em rezar ao Menino Jesus.
Ninguém, não é bem assim.
Uma minoria da nobreza nortenha dava uma saltada até à Missa do Galo.
À mesa dessa nobreza, poderia estar, em 1891, segundo Maria Antónia Lopes, do Centro de História da Sociedade e da Cultura, da Universidade de Coimbra, um menu para ceia de Natal, do género: “puré de jardineira, arroz de fantasia caseira, costeletas nacionais e "ervilhas idem" e couve flor composta. Para sobremesa, bolo experimental, pudim incógnito e broas de Natal, entre outros”. O bacalhau ficava para o povo.
A tradição em Lisboa ainda na década de 30 do século passado, impunha que, só após a Missa do Galo se tinha, finalmente, direito a comer qualquer coisa – normalmente, era servido um doce para quebrar o jejum. No dia 25, então, era servido um almoço completo e, no Alentejo, era sempre porco – peru nem vê-lo.
Hoje, a Sul, a ceia da véspera de Natal tem tanta importância como o almoço de dia 25.
Sobre a noite de Natal em Lisboa, Ramalho Ortigão, dizia ser:

“Uma invasão do lar pela sacristia” e “um intrometimento sacerdotal que interrompe um jantar com uma missa” e, ainda, “Os padres, sem de modo algum lhes discutirmos o muito que sabem do pecado, não sabem nada acerca da família”.


Quanto à ceia de Natal no Porto, M. R. d’Assis e Carvalho, no Tripeiro, de 20 de Dezembro de 1909, dizia:



“As famílias geralmente não jantam; n’esse dia apenas lancham e das 7 para as 8 horas da noite, pouco mais ou menos, começa a ceia da consoada, que é somente composta de pessoas da família e exclusivamente obrigada a peixe, não faltando nunca o tradicional prato de bacalhau cosido com as couves, que vimos em tão grande abundância nos mercados. Há creadas, dignas discípulas de Brillat-Savarin, que fazem seis e mais variedades de iguarias de bacalhau, e creiam os leitores que o fiel amigo e as couves attingem, nesta época, preços sensivelmente elevados. A ceia é abundantíssima, bem regada com os preciosos vinhos do Alto Douro, bem adoçada com as rabanadas, e enfim qualquer chefe de família portuense pode dizer, sem perigo de faltar à verdade, que Lucullo ceia n’esta noite com Lucullo”.


Entretanto, Sousa Viterbo emite a sua opinião, em 25 de Dezembro de 1895, sobre a consoada, do seguinte modo:
 
 


 
 
Uma tradição que durante muitos anos fez parte do Natal de muitos portuenses e que ainda se mantem, reside na comparência de muitos à feira dos Capões de Freamunde, pois preferem o repasto natalício deliciando-se com estes galináceos “eunucos”, do que com os conhecidos perus.
Dela nos dá conta o texto que se segue:

 

Revista “O Tripeiro”, VIª série, IIº ano, página 6




Os Doces


Não há quadra festiva mais propícia para se falar de doçaria que a do Natal.
No século XIX, os doces transacionavam-se, por alturas das festas de Natal, Páscoa, S. João e nas romarias.
Em tempos em que os botequins começam a aparecer, as confeitarias não eram muito numerosas.
A doçaria confeccionava-se em casa ou vinha de fora, de outras paragens.
Eram os casos das cavacas de Resende, o pão-de-ló de Margaride e o de Ovar, o “toucinho-do-céu”, de Braga, o Doce de Paranhos (quando Paranhos ainda era termo do Porto), os “bolinhos de amor” de Penafiel, as fogaças da Vila da Feira, o pão-de-ló de Arouca, etc.
Os conventos e mosteiros tinham a sua produção organizada desde há anos e abasteciam a população gulosa.
Entre alguns, na região do Porto, tínhamos com mais fama o convento de S. Bento da Avé-Maria e o mosteiro de Santa Clara, mas também os produtos conventuais com origem em Braga ou Arouca.
As doçarias eram, nessa época, comercializadas em feiras e mercados ou vendidas porta-a-porta.
A área de actuação dos chamados “Mercados do Doce” espalhava-se pelo Largo da Feira de S. Bento, Praça D. Pedro, Rua das Carmelitas e mercado do Anjo.
Para esse efeito, estava consagrado já há vários anos, o mercado da feira de S. Bento.


“Viam-se já ontem levantadas no largo da Feira (S. Bento) as barracas que todos os anos, por igual tempo, costumam armar-se para a vendagem do doce de Natal.”
In jornal ”O Comércio do Porto”, de 20 de Dezembro de 1865 – 4ª Feira


“Conhece-se que estamos em vésperas de Natal. Os mercados são concorridos como em tempo nenhum do ano; em algumas ruas é difícil transitar. É a gente do campo e da cidade que principia a fazer as suas provisões para a grande noite e para os dias subsequentes.
Na feira de S. Bento já se acham as vendedeiras do doce, que por este tempo ali costumam estabelecer-se.
Os vendedores de mel espalham-se pela cidade e, em clamorosos reclamos, inculcam o melhor que podem a excelência do género que vendem”.
In jornal “O Comércio do Porto”, de 21 de Dezembro de 1870 – 4ª Feira


Como já se disse, confeitarias havia poucas, mas, aos poucos, acabaram por aparecer, para fazer parte do quotidiano dos portuenses, e estes foram-se deixando seduzir pelo fabrico e pelo consumo de doçuras de outras paragens, casos das arrufadas de Coimbra ou das queijadas de Sintra.
No começo a confecção esteve muito ligada a padarias.


Sobre a Nova Padaria, sita, no Largo de S. Bento das Freiras, 11, dizia-se:

“Propriedade de António Guilherme de Araújo e Silva. Biscouto e bolacha de embarque. Peixes de doce de várias qualidades”.
In jornal “O Noticiador Portuense”, de 5 de Setembro de 1857 – Sábado


Uma desordem ocorrida na Padaria Vilar na Rua Formosa era narrada assim:

“Ontem pelas 9 horas da manhã, na rua formosa, na padaria do sr. Vilar, houveram gritos de socorro. Um galego espancava o mestre da fábrica”.
In jornal “Periódico dos Pobres”, de 29 de Março de 1858 – 2ª Feira

Na Rua do Calvário,31, esteve a Nova Confeitaria:

“Há sempre um completo sortido de doce fino. Preparam-se queques, faz-se pão-de-ló de Arouca, pudins, travessa de ovos de fio”.
In o jornal “O Comércio do Porto”, de 29 de Fevereiro de 1860 – 4ª Feira


Quanto às confeitarias dessa época, conhece-se a Confeitaria Barbosa, do Largo de S. Domingos, 37, fundada em 1857. 
Sobre a sua produção, dizia-se:

“Biscoutos de canela, dito Harmonia, dito Ovelhas, dito d’argolinhas”.
In “O Primeiro de Janeiro”, de 28 de Dezembro de 1888


Publicidade à Confeitaria Barbosa, In o semanário "O Imparcial" de 16 de Outubro de 1899



E não podia deixar de fazer-se referência, à Confeitaria Cascais, onde surgiu pela 1ª vez, no Porto, o bolo-rei, em 1890.


Confeitaria Portugueza (Confeitaria Cascais) de Júlio Cascaes, na Rua de Santo António, 232-235 – Cartão comercial



Publicidade ao Bolo-Rei inserida no Jornal “A Voz Pública” de 23 de Dezembro de 1900


Pelos anúncios anteriores se observa que o Bolo-Rei já estava a ter grande aceitação e, alguns, até já se reclamavam de ter sido, na cidade, os lançadores do doce que ganhou fama.



Publicidade ao bolo-rei, in jornal “A Voz Pública” de 30 Dezembro 1900




Até o bolo-rei se impor definitivamente, pelo Natal, o rei era, de facto, o Pão-de-ló e, também, o “Pão pôdre doce”, como atesta o anúncio abaixo.



Publicidade ao “Pão pôdre doce”, In jornal “A Voz Pública” de 25 Dezembro de 1907


(Continua)


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