sábado, 7 de setembro de 2024

25.250 Filantropos que começaram por ser negreiros

 
Por norma, estas personagens que, em tempos, se tinham dedicado e feito fortuna com a exploração de outras pessoas e povos, tentavam ao ver aproximar-se a hora de prestar contas ao Criador, fazer as pazes com a humanidade, praticando o bem-fazer.
No término da existência, os destinatários de parte ou da totalidade dos bens legados eram as Ordens Religiosas Terceiras, que exploravam cemitérios privados ou que, a partir da institucionalização dos cemitérios públicos, neles tinham as suas áreas privativas.
 
 
 
 
Joaquim Ferreira dos Santos (Conde de Ferreira)
 
 
Joaquim Ferreira dos Santos (1782-1866), nascido a 4 de Outubro de 1782, no lugar de Vila Meã, na freguesia de Campanhã, era o quinto filho de uma família pobre de lavradores, tendo chegado a estudar no seminário, não mostrando, no entanto, qualquer vocação nem entusiasmo.
Cedo, embarca para o Brasil para junto de um familiar, dedicando-se ao comércio e acabando por tornar-se traficante de escravos.
 
 
 
“Depois de um curto período como caixeiro no Porto, contrariando os pais, emigrou para o Brasil em 1800, levando consigo carta de recomendação dirigida a um parente que se encontrava estabelecido como comerciante no Rio de Janeiro. No Brasil, ajudado e protegido pelo seu parente, foi prosperando no negócio, dedicando-se ao comércio por consignação de produtos enviados do Porto.
Depois de ter estabelecido relações comerciais entre a sua casa e a praça de Buenos Aires, dirigiu as suas atenções para África, com o intuito de alargar as suas relações com essa parte do mundo, foi três vezes a Molumbo, Angola, onde criou várias feitorias e montou um lucrativo negócio negreiro, importando cerca de 10 mil escravos para o Brasil”.
Cortesia de Rui Cunha


 
No Rio de Janeiro, Joaquim Ferreira dos Santos casou com D. Severa Lastra, uma senhora argentina, natural de Buenos Aires, detentora de uma enorme fortuna. O único filho que tiveram morreu em criança e, quando Joaquim Ferreira dos Santos enviuvou, tornou-se herdeiro de todos os bens de sua mulher.
 
 
 

Conde de Ferreira – Fonte: revista “O Ocidente”, em 21 Abril de 1883
 
 
 
 
Joaquim Ferreira dos Santos é um dos muitos casos de personagens que enriqueceram no Brasil com negócios ligados ao tráfico de escravos e que, de volta a Portugal, continua com as suas actividades comerciais e bancárias e se torna, ainda, um apoiante de D. Maria II, que o nomeia barão, visconde e conde.
Tendo abraçado a corrente política em ascensão do Liberalismo, foi membro do Conselho de Sua Majestade, comendador da Ordem Militar de Cristo e da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, e recebeu, em Espanha, a Grã-Cruz da Ordem de Isabel, a Católica.
Morre em 1866, sendo sepultado no cemitério de Agramonte.
Não tendo descendentes directos o Conde de Ferreira, deixa a sua fortuna a uns poucos amigos, uns sobrinhos, à Santa Casa da Misericórdia, à Ordem Terceira da Trindade, Ordem Terceira do Terço, Ordem Terceira de S. Francisco e Ordem Terceira do Carmo.
Uma verba considerável, 144 contos de réis, destina-a ao ensino primário, para que o estado construa 120 escolas primárias, para ambos os sexos, em vilas sede de concelho, obedecendo a um mesmo projecto e dotadas, ainda, de residências para os professores.
 
 
 
 

Escola do Conde de Ferreira, em Setúbal



Antes da sua morte, em 1866, o conde de Ferreira nomeara seu testa­menteiro um tal José Gaspar da Graça, que de­via dar cumprimento ao seu desejo de que, com o remanescente da herança, que era 600 contos de réis, se procedesse à constru­ção de um hospital de alienados.
 
 
 

Passagem do testamento do Conde de Ferreira – Fonte: revista “O Ocidente”, em 21 Abril de 1883
 
 
 
Para cumprir o destino do remanescente da herança, foi adquirido, a 26 de Novembro de 1867, um terreno cuja escritura de venda mencionava uma quinta situada na Cruz das Regateiras (Rua de Costa Cabral) vendida por José Ferreira Pinto Basto, filho do fundador da Vista Alegre, com o mesmo nome do seu pai.
Em 25 de Julho de 1869, realizou-se no Porto uma manifestação exigindo o cumprimento do legado, pois, passados três anos sobre a morte do conde, o hospi­tal continuava sem ver a luz do dia.
Por fim, o hospital seria inaugurado em 24 de Março de 1883 e entre­gue à Santa Casa da Misericórdia do Porto, que ainda hoje o administra, depois de uma passagem (26 anos) pelas mãos do Estado.
O projecto do hospital é entregue inicialmente ao professor de arquitectura da Escola de Belas Artes do Porto, Manuel d’ Almeida Ribeiro, arquitecto e professor na Academia Portuguesa de Belas Artes, mas devido ao seu falecimento, durante a construção, o projecto acabará por ser entregue a Faustino Vitória, Director Geral de Obras Públicas do Norte.





Hospital do Conde de Ferreira – Ed. Arquivo Histórico Municipal
 
 
 
 
De acordo com o testemunho de Domingos de Almeida Ribeiro, escriturário do testamento, o novo hospital a implantar na cidade do Porto fora inspirado por D. Pedro V de Portugal e correspondia a um outro (Hospício Pedro II), localizado no Brasil. Seria, então, um hospital para alienados.
Assim, diz-se que, a arquitectura do Hospital do Conde de Ferreira foi inspirada no Hospício Pedro II, ou Hospital da Praia Vermelha, inaugurado no Rio de Janeiro em 1852 e que foi o primeiro hospital psiquiátrico do Brasil e o segundo da América Latina.

 
 

Vista aérea do Hospício Pedro II - Fonte: Wikipédia
 
 
 
Entretanto, em 21 de Setembro de 1877, já após a morte do conde de Ferreira, o escultor Soares dos Reis (1847-1889) entrega uma estátua do falecido e referido conde, sendo-lhe pago, no dia seguinte, 600 mil réis, após aprovação da estátua pela Academia Portuguesa de Belas-Artes, de acordo com o contrato da empreitada assinado em 2 de Setembro de 1875.
Essa estátua, em mármore, acabará por ser transferida do mausoléu do cemitério de Agramonte (Secção da Ordem da Trindade) para o Museu Soares dos Reis, ficando no seu lugar uma outra réplica em bronze.

 
 

Conde de Ferreira – Obra de Soares dos Reis




Uma outra estátua do conde, em mármore de Carrára, da autoria de José Joaquim Teixeira Lopes (pai) foi colocada no frontão da fachada principal do Hospital do Conde de Ferreira, tendo sido transferida, c. 1900, para um plinto nos jardins do hospital.

 
 
 

Estátua do conde de Ferreira coroando o frontão do edifício


 
 

Estátua do Conde de Ferreira, da autoria de Teixeira Lopes (pai), já nos jardins do hospital





Teixeira Lopes (pai) e filho

 




Joaquim Pinto da Fonseca e Manoel Pinto da Fonseca
 
 
 
 
Manoel Pinto da Fonseca nasceu em 10 de Outubro de 1804, em Divino Salvador de Moure, Felgueiras.
Era o filho primogénito de Francisco Pinto Lemos e Violante Ribeiro da Fonseca e irmão de Joaquim Pinto da Fonseca (1816-1897) e António Pinto da Fonseca (nascido em 04 de Maio de 1814).
Manoel Pinto da Fonseca tendo chegado ao Brasil, em 1825, vai como funcionário caixeiro de um estabelecimento no Rio de Janeiro, a partir de 1835, assumir os negócios dessa firma, começando a ter o seu nome ventilado nas páginas de anúncios dos jornais, relacionando-o com a importação de produtos vários.
É quando se associa a esse negócio, o de tráfico de escravos, com a participação conhecida e bem documentada do seu irmão Joaquim.
Do outro irmão, António, não se conhece qualquer ligação àquele tráfico.
Manoel Pinto da Fonseca morre em 20 de Agosto de 1855, em Paris, onde estava à procura de uma cura para uma doença que o atormentava.
Sabe-se que, em 1872, Camilo Castelo Branco mandou inutilizar toda a edição de um romance que então tinha a imprimir: - "A Infanta Capelista"; e que, nesse mesmo ano, alguns meses passados, fazia publicar, editado pela editora de Ernesto Chardron, um outro romance, "O Carrasco de Vítor Hugo José Alves", cuja acção e personagens são em tudo semelhantes aos do livro inutilizado.
Nesse romance são referidos os grandes negreiros Fonsecas, Manuel e Joaquim.
O primeiro, Manoel Pinto da Fonseca, foi porventura o único grande negreiro invocado, até então, pelo nome próprio, na ficção portuguesa e assim classificado, na década de 1840, no Rio de Janeiro, pelos comissários ingleses, ali destacados para fiscalizarem o tráfico de escravos, como o maior de todos os negreiros.
Manuel Pinto da Fonseca, proprietário de várias feitorias na costa ocidental africana e no Brasil, foi benemérito de várias ordens religiosas, entre as quais a do Bom Jesus de Braga. 
Após o regresso de Manoel Pinto da Fonseca a Portugal, em 1851, Camilo Castelo Branco faz-lhe referência na obra atrás referida, bem como ao seu cognome de “o Conde de Monte Cristo”, pela ligação que ele tinha tido ao tráfico de escravos no Brasil, onde fez uma fortuna colossal e por, na realidade, ter atingido o título nobiliárquico de conde.





Manoel Pinto da Fonseca (busto de mármore branco, assinado por G. DUPRE-F. 1852)
 
 
 
 
"Manoel Pinto da Fonseca", na sua acção de benemérito ficou com o seu nome ligado ao "Asilo D. Luís I" e ao "Convento de Marvila".
 
 
 
“O «Mosteiro de Marvila» foi suprimido por decreto de 11 de Abril de 1872. Depois da carta de lei de 10 de Abril de 1874, o Governo ofereceu as instalações para o "Asilo D. Luís I", fundado em 1861, com um legado testado pelo comendador "Manuel Pinto da Fonseca".
Depois da implantação da República, logo em 1911, o nome do ASILO, foi substituído por "Asilo Manuel Pinto da Fonseca". E, em 1928, vagando esta casa, por o Asilo se ter transferido para o "Porto Brandão", nela foi instalado o "Asilo dos Velhos de Campolide", com secção para cegos de ambos os sexos. O edifício tem capacidade para albergar cerca de 500 internos. Actualmente, no portão do corpo central do pátio de entrada, vê-se a legenda de «Asilo de Velhos de Marvila»”
Fonte: Blogue “Ruas de Lisboa com Alguma História”
 
 
O texto seguinte faz referência aos dois irmãos de Manoel Pinto da Fonseca, Joaquim Pinto da Fonseca e António Pinto da Fonseca.
 
 
“Sobre os Irmãos Fonseca corriam as coisas mais fantasiosas, reveladoras da sua espetacular fortuna: um deles, dizia-se, comia em baixelas de prata renascentista, bebia em taças de oiro e fazia-se conduzir em caleches reais; outro, instalara-se com pompa e circunstância, no Palácio Palmela, ao Calhariz, tendo, pouco depois, comprado, em Sintra, a Quinta do Relógio, além do Palácio da Mitra, à Junqueira, tudo edifícios sumptuosíssimos.”
Cortesia de Maria Filomena Mónica
 
 
 
António Pinto da Fonseca e Joaquim Pinto da Fonseca, em 1860, vão ser sócios da casa bancária lisboeta, “Fonseca, Santos & Viana”, juntamente com Carlos dos Santos Silva e de Francisco Isidoro Viana, o seu fundador.
Desde há anos, com ligação à actividade bancária, Joaquim Pinto da Fonseca, falecido em 1897, à data, morador na Rua Formosa, 203, vai ter como última morada e por sua vontade, o cemitério de Agramonte, mas vai ainda assistir à fundação, no Porto, em 1896, da Casa bancária “Pinto da Fonseca & Irmão”, pela mão dos seus filhos, Manuel e Joaquim que, em 1933, haveria de abrir falência.
Joaquim Pinto da Fonseca viveu durante anos na morada da Rua Formosa, nº 203, onde faleceu e que tinha pertencido ao juiz de Direito Criminal substituto João Pereira Baptista Vieira Soares e, depois, aos seus herdeiros e cujo nome aparecia nos Autos de Querela do julgamento no qual Camilo Castelo Branco foi réu.
Em 1857, já Joaquim Pinto da Fonseca era proprietário do prédio aí situado, pois solicitava à Câmara do Porto, nesse ano, autorização para lhe acrescentar um andar.
Mais a montante da Rua Formosa, entre aquela morada e o palacete do visconde Pereira Machado, no nº 163, se entrava pela porta-cocheira do prédio para um caramanchão, e na área que encontrávamos pela frente, em anos da segunda metade do século XIX, funcionou um Tivoli, cujos terrenos pertenceriam à família Pinto da Fonseca e tinham feito parte da Quinta do Adro que se estendia até às imediações da igreja de Santo Ildefonso.
Mais tarde, nesses terrenos, se instalaria o Jardim Passos Manuel e, posteriormente, o Coliseu do Porto.
 
 
 
“A fundação da casa bancária Pinto da Fonseca & Irmão data de 30 de dezembro de 1896. Constituída sociedade comercial em nome coletivo, com responsabilidade ilimitada, estabeleceu a sede social na Praça da Liberdade, no Porto. Foram sócios fundadores Joaquim Pinto da Fonseca e Manuel Pinto da Fonseca”.
Fonte: Banco de Portugal (Arquivo Histórico)

 
 
 
Casa Bancária “Pinto da Fonseca & Irmão”, em 1897 e o local na actualidade
 
 
 
Manuel Pinto da Fonseca irá viver num palacete situado na esquina da Rua dos Belos Ares e da Avenida da Boavista, mandado por si construir, e o seu irmão Joaquim Pinto da Fonseca passará a viver num palacete da Praça da República (onde esteve alojado durante alguns anos o Instituto Francês), cuja propriedade era do conde Alves Machado, que vivia no Hotel Francfort.
O palacete de Manuel Pinto da Fonseca, na Avenida da Boavista, seria pasto das chamas num incêndio ocorrido em 14 de Outubro de 1926, quando já era propriedade do capitalista Manuel Joaquim de Oliveira.
 
 
 

Palacete de Manuel Pinto da Fonseca, na Avenida da Boavista


 
 

Cartaz de homenagem aos seis bombeiros que pereceram no combate ao incêndio do palacete de Manuel Pinto da Fonseca, no qual é visível um esboço do edifício

 
 
 
Joaquim Pinto da Fonseca (1846-1920), o filho, assegurará a continuidade da actividade bancária de “Pinto da Fonseca & Irmão”, juntamente com o seu irmão Manuel Pinto da Fonseca até que, antes do seu falecimento, em 1920, associou à firma, os seus filhos Joaquim Pinto da Fonseca Júnior e Carlos Pinto da Fonseca.
O prédio de primeira instalação da Casa Bancária Pinto da Fonseca & Irmão passaria a ser ocupado pelo Banco Nacional Ultramarino e, assim, nos seus últimos anos de actividade, esteve alojada numa loja do Palacete das Cardosas, na Praça da Liberdade.
 
 
 
 

Obras para instalação, no Palacete das Cardosas, da Casa Bancária Pinto da Fonseca & Irmão

 
 
Sobre a foto anterior, em 1920, pode ver-se a loja entaipada, situada no palacete das Cardosas, onde não tardaria a funcionar a casa bancária Pinto da Fonseca & Irmão, até 1932, e onde, posteriormente, abriria até aos nossos dias a Farmácia Vitália.

2 comentários:

  1. Excelente recordação histórica - sou bisneto de Comerciantes no Rio de Janeiro e S Paulo, desde miúdo ouvia estas histórias... Assim, documentada e datada é uma maravilha saber. Obrigado Américo!

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  2. Como te deves ter apercebido, a Filomena Mónica escreveu sobre estas personagens. Abraço

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