segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

25.26 O Natal pela pena dos nossos escritores e outras histórias natalícias


Muitos dos nossos escritores mais conceituados se referiram ao Natal.
Sobre as memórias do Natal de meados do século XIX, nos dá conta o escritor portuense, Júlio Dinis, na sua obra “A Morgadinha dos Canaviais”.


“Eu não sei se esta história terá leitor tão mal-aventurado, que não possua recordações e saudades associadas à noite de Natal, aquela festiva e abençoada noite, em que as ruas e os lugares públicos se despovoam, e nos lares domésticos parece crepitar e cintilar o fogo mais acalentador do que nunca. Se algum deserdado da fortuna há aí que não saiba o que é a festa das consoadas em família, esse que não leia este capítulo, que nele não encontrará prazer. Se alguns as gozaram já noutros tempos, porém hoje erram a essas horas pelas ruas solitárias, olhando com inveja para cada raio de luz que rompe das frestas de tantas janelas discretamente fechadas, ouvindo comovidos o ruído das alegrias que vão no seio das famílias, e pela fantasia criando em cada morada um mundo íntimo de afetos e de venturas como o de que a sorte os privou, que esses me perdoem as amargas saudades, que porventura lhes avive assim.
É certo que não há noite mais alegre; alegre desta alegria que vai direita ao coração, sem perturbar os sentidos com fumos de embriaguez; alegre deste alegria cândida a que o homem é sujeito do berço à velhice, a qual respeitam os estos das paixões, na idade delas, e o gelo do egoísmo, no declinar da vida.
Bem escura, bem ventosa, bem fria e húmida surjas tu sempre, noite de vinte e quatro de Dezembro, que melhor então se avaliará pelo contraste a luz, o calor, o aconchego dos lares, e mais íntimos se estreitarão os círculos da família em roda da ceia patriarcal.
E vós todos, a quem uma moda tola não constrangeu ainda a abandonar os hábitos que de pequenos contraístes, e festejais ainda o Natal de Cristo
segundo o estilo velho, continuai a manter genuínos esses costumes nacionais, que não resultará daí desdouro para o vosso nome ou brasão. A roda da civilização, a que aplicais ombros com tanto denodo, não se cravará por isso. — Podeis, elegantes meninas, cantar loas sem escrúpulo diante do presepe armado na sala mais íntima da casa, que nem por isso cantareis pior na das visitas as árias italianas que aprendestes no colégio; não coreis de colaborar, por exceção, esta noite nos misteres da cozinha, que sobra de água-de-colónia e perfumes tendes no toucador para as abluções purificatórias. Homens graves, a república perdoar-vos-á uma pequena infidelidade, a política do país e da Europa não periclitará, desnorteada, se, por um pouco, lhe negardes a vossa atenção; humanizai-vos, pois, uma vez por ano, e baixai ao seio da família os olhares que poderosos empenhos vos trazem sublimados. — Entrai com as crianças em jogos pueris e fáceis, que não destemperareis a inteligência para as filosóficas cogitações do boston e do whist”.
Júlio Dinis, In “A Morgadinha dos Canaviais”


Publicado pela primeira vez em 1870, a obra “Serões da Província” é uma compilação de contos e curtas novelas que Júlio Dinis publicou em folhetim no Jornal do Porto, entre 1862 e 1864.
A narrativa seguinte é publicada naquela obra, mas acontece em 1852, com uma alusão ao desfazer do presépio.
 
 
“Eu não sei de nada mais triste do que o terminar de todas as festas.
Em criança arrasavam-se-me de água os olhos quando assistia ao desfazer do presépio que, em honra do Menino Deus, se armava na minha casa pelo Natal.
Cerrava-se-me o coração de melancolia, ao ver guardar outra vez na arca — e por um ano! — o Menino,
Nossa Senhora, S. José, os grupos dos pastores, a vaca, o jumento, os três reis, os anjos e todos os mais acessórios do pitoresco santuário, diante do qual, nesses quinze dias, se rezava a coma em família e se cantavam as loas da ocasião! Amargo dia de Reis, último desta abençoada quinzena, já te não via assomar sem que se me enevoassem aquelas puras alegrias infantis. Que não encontrásseis mais estorvos pelo caminho, venerandos Magos! Que aquela milagrosa estrela, que vos trouxe a Belém, vos não fizesse errar mais tempo antes de lá chegardes! Fatal 6 de Janeiro! com o teu anoitecer, anoitecia-me o coração.
Voltava a vida normal, voltavam os bancos das aulas, a aritmética, a caligrafia, oh! a caligrafia sobretudo tão associada à férula do mestre-escola! e o que era pior que o mais — acabava naquela santa comunidade, em que durante quinze dias vira a família; o lar doméstico já não oferecia o alegre tumulto e desordem, em que velhos e crianças tomavam parte, esse ruído e confusão que tão fundo calava no coração de todos. A solenidade que nos reunira sob o mesmo teto, que nos fizera viver a mesma vida, ia acabar. Nós, as crianças, chorávamos às claras na despedida; mas suspeitávamos que as nossas lágrimas tinham companheiras envergonhadas. Quantas vezes surpreendíamos segredos de comoção, que nos redobrava o choro!
Suspeitava-o eu então, mas acredito-o agora que, apesar de na idade em que a lei autoriza a não me considerar criança, ainda não sou superior a cenas daquelas”.
Serões da Província (Justiça de Sua Majestade) Júlio Dinis
 
 
Por sua vez, Augusto Queiroz, na revista portuense “A Esperança”, Volume 1, em 1865, versejava sobre o Natal.

 
 




Quanto a Camilo Castelo Branco, portuense por adopção, diversas vezes faz referência também ao Natal, nas suas obras.


“Os rapazes escaldam as pinhas para lhes descelularem os pinhões, que hão-de jogar e comer na noite de Natal. Nas hortas medram as viçosas couves galegas, cujos olhos hão-de ser cozidos com o farto bacalhau naquela noite almejada”.
Camilo Castelo Branco, In “Ecos humorísticos do Minho”



“Gostou muito de a ver entretida com o presépio do Menino Jesus, cheia de devotos carinhos, ora beijando-lhe os pés, ora incensando o recinto do religioso espectáculo, guardando em todos estes actos umas atitudes misteriosas e uns silêncios respeitosos e dignos das primitivas cristandades nos subterrâneos da Roma pagã. Acompanhou o tio Manuel a sobrinha à missa do galo e embirrou com o fidalgo do Toural, que lhe atirou confeitos a ela, e a ele dois rebuçados velhos à cara que pareciam de chumbo”.
Camilo Castelo Branco, In “A viúva do enforcado”



Por sua vez, a propósito da primeira festa de Natal que ocorreu no Palácio de Cristal, inaugurado a 18 de Setembro de 1865, pelo Rei D. Luís, Ramalho Ortigão, outro portuense, nascido na Lapa, descreve nas Crónicas Portuenses (1865), Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1944, a forma como o pinheiro de Natal foi recebido pelas crianças:


“Vi ante-ontem no Palácio de Cristal o enlevo das crianças portuenses ao pé do pinheiro do Natal, todo resplandecente de luzes e vistosíssimo de bonecos, de tambores, de cornetas e cartonagenzinhas com amêndoas, e declaro que não lhes tive a menor inveja.
Ah! os directores do Palácio de Cristal entraram demasiado no espírito da época (...)”.


O escritor portuense Alberto Pimentel, nascido num prédio hoje inexistente, num largo da cidade que tem o seu nome e que muito escreveu sobre o Porto, sobre o Natal, diz-nos na sua obra “Entre o Caffé e o Cognac”:




Por sua vez, Ramalho Ortigão, no conto, “O Natal Minhoto”, diz-nos, a determinado passo, a propósito do Natal Minhoto acontecido numa casa abastada e que ele considerava, como aquele que era mais tradicional:


“Depois celebrava-se a ceia, o mais solene banquete da família minhota.
Tinham vindo os filhos, as noras, os genros, os netos. Acrescentava-se a mesa.
Punha-se a toalha grande, os talheres de cerimónia, os copos de pé, as velhas garrafas douradas. Acendiam mil luzes nos castiçais de prata. As criadas, de roupinhas novas, iam e vinham ativamente com as rimas de pratos, contando os talheres, partindo o pão, colocando a fruta, desrolhando as garrafas.
Os que tinham chegado de longe nessa mesma noite davam abraços, recebiam beijos, pediam novidades, contavam histórias, acidentes da viagem; os caminhos estavam uns barrocais medonhos; e falavam da saraivada, da neve, do frio da noite, esfregando as mãos de satisfação por se acharem enxutos, agasalhados, confortados, quentes, na expectativa de uma boa ceia, sentados no velho canapé da família.
E o nordeste assobiava pelas fisgas das janelas; ouvia-se ao longe bramir o mar ou o zoar a carvalheira, enquanto da cozinha, onde ardia no lar a grande fogueira, chegava num respiro tépido o aroma do vinho quente fervido com mel, com passas de Alicante e com canela.
Finalmente o bacalhau guisado, como a brandade da Provença, dava a última fervura, as frituras de abóbora-menina, as rabanadas, as orelhas-de-abade tinham saído da frigideira e acabavam de ser empilhadas em pirâmide nas travessas grandes. Uma voz dizia: — Para a mesa! Para a mesa! Havia o arrastar das cadeiras, o tinir dos copos e dos talheres, o desdobrar dos guardanapos, o fumegar da terrina. Tomava-se o caldo, bebia-se o primeiro copo de vinho, estava-se ombro com ombro, os pés dos de um lado tocavam nos pés do que estavam em frente. Bom aconchego! Belo agasalho!
As fisionomias tomavam uma expressão de contentamento, de plenitude.
Que diabo! Exigir mais seria pedir muito. Tudo o que há de mais profundo no coração do homem, o amor, a religião, a pátria, a família, estava tudo aí reunido numa doce paz, não opulenta, mas risonhamente remediada e satisfeita. Não é tudo?”


A antiga ceia do Natal
nos velhos costumes do Porto
Ramalho Ortigão, in "Crónicas Portuenses" (27/12/1865)








(Continua)





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