segunda-feira, 29 de abril de 2019

25.44 Aquedutos gaienses e outros temas


“Eu passei os primeiros anos da minha vida entre duas quintas, a pequena Quinta do Castelo, que era de meu pai, e a grande Quinta do Sardão que era, e ainda é, da família do meu avô materno, José Bento Leitão; ambas eram ao sul do Douro, ambas perto do Porto, mas tão isoladas e tão fora do contacto da cidade que era perfeitamente do campo a vida que ali vivíamos(…).”
Almeida Garrett (04 Fev 1799 - 09 Dez 1854)

Sobre uma criada, trazida do Brasil por seu avô, diz Garrett:

 (…) uma parda velha, a boa Rosa de Lima, de quem eu era o menino bonito entre todos os rapazes, e por quem ainda choro de saudades apesar do muito que me ralhava às vezes, era a cronista-mor da família, e em particular da capela e da quinta do Sardão, que ela julgava uma das maravilhas da terra e venerava como um bom castelhano o seu Escurial. Contava-me ela, entre mil bruxarias e coisas do outro mundo que piamente acreditava, que também naquelas coisas “se mentia muito”; que, de meu avô, por exemplo, diziam que tinha aparecido embrulhado num lençol passeando à meia-noite em cima dos arcos que trazem a água para a quinta: o que era inteiramente falso, porque “ela estava certa que, se o Sr. José Bento pudesse vir a este mundo, não se ia embora sem aparecer à sua Rosa de Lima” – E arrasavam-se-lhe os olhos de água ao dizer isto, luzia-lhe na boca um sorriso de confiança que ainda agora me faz impressão quando me lembra.”


"Nasci no Porto, mas criei-me em Gaia".
Almeida Garrett


Em 1799, Garrett nasceu no Porto, na Rua do Calvário (hoje a Rua do Dr. Barbosa de Castro), numa casa que arderia em 27 de Abril de 2019.


Ataque ao fogo ocorrido na casa onde nasceu Garrett – Fonte: JN


O prédio de propriedade particular, estava em vias de ser declarado edifício de Interesse Municipal, tentando o Município adquiri-lo, para aí vir a instalar um polo do Museu do Liberalismo.
Em 2020, comemorar-se-ão 200 anos sobre a ocorrência no Porto da Revolução Liberal.
Em 1804, com 5 anos de idade, Almeida Garrett, foi viver para Vila Nova de Gaia, onde a família tinha propriedades. Numa primeira fase, habitou a Quinta do Castelo, no lugar do Candal, freguesia de Santa Marinha, sita nas proximidades das ruínas do Castelo de Gaia e que tinha origem nos ancestrais do seu pai.



“Diante da Invasão islâmica da península Ibérica a partir do século VIII, e posteriormente, no contexto da Reconquista cristã da península, por volta do ano 1000, a fronteira entre muçulmanos e cristãos fixou-se no rio Douro. Diante das oscilações da linha de fronteira, a povoação de Cale (Gaia), perdeu a sua população cristã, que se refugiou na margem norte do rio.
O primitivo castelo terá sido erguido pelas forças muçulmanas, uma vez que é referido em uma das antigas lendas associadas a Gaia, que se refere ao confronto entre o rei cristão D. Ramiro e o rei mouro Alboazer.
Com a conquista definitiva e subsequente pacificação dos territórios a sul do Douro por volta de 1035, registou-se um repovoamento da antiga Gaia, incentivado por foral passado pelos novos senhores das terras conquistadas. A nova povoação denominou-se "Vila Nova de Gaia", florescendo ao abrigo dos muros do antigo castelo de Gaia.
O nome das duas povoações - do Porto e de Gaia - era usualmente referida em documentos coevos como "villa de Portucale", e o condado do Reino de Leão no qual se inscreviam, denominado de "Portucalense".
Após a fundação do reino de Portugal, as duas povoações - Gaia e a Vila Nova - mantiveram-se autónomas. Gaia recebeu carta de foral passada pelo rei D. Afonso III em 1255 seguindo-se Vila Nova, por D. Dinis, em 1288.
O castelo foi conquistado pelo príncipe D. Afonso, filho de D. Dinis, em 4 de Janeiro de 1322. Poucos anos mais tarde, o príncipe D. Pedro, ao saber que seu pai, D. Afonso IV, tinha autorizado a morte de D. Inês de Castro, entrou em guerra aberta contra o pai e saqueou a região do Entre-Douro-e-Minho (1355-1357), tendo também se apoderado de Gaia e seu castelo. Data deste período o primeiro alcaide conhecido do castelo, Rodrigo Anes de Sá, nomeado por D. Pedro, já rei, em 29 de Julho de 1357.
Nesse período, o castelo sofreu obras de reparação ou reforço, uma vez que, em 1366, o abade do mosteiro de Pedroso forneceu vinte carros de lenha para o Castelo de Gaia, também tendo sido cedidos pela mesma instituição carros e bois para esses trabalhos.
Ainda nesse século, em 1383, ambas as povoações foram integradas no julgado do Porto, perdendo a sua autonomia. Talvez por esse motivo, em 1385 os cidadãos portuenses, a pretexto de desacordos com o alcaide Aires Gomes de Sá, assaltaram o castelo e o danificaram de tal modo que o mesmo deixou de ter alcaide.
 In Fortalezas.org
 
 
 

A meio da foto, o morro do Candal
 
 
João de Barros, no reinado de D. João III, na sua crónica escreveu sobre o castelo de Gaia:
 
 
"Tem a cidade o arrabalde de Vila Nova, cuja paróquia é Santa Marinha e junto dela está o Castelo de Gaia em um lugar alto e mui aprazível. Este castelo é já derribado, que a cidade já derribou. É tão antigo que, dizem, que o fundou Caio Júlio César. E nele estavam umas pedras com o nome de Caio César."
Crónica de João de Barros





Nas imediações do morro da foto acima onde esteve erguido o Castelo de Gaia, se situava a Quinta do Castelo, pertença da família do pai de Almeida Garrett, António Bernardo da Silva Garrett (1740-1834), selador-mor da Alfândega do Porto.
Em baixo apresenta-se uma gravura do morro do Candal (ou morro do Castelo de Gaia), 1849 - Cesário Augusto Pinto (1825-1896), Gaia in As margens do Douro, collecção de doze vistas e uma mesma perspectiva actual da gravura, obtida no Google maps, onde é possível visualizar algumas construções que se mantêm.
De notar que para poente (não visível) se encontrava o Mosteiro do Vale da Piedade.






No blogue Memórias Gaienses da Biblioteca Pública Municipal de V. N. de Gaia, sobre a gravura acima, de Cesário Augusto Pinto refere-se:


“Na actualidade mantêm-se a maior parte das construções, a saber: o Lar Pereira Lima, ao alto que pertence à Misericórdia do Porto, a capela de Nossa Senhora da Bonança (ou do Bom Jesus de Gaia), os armazéns do vinho do Porto, a casa junto às escadas da Rua do Salgado. 
Na cota baixa, de nascente para poente, ainda existem as paredes e belas janelas dos dois primeiros edifícios e todo o casario ribeirinho do Cais de Gaia que aqui parte com o Cais da Fontinha, bem assim o Oratório e escadas da Boa Passagem (Era aqui que se situava o pelourinho de Vila Nova de Gaia que foi derrubado e semidestruído na cheia de 1909).
A poente, na cota média, pode ver-se o edifício da Quinta da Bela Vista onde existia a cerâmica do Vale da Piedade.”


Cruzeiro do Senhor da Boa Passagem, à direita - Fonte: Google maps






Capela do Bom Jesus ou Capela de Nossa Senhora da Bonança, na Rua Viterbo de Campos




Interior da capela - Foto de “O Porto Encanta”
 
 
Em tempos recuados existiram, junto ao castelo de Gaia, diversos templos: a capela de São Marcos, que a tradição considera ter sido a primeira Sé, a capela de Nossa Senhora do Castelo, a capela de Nossa Senhora da Piedade e a capela de São Lourenço mártir.
Por outro lado, a Quinta do Sardão e o respectivo palacete, de que fala o poeta, no texto acima, viram a luz do dia por acção do sargento-mor de Ordenanças, José Bento Leitão, em Oliveira do Douro, onde criaria os seus filhos, nomeadamente, D. Ana Augusta de Almeida Leitão, mãe do poeta Almeida Garrett.
Gomes de Amorim, autor das Memórias Biográficas de Garret, descreve a Quinta do Sardão, do seguinte modo:


"Magnifica e muitas vezes maior que a do Castello. Compõe-se de pomares, terras de pão e matas. Além de outras nascentes, recebe agua com abundancia de um aqueducto, formado por vinte e três arcos, assentes em outros tantos pilares, de estylo romano, semelhantes aos que levam agua para a Serra do Pilar. O arco mais alto terá uns doze ou quatorze metros de altura. São erguidos na extremidade sul da quinta, à beira da estrada de Villar de Andorinho, e fornecem água para um grande depósito, onde concorrem muitas lavandeiras. A água canalisada por baixo do chão, desde o pinhal, entra na mina d'onde passa para o cano do aqueducto, a uns duzentos metros do primeiro arco, vindo de Villar de Andorinho. É deliciosa, fresca e leve como a da fonte da Sabuga, em Cintra. Na parte superior da base do terceiro pilar, contando da mina, está, do lado da estrada, esta data, grosseiramente aberta na pedra, e quasi apagada já pelo tempo"177U”. Supponho ser a data da fundação. Desenhei fielmente os caracteres".
Cortesia: Isabel Sereno e João Santos, 1994, In: “monumentos.gov.pt”


No último cartel do século XIX, em 1879, a família de Almeida Garrett ofereceu a quinta às Irmãs Doroteias, onde instalaram um colégio.
Aquela Congregação Religiosa foi fundada em Quinto-Génova, em 1834, por uma genovesa, Paula Frassinetti.
No início, o colégio tinha uma organização escolar de três tipos: uma escola masculina, uma feminina para alunas externas e outra, também feminina, para alunas internas.
Após um interregno devido à alteração do regime político português – de 1910 a 1921 o Colégio reabriu com uma organização de dois tipos: uma escola para alunas externas e outra para alunas internas (ambas femininas).
Em 16 setembro de 1923, a Junta de Freguesia manda tirar a planta do terreno baldio dos Arcos do Sardão para o colocar em praça pública.
A partir de 1969, com a introdução do Ensino Infantil, em regime de co-educação, depois estendido à Primária, a estrutura do Colégio foi tendo sucessivas alterações.
Neste momento, a população escolar abrange o Jardim de Infância e o 1° Ciclo do Ensino Básico.
Uma característica arquitectónica que identifica esta quinta é a que se prende com a sua ligação a um aqueduto.
Para o abastecimento de água à quinta, seria construído, algures, durante século XVIII, um aqueduto que levava água de Vilar de Andorinho para a Quinta do Sardão.
A estrutura do aqueduto, em aparelho rusticado, era constituída por arcada de vinte e três arcos de volta perfeita, assentes em pilares, de diferentes cérceas. 
Este aqueduto (parcialmente demolido, em várias fases, ao longo dos anos) foi atravessado pela estrada nacional 222, para Avintes, pelo que seria, nesse trecho, interrompido em 1966.
Convém salientar que a data que é mais divulgada para o começo do levantamento do aqueduto é a de 1720 e que o obreiro teria sido o avô de Almeida Garrett.
Não nos parece que tal seja possível.
José Bento Leitão, nascido em Vila do Conde, em data indeterminada, por não ser consensual, fez fortuna no Brasil, em Pernambuco, onde enviuvou e concebeu durante esse primeiro casamento duas filhas.
Voltou para Portugal viúvo, muito rico, acompanhado da criada “parda velha”, Rosa de Lima, que foi presença referenciada nos escritos do poeta.
Em 1766 já era membro da Ordem de Cristo.
Em 1771, José Bento Leitão voltaria a casar, agora, com a que seria a avó de Almeida Garrett.
D. Ana Augusta de Almeida Leitão (1776-1841), mãe de Almeida Garrett, era irmã de João Carlos (1777-1824) e ambos filhos daquele segundo casamento de José Bento Leitão.
Portanto, se a data para levantamento do aqueduto fosse 1720 e o seu autor José Bento Leitão, ele já estaria em Portugal naquele ano, depois de um período a fazer fortuna no Brasil.
Isso implicaria que aquando do 2º casamento já tivesse uma provecta idade. Algo não bate certo e seria essencial saber, com certezas, a idade do nascimento do sargento-mor de Ordenanças.



“Feito pelo Marquês de Pombal Deputado da poderosa Companhia dos Vinhos do Alto Douro (cuja sede era no Porto), [José Bento Leitão] se entregara a espaventosos atos de “brasileiro” com fortuna: construção da quinta e palacete do Sardão, doações à Misericórdia de Vila do Conde, vida farta de grande senhor, rodeado de criadagem numerosa, como a querer reproduzir na Metrópole o bulício da casa grande do Brasil das patacas.”
Cortesia de Ofélia Paiva Monteiro


Excerto extraído da obra de Virgínia de Jesus Fontoura, “Pedro Gomes Simões: Homem de negócios do Porto: Século XVIII”


Do texto acima pode-se inferir que José Bento Leitão em 1761 ainda mantinha negócios com a colónia brasileira.



Palacete da Quinta do Sardão


Aqueduto da Quinta do Sardão


Aqueduto dos Arcos do Sardão – Fonte: Google maps



(Continua)

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