segunda-feira, 2 de novembro de 2020

25.102 Uma farmácia da Foz do Douro que ficou célebre

 
Era comum, na 2ª metade do século XIX, os portuenses juntarem-se em cavaqueira principalmente nos botequins e cafés. Muitos deles ficaram célebres.
Algumas livrarias, como a “Moré” ou farmácias, as antigas boticas, como a do Largo do Padrão ou a “Lemos”, do Largo do Carmo (ainda existentes) foram também locais de eleição para a troca de ideias. Mas, entre estas últimas, uma outra se destacava das restantes. Foi a Farmácia Amorim, de Francisco José de Amorim, natural de Braga.
Esta personagem viveu algum tempo em França e na Ilha da Madeira e, depois, radicou-se na Foz do Douro. Abriu a farmácia em finais do século XIX, nos n.os 34-35 da Esplanada do Castelo, na Foz do Douro, tendo encerrado nas primeiras décadas do século XX.
Tinha um ajudante de apelido Pereira.
 
 
 
Entre o Hotel da Boa Vista (visível à direita) e a Rua da Cerca no nºs 34 e 35 (assinalada por um ponto preto) ficava a Farmácia Amorim – Planta de Telles Ferreira de 1892


 
Esplanada do Castelo, c. 1930. O Club Rigollot, situava-se um pouco para a direita, fora do enquadramento da foto
 
 
 
 
Ficou a farmácia, para a posteridade, mais conhecida como o Club Rigollot, tão expressiva era a sua tertúlia.
O nome, segundo alguns, ter-lhe-ia sido atribuído em homenagem à memória de um benemérito, João Paulo Rigollot, aperfeiçoador dos sinapismos outrora usados.
Porém, desde de sempre a origem da denominação era, para muitos, a de “Rigolo”, significando alegria.
De um modo ou de outro, aqui, desde o fim da tarde até por vezes noite adentro, se reunia vasto número de personalidades em amena cavaqueira de assuntos muito diversos, porém tentando evitar a conversa sobre política partidária.
Por esta sociedade intelectual, que se tornou famosa por toda a cidade, passaram vários vultos da política, das letras, das ciências, antigos ministros, governadores civis, professores, juízes, banqueiros, etc., no mais ameno convívio, em conversa tolerante e variada.
De entre as várias personalidades que compunham o grupo, destacou-se o barão de Paçô Vieira, muito referenciado em várias iniciativas da Foz desse tempo e que vivia na Rua do Passeio Alegre, numa casa que ainda hoje existe, na esquina com a rua de acesso à Igreja da Foz (lado esquerdo) e que exerceu o cargo de presidente do clube.
Em Dezembro de 1952, o brigadeiro Nunes da Ponte escreveu na revista O Tripeiro, V série, que nenhum dos sócios do Clube Rigollot pertencia "ao número dos vivos".
Rui Manuel da Costa Perdigão da Silva Fiadeiro Duarte (de Cifantes e Leão) descreve-nos, no texto seguinte, algumas das personalidades que passaram pelo clube.
 
 
 
“Por aqui se encontravam:
-Barão de Paçô Vieira, José Joaquim de Sousa Barreiros Coelho Vieira Júnior (Guimarães, 16/8/1825 - Guimarães, Casa de Paçô Vieira, 2/3/1906), formado em Direito (1851), delegado do Procurador Régio, auditor do Exército (1864), governador civil de Braga (15/2/1865), vice-presidente e posteriormente presidente do Tribunal da Relação do Porto (1894 e 1896 respectivamente), juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça (1901), deputado em várias legislaturas, pai do conde de Paçô-Vieira (1.º) e do visconde de Guilhomil. Título de 11/7/1868, por D. Luís I;
-Francisco Ramalho Ortigão (sobrinho de Ramalho Ortigão), comerciante que dirigiu a casa comercial Ramalho Ortigão & Filho, chegou a montar nos jardins da sua residência, à Rua Alto da Vila, uma fábrica de tapetes, excelente cavaleiro e amador de equipagens, foi um dos organizadores do antigo Centro Hípico do Porto, Cônsul do Panamá, a quem chamavam Rof porque, na sua mocidade, fez jornalismo assinando-se R.O.F., pai de Francisco Veiga Ramalho Ortigão, passava temporadas na Foz;
-Engenheiro Barros Araújo;
-José Diogo Arroio (Porto, Rua Formosa, 23/7/1854 - Porto, Foz, 16/11/1925), doutor em filosofia pela Universidade de Coimbra, lente da cadeira de Zoologia e de Química Inorgânica (durante 44 anos) e director interino da Academia Politécnica do Porto, professor de Química Geral e Análise Química do Instituto Comercial e Industrial do Porto, director da Faculdade de Ciências do Porto durante 7 anos, jornalista e um dos fundadores do Jornal de Notícias, político, deputado, Conselheiro de Estado e notável pianista, primeiro director do Teatro Nacional de S. João;
-Adriano Bandeira;
-João José Vaz da Gama Barata (oficial superior do Exército);
-Dr. António Brandão Pereira (nasceu em Braga);
José Alves Bonifácio (Viana do Castelo, freguesia de Castelo de Neiva, 22/1/1860 - 1943), professor do Liceu Central do Porto e da Academia Politécnica, vereador da Câmara Municipal do Porto, viveu na Rua do Gama, na Foz do Douro;
-José Maria Rodrigues de Carvalho (Braga, 2/4/1829 - Paris, 31/7/1908), juiz conselheiro, deputado em várias legislaturas, nomeado par do Reino e que presidiu à Câmara Alta;
-António Marinho Falcão de Castro;
-Domingos Correia (coronel);
-Pedro Maria Pinto Leite da Fonseca (1868-1930), caricaturista e autor do álbum de caricaturas Glórias da Foz e do Clube Rigollot, cantor amador;
Manuel Ribeiro Rodrigues Forbes;
-António Granjo (Chaves, 27/12/1881 - Lisboa, 19/10/1921), assassinado na Noite Sangrenta, advogado, político, presidente da Câmara Municipal de Chaves (de Fevereiro a Julho de 1919), fundador do Partido Republicano Liberal, ministro da justiça no governo de coligação de Domingos Pereira (entre 30 de Março a 30 de Junho de 1919 e de novo entre 15 e 21 de Janeiro de 1920), presidente do conselho de ministros (entre 19 de Julho e 20 de Novembro de 1920, num governo liberal, e de novo entre 30 de Agosto e 19 de Outubro de 1921), maçom;
-Manuel Granjo (professor do Liceu);
-Henrique Carlos de Meireles Kendall (Porto, Santo Ildefonso 11/5/1839 - Porto, Foz do Douro 15/9/1917), morador na Rua do Rosário, n.º 112 em Miragaia, comerciante da praça do Porto, jornalista, banqueiro, accionista do Banco Mercantil de Viana do Castelo (com 100 acções), presidente do conselho administrativo da Companhia das Docas e Caminhos de Ferro Peninsulares, fundador e gerente da companhia de navegação Progresso Marítimo Portuense, deputado eleito pelo Porto na legislatura de 1906, membro da comissão organizadora das festas que se realizaram no Porto em Abril de 1904, comemorando o centenário do infante D. Henrique, vogal efectivo no Tribunal do Contencioso Fiscal (junto à alfândega do Porto), membro da comissão de exame de contas da Associação Comercial do Porto em 1870, director em 1882 e presidente da Associação Comercial do Porto em 1894 e 1895 (no último ano, não exerceu o cargo até ao fim), vice-presidente da Real Companhia Hortícola, membro do conselho fiscal do Banco Comercial do Porto e da Companhia de Fiação de Sal­gueiros, tesoureiro e membro da direcção da Associação das Creches de S. Vicente de Paulo, cultor das belas-artes e amador de música muito considerado, tendo tomado parte em alguns concertos de caridade, a que nunca recusou o seu valioso auxilio, escritor e memorialista, pai de onze filhos, em cuja casa se lançaram as bases do Orpheon Portuense, tendo sido a Rua D. Carlos I - depois Rua José Falcão - por ele aberta em finais da década de 1880, um dos maiores e mais assíduos animadores deste clube Rigollot;
-Artur César Veiga de Lacerda, Director da Companhia Aliança, director do Clube da Foz;
-Vitorino Tei­xeira Laranjeira (Amarante, S. Gonçalo, 21/3/1855 - 1934), bacharel pela Faculdade de Matemática da Uni­versidade de Coimbra, engenheiro militar que supervisionou o estudo e a construção da linha férrea do Douro, na etapa do Pocinho a Barca d’Alva, fez parte do Conselho Superior da Instrução Pública, admi­nistrador da Companhia das Docas e da Companhia dos Caminhos de Ferro Peninsulares e presidente da Comissão da Cultura do Tabaco do Douro, professor da Academia Politécnica (cadeira de Construções Civis - Vias de Comunicação), do Instituto Industrial e Comercial, e da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, vice-reitor e reitor da Universidade do Porto, general graduado, escritor e poeta humorístico;
-Ernesto Teixeira de Lencastre, coronel-médico, durante muitos anos director do Hospital Militar D. Pedro V, à Boavista;
José da Cunha Lima, Capitão de Mar e Guerra, falecido Almirante, impul­sionador da construção dos courts de ténis da Foz, ainda hoje existentes;
António Pinto de Queirós Montenegro (nascido no Marco de Canaveses, Casa do Casal, 28/11/1846), morador na Foz, empreiteiro do caminho de ferro;
-Alberto Pais, coronel, conspirador no 13 de Dezembro, adido militar em Madrid e irmão de Sidónio Pais, aluno de Manuel Granjo, que o chumbou em Alemão impedindo-o assim de in­gressar no curso de Estado-Maior (em pleno Clube Rigollot, Pais foi desagravar-se, mas, como Granjo lhe respondesse desabridamente, Pais desferiu-lhe uma chapada e envolveram-se em contenda, que os de­mais sócios, e em particular Montenegro, tudo fizeram para acalmar; Granjo quis intentar uma acção ju­dicial contra Pais, mas como não conseguisse alguém que tivesse visto algo, acabou por desistir e tudo foi esquecido mais tarde);
Cândido Augusto Correia de Pinho, médico, professor da Escola Médico-Cirúrgica do Porto (1890), durante algum tempo presidente da Câmara Municipal do Porto, 2.º reitor da Universidade do Porto (1918-1919); José Nunes da Ponte (Açores, Ribeira Grande, 20/5/1848 - Porto, 5/9/1924), poeta que publicou, ainda nos tempos de estudante em Coimbra, a obra Ondulações, que Camilo refere no Cancioneiro Alegre, amigo de António de Macedo Papança (conde de Monsaraz), médico pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra em 1879, segundo governador civil republicano do Porto (entre 31/5/1911 e 20/9/1911), vereador e presidente da Câmara Municipal do Porto; membro do Partido Republicano Portu­guês e depois do Partido Unionista, deputado e ministro do Fomento durante o governo de Pimenta de Castro (1915), da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, vice-provedor da Misericórdia, provedor da Ordem de S. Francisco;
-Francisco Eduardo Leite da Silva, médico conhecido como o Leite das Moças;
-Jorge Pinto da Silva (cônsul da Bélgica);
-Joaquim Ferreira da Silva, ferrenho anglófilo; Sousa Vieira (médico analista)”
 
 
Na revista “O Tripeiro”, nº 103, da 1ª Série, ano 3, de 1 de Fevereiro de 1913, alguém que assinava com o pseudónimo de “Fígaro”, em resposta a anterior artigo inserto no número antecedente, assinado por alguém que assinava como “Velho Tripeiro”, explicava que o farmacêutico Amorim não era bem de Braga, mas mais importante, explicava que o clube se chamava na realidade “Rigolo”, que reportava a divertimento.
Estávamos, assim, perante duas palavras homófonas.
A seguir se dá conta de um pequeno trecho do artigo de alguém que se identificava como “Fígaro”, e já atrás mencionado:




 
 

No mesmo número da revista “O Tripeiro”, alguém que assinava como “Um Tripeiro de Meia Edade” (sic), informava que o Club Rigollot tinha tido origem num chamado “Club Theológico”.

 
 

 
 
 
 
Aliás, no que à Foz do Douro diz respeito, nesses tempos, há conhecimento da existência de mais alguns clubes ou tertúlias, antes do final do século XIX, embora de naturezas muito diferentes.
O mais proeminente e, provavelmente, o mais lendário, chamava-se “Club Rigollot” e tinha nascido de uma tertúlia de intelectuais que se reuniam na “Farmácia Amorim”.
Teria sucedido, ao que alguns identificam, ao “Clube Theológico”.


 
A meio da foto, para a esquerda do Hotel da Boa Vista, ficava o Clube Rigollot
 
 
 
Um outro clube situava-se na Rua dos Banhos Quentes, actual Rua Coronel Raul Peres que, pelo local, é provavelmente o mesmo que Ramalho identifica como “Assembleia do Allen”, onde nasceu a primeira roleta da Foz, em 1870.
De cariz mais familiar, existiu o “Club de Cadouços”, a funcionar a partir da década de oitenta e onde se realizaram concertos famosos e, ainda, o “Club da Foz”, que apareceu na última década do Século XIX, instalado num prédio com frente para a Rua do Passeio Alegre, fazendo esquina com a Rua das Motas.
Artur Magalhães Basto, na sua obra "A Foz há 70 anos", publicada em 1939, faz também referência ao "Clube das Ondas", que reunia pela Foz.


Texto de Artur Magalhães Basto sobre o "Clube das Ondas"


Uma tertúlia que ficou célebre, local de reunião de muitos intelectuais daquele tempo, foi levada à cena no “Chalet do Carneiro”, inicialmente construído em madeira, em 1873, cujo primeiro proprietário foi António Carneiro dos Santos, daí a designação pela qual era identificado. Situava-se em pleno jardim do Passeio Alegre,
Camilo Castelo Branco, Arnaldo Gama, Ramalho Ortigão, Alberto Pimentel e outros, eram presenças assíduas no chalet. 
Quanto à importância e relevo social das personalidades que o demandavam, rivalizava com o “Club Rigollot”.
O “Chalet do Carneiro”, posteriormente rebocado, passou, já nos nossos dias, a ser conhecido por “Chalet Suisso” e ainda continua, no mesmo local, a ser fruído pelos portuenses.

 
 
Chalet Suisso, c. 1910



Clube dos Bisqueiros
 
 
Era, então, a Farmácia do Padrão um dos outros lugares também conhecidos da cidade como local de tertúlia, em cujas instalações, em 1899, foi fundado por “ferrenhos amadores de bisca lambida ou não”, o Clube dos Bisqueiros.
Tinha o seu regulamento, de que abaixo transcrevemos alguns artigos:
 
“1º. Dentro do Templo da Bisca é proibido a má-língua. Só se permite falar de vidas alheias, berrar contra o governo – seja ele qual for – e descompor os parceiros que jogarem mal. 
2º. Cada sócio é obrigado a contribuir com 200rs por mês para as despesas do expediente.
3º. Os mirones são considerados sócios honorários. Como só gozam metade, a sua entrada na sala de jogo,… obriga-os ao pagamento mensal de 100rs.
8º. Nenhum sócio é obrigado a jogar além das 10 horas da noite.
10º. Não é permitido molestar o físico das cartas. Quem o fizer dobrando-as, torcendo-as ou batendo-as violentamente na mesa pagará a multa de 20rs.
11º. Os sócios a quem for dado o gozo de desflorar um baralho de cartas, esportularão em homenagem à virgindade a quantia de 10rs por caveira. 
12º. Não são permitidas as escamações. Quem perturbar a paz e a santa harmonia do Clube, zangando-se por causa de assuntos bisqueiros, terá de beneficiar a caixa social com a quantia de 100rs, como sinal de profundo arrependimento por ter tido a ousadia de levar a desordem ao Sagrado Templo da Bisca.
13º. Como o Templo da Bisca é lugar de entretimento e não de batota, os jogos são a feijões ou Padre-Nossos.” 
 

 

Farmácia do Padrão, no Largo do Padrão

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