segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

(Conclusão)

A Casa do Gaiato


O conhecido e venerado Padre Américo (Américo Monteiro de Aguiar), fundador da “Casa do Gaiato” e da “Obra da Rua”, nasceu em 1887, em Galegos (Penafiel) e faleceu no Hospital de Santo António em 16/7/1956, em virtude de um acidente de viação, em S. Martinho de Campo (Valongo), ocorrido quatro dias antes, quando conduzia uma moto.
O Padre Américo ficaria com o seu nome ainda ligado a outras obras, que também lançou: “Património dos Pobres”, que se destinava a construir casas para famílias necessitadas; “O Calvário”, para acolher doentes irrecuperáveis e sem apoio e, ainda, o jornal “O Gaiato”, que as crianças acolhidas na “Casa do Gaiato” vendiam pelas ruas da cidade do Porto.



“O Padre Américo, para muitos Pai Américo, nasceu a 23 de Outubro de 1887 na freguesia de Galegos, Concelho de Penafiel, tendo sido baptizado em 4 de Novembro do mesmo ano. Terminado o liceu, em 1902, emprega-se, no Porto, numa loja de ferragens. Em 1906, parte para Moçambique, estabelecendo-se em Chinde, onde trabalha na companhia The British Central Africa e na African Lakes, como despachante. Por essa altura trava conhecimento com o padre Rafael Maria da Assunção, que mais tarde seria nomeado Bispo de Cabo Verde. Regressado a Penafiel, em 1923, contacta o pároco local de quem tinha sido companheiro de infância e comunica-lhe o desejo de entrar para um convento franciscano, dando como única explicação a frase "é uma martelada!". Dois meses depois entra no Convento de Santo António de Vilariño, em Tui (Espanha), onde permanece durante 9 meses como postulante, a estudar latim e ciências e mais um ano, depois da tomada do hábito. As dificuldades em se adaptar à vida monástica conduzem à sua saída em Julho de 1925, mas tenta ingressar no seminário diocesano do Porto, mas o Bispo, D. António Barbosa Leão, não dá seguimento ao seu requerimento. Contacta então o Bispo de Coimbra, D. Manuel Luís Ferreira da Silva, que o aceita. Depois de se formar em Teologia no Seminário de Coimbra, foi nomeado Perfeito do Seminário e professor de Português. É igualmente capelão em Casais do Campo, freguesia de São Martinho do Bispo e designado pároco de São Paulo de Frades, não chegando a tomar posse, incapacitado por um esgotamento. É quando D. Manuel Luís Coelho da Silva, Bispo de Coimbra, lhe entrega a Sopa dos Pobres, em 1932 que começa a revelar a sua verdadeira vocação. A partir daí não mais parou. Em Agosto de 1935 inicia as Colónias de Férias do Garoto da Baixa em Coimbra, estágio embrionário do que viria a ser posteriormente a Casa do Gaiato. Seguem-se Vila Nova do Ceira e Miranda do Corvo. A 7 de Janeiro de 1940, finalmente, o Padre da Rua funda a primeira Casa do Gaiato no lugar de Bujos, em Miranda do Corvo. A segunda Casa do Gaiato, no mosteiro beneditino de Paço de Sousa, seria o local escolhido, para o surgimento da Aldeia do Gaiato para acolhimento e alojamento de jovens a que se seguiria o Lar do Gaiato, no Porto.
(…) A Obra da Rua é consagrada ao Santíssimo Nome de Jesus, e o seu ex-líbris é o Quim Mau, o garoto de braços abertos que pede o amor do próximo. Em 1942, publica Obra da Rua. A 5 de Março de 1944, aparece o primeiro número do jornal O Gaiato, quinzenário da Obra da Rua, de que é fundador e director. Em 1950, sai a público o primeiro volume do livro Isto é a Casa do Gaiato.
Cortesia de Rui Cunha, administrador do blogue “portoarc.blogspot.com”




A “Obra da Rua” tinha a sua expressão prática na “Casa do Gaiato”, também chamada de “Aldeia do Gaiato”, que se destinava a fazer o acolhimento de crianças sem eira nem beira.
Em 25 de Maio de 1943, acontece o lançamento da primeira pedra da "Casa do Gaiato", em Paço de Sousa, aproveitando o Padre Américo, essa ocasião, para fazer a apresentação ao governador civil do distrito do Porto e ao presidente da Câmara do Porto das plantas das futuras instalações.  
Aqui, viriam a funcionar escolas e oficinas (carpintaria, serralharia e uma tipografia) e a acolher cerca de 200 rapazes (nos tempos mais recentes, esteve reduzida a pouco mais de duas dezenas), teve a sua génese numa primeira instituição fundada em Miranda do Corvo, Coimbra, em 1940.
A 4 de Janeiro de 1948, seria inaugurada a Casa do Gaiato de Lisboa, situada na quinta da Mitra, em Santo Antão do Tojal, em Loures.
A instituição arrancou sem ajudas do Estado e a ser assistida pelo apoio do povo anónimo.
Hoje, a protecção à infância e à juventude tem uma intervenção estatal que não existia há anos atrás e, por isso, a Casa do Gaiato e a obra a ela associada, perdeu o seu espaço inicial.



Entrada para a “Casa do Gaiato” em Paço de Sousa – Fonte: “portoarc.blogspot.com”



Casa do Gaiato em Paço de Sousa – Cortesia de Artur Machado



Capela da Casa do Gaiato em Paço de Sousa



“ (…) A cidade do Porto fornecia campo extenso de observações, sempre que por lá passava. Logo à saída da estação de S. Bento dava de cara com a chusma dos maltrapilhos, os cônsules da minha gente que, não sei porque bulas ou sinal, dirigiam-se a mim, confiados, a relatar as suas necessidades mais instantes - a grande, a única daquele momento comer! Eu conhecia mal a cidade; também não queria dar muito nas vistas. Trocava algumas palavras ligeiras o discretas com os farrapões e seguia-os a distância até à primeira tasca.
- Ali há iscas, senhor abade.
O pequenino da rua tem os sentidos apuradíssimos; eles são as suas armas de defesa. Com eles espreita, procura, foge. Vigia o tempo, as ocasiões, as pessoas. A rua é uma escola de acuidade, de precisão.
Daí a nada eu era conhecido da tropa e venerado. Já não é na estação é mais além, em sítio ermo, que o pequenino se aproxima e conta a sua tragédia. Sei aonde e como vive. «Eu fico nas retretes, senhor abade. » Sei da família. Sei dos costumes. É tal o desejo que eles experimentam de que alguém no mundo oiça a sua história, que as iscas e a tasca não têm lugar na conversa. É preciso lembrar-lhes:

- Queres comer? (…)
(…) Apareceu-nos a antiga cerca dos monges beneditinos de Paço de Sousa, a uns 30 quilómetros da cidade do Porto. Não a procurei. Estava ela de quedo à minha espera! Um incêndio havido, anos antes, levou os que ao tempo ali habitavam, a outras paragens. O musgo, as silvas, os morcegos, o abandono - estavam ali. Uma sentença do Supremo Tribunal de Justiça declarou que a propriedade não era património do Estado, tão pouco de quem a usufruía. Hoje, chama-se e é a Casa do Gaiato.
Em Abril do ano de 1943 tomei conta do espólio. Dias depois começava-se a demolir o antigo dormitório dos frades e, logo a seguir, na parte mais alta da cerca, dezenas de pedreiros cantavam às pedras das casas em construção.
Ardeu Tróia!: «O quê?! Demolir as sacrossantas pedras do convento e trazer a crápula para uma terra tão linda?! » Críticas, reparos, dúvidas, reticências, acusações lógica e natural reacção da mediocridade.
Em Maio chegam da Casa do Gaiato de Miranda do Corvo três pioneiras da Obra: o António, de Celorico; o Amadeu, de Elvas; e o Adolfo, de Coimbra. Instalamo-nos todos em uma dependência do antigo cenóbio que ficou de pé, para tradição. Compramos uma vaca, algumas aves domésticas e coisas de primeira necessidade. Cultiva-se um pequenino quintal, com sua horta e jardim. E vivíamos como Deus com os anjos.
Em Agosto chegam mais obreiros. Vêm da Casa-mãe. São os fundadores de Paço de Sousa. Por esse tempo, tomámos conta do amanho da quinta, foram-se embora os caseiros que a fabricavam. Compra-se mais gado, alfaias, sementes. Começamos a cultivar os campos na sua totalidade. Grandes jeiras de terra negra cobrem-se de tapetes de pão. (…)

(…) Entrementes, emergem da terra as primeiras moradias da nossa futura Aldeia. Aboliu-se o sistema de caserna por ser contra a natureza da criança. Constroem-se vivendas de ar e luz, para famílias de 9, de 14 e de 20 rapazes. Uma Casa que verdadeiramente interesse os seus simpáticos e irrequietos habitantes. Que lhes inspire amor ao asseio. (…)
(…) A ideia de um quinzenal que dissesse ao mundo quem somos e onde vivemos, depressa tomou forma; e O GAIATO espalhou-se num instante. É devorado: «Eu leio de ponta a ponta», eis a exclamação dos assinantes que se apresentam por carta ou de viva voz. Gaiatos dos nossos vão às cidades vender. O Povo fulmina-os com perguntas de toda a ordem. Trazem assinantes. Trazem donativos. Provocam o espanto:
- Mas como pode ser isto?!
- Olhe, vá a Paço de Sousa - respondem os mais finórios.
A cidade do Porto pára, escuta, medita, determina-se. É-nos oferecido o edifício da Capela. O senhor a quem o fui pedir só teve uma palavra: «Muito obrigado por se ter lembrado de mim». Da mesma sorte e pelo mesmo preço, veio um donativo de 40 contos para o edifício da nossa enfermaria. O das oficinas seguiu na mesma esteira.
Ai! Porto, Porto, quão tarde te conheci!
Padre Américo, In “Obra da Rua”


Em 13 de Dezembro de 1944, dá-se a inauguração do Lar do Gaiato do Porto, na Rua D. João IV, 682, que juntamente com os lares de Coimbra, Lisboa e Setúbal daria maior dimensão à “Obra da Rua”.



“Foi nos derradeiros tempos de 1944. A necessidade de uma residência no Porto fazia-se sentir. Tínhamos já examinado outras casas, noutras ruas, mas nenhuma como esta da Rua D. João IV oferecia vantagens e conveniências.
Num instante se deram as voltas do estilo e o Provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, a quem pertence a vivenda, disse sim. Comprou-se mobília adequada. Arranjou-se governante idónea. Regulou-se a questão dos abastecimentos com o Delegado da Intendência dos mesmos, que nestes tempos de fortuna de dinheiro chegou a fome de pão.
Uma vez colocadas as coisas no seu sítio, foram ocupar também o seu, na nossa residência, os pioneiros da Obra. Entrámos no dia 3 de Fevereiro de 1945”.

Fonte: “obradarua.pt”



“A Obra da Rua, fundada pelo saudoso Padre Américo, foi sempre muito querida e apoiada pelo nosso Bispo.
Costumava visitá-lo com assiduidade, pois era a ele, e só a ele, que entendia dever prestar contas.
Padre Américo sempre quis que a sua Obra estivesse ligada às dioceses onde tinha as suas casas, mas de um modo muito especial à Diocese do Porto, pois era aqui que tinha a sua sede e onde ele vivia.
Nas horas mais difíceis era a ele que recorria o “Pai dos Pobres” e trazia sempre o seu apoio, compreensão e orientação.
Na grave crise que antecedeu e se seguiu à morte do Padre Américo, D. António actuou de forma muito firme e decisiva para que a Obra da Rua não desaparecesse.
Foi ele que impôs o Padre Carlos Galamba como Superior da Obra da Rua, a pedido de Padre Américo num importante encontro com D. António, poucos dias antes da sua morte. (…)
Cortesia de Rui Cunha, administrador do blogue “portoarc.blogspot.com”




Cabeçalho do quinzenário “O Gaiato”surgido pela primeira vez, em 1944



Padre Américo entregando uma casa no âmbito do programa “Património dos Pobres”





A obra assistencial denominada “O Calvário” foi o resultado de uma doação, em 1954, da Quinta da Torre, em Beire, Paredes.
Aí, o Padre Américo instalou uma casa para doentes incuráveis, cuja finalidade era dar um fim de vida digno e feliz aos doentes pobres e abandonados, tendo dotado ainda o complexo, com mais uma “Casa do Gaiato”, a que se segue, uma outra em 1955, em Algeruz, Setúbal.



Entrada da “Obra do Calvário” em Beire, Paredes – Fonte: Google maps



Espigueiro da Casa da Quinta da Torre, em Beire, em 1955, que daria lugar, mais tarde, a um templo para culto – Fonte: “aoencontrodopassado.blogs.sapo.pt”



A Capela do Espigueiro na Quinta da Torre – Cortesia de “manueljosecunha.blogspot.com”



Funeral do Padre Américo - Fonte: “portoarc.blogspot.com”



Em 1969, após o seu regresso do exílio e alguns anos depois do falecimento do Padre Américo, D. António Ferreira Gomes (Bispo do Porto), visita a “Casa do Gaiato”, em Paço de Sousa, vendo-se à sua direita o Padre Carlos Galamba - Fonte: “portoarc.blogspot.com”



Dentro da Casa do Gaiato já houve escolas, mas, hoje, apenas restam as oficinas: uma carpintaria, uma serralharia e uma tipografia para formar os gaiatos num ofício e para criar hábitos de trabalho. É graças a elas que surge uma das fontes de receita, a outra, são as ajudas.
"Não temos nenhum acordo com o Estado, mas temos as pessoas. O povo conhece a obra, compreende-a, ama-a e ajuda-a."



Estátua do Padre Américo na Praça da República da autoria de Henrique Moreira – Ed. Graça Correia

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