segunda-feira, 2 de abril de 2018

(Continuação 10)


A estória que se segue representa uma faceta do portuense, ligada à superstição e própria de uma época em que as respectivas narrativas aconteciam, em grupo, normalmente, à noite.
 
 
De meter medo ao susto
 
 
“O campo de repouso eterno do Bonfim foi palco de um caso curioso que assisti e me juntei ao poviléu, em frente ao portão, no ano 1948, quando algo de bizarro e insólito se aventava ter acontecido na noite anterior por via de uma notícia publicado no Jornal de Notícias.
Para os lados de Miragaia havia a conhecida sala de baile de “Monchique” e, um moço tripeiro resolveu ir, ali, passar umas horas e dar uns passos de dança. Na sala encontrou uma moça, solitária e lindamente vestida de tecido de crepe.
 
 
 

À direta, a Calçada de Monchique – Fonte: Google maps

 
 
Estava só. Depois de alguma hesitação afoitou-se e convidou-a para dançar ao que a donzela aceitou.
Durante a dança o rapaz estranhava que as mãos da rapariga estivessem frias e, a qualquer palavrinha sedutora e delicada do moço, à bonita mocinha, ela não lhes respondia. Pensou, então, o amoroso: “mãos frias coração quente e mudinha, certamente, por causa da sua timidez...”
Alta madrugada o baile fechou as portas. Saiu o par para a rua. Condoído o rapaz, da menina, por não ter um casaco para lhe cobrir, os crepes leves e a abrigar do nevoeiro da manhã colocou-lhe, delicadamente, a sua gabardina por cima dos ombros.
Caminharam pela rua Nova da Alfandega, subiram as ruas Mouzinho da Silveira, a 31 de Janeiro (Stº António), entraram na Praça da Batalha e seguiram a Stº Ildefonso e estão na rua do Bonfim. O par, sempre, de mãos dadas (e as da rapariga, continuavam gélidas) e sem balbuciar palavra.
Ao chegarem ao largo da igreja do Bonfim a rapariga dirigiu-se para o portão do cemitério, largou a mão do acompanhante; retirou a gabardina dos ombros e pisgou-se a correr para dentro do campo, sagrado, de repouso.
O tripeiro, aterrorizado, deitou a correr, batendo com os calcanhares no traseiro, pela Bonfim abaixo com os bofes a saírem-lhe pela boca. Parou na Avenida dos Aliados e entrou na redacção do Jornal de Notícias para contar o infausto acontecimento que acabara de ter.


 

Sede do Jornal de Notícias (Entrada dupla, em arco, a meio da foto), na Avenida dos Aliados, em 1948
 
 
 
O Jornal de Notícias era o diário mais popular no Porto da minha infância, depois havia o Comércio do Porto, para os comerciantes e o Primeiro de Janeiro para as elites conservadoras e literárias.
O JN continuava a ser o diário do povo, da procura e oferta de emprego e muito desenvolvido nos casos do dia que quotidianamente se passavam. Inclusivamente o desenvolvimento dos julgamentos do Tribunal de Polícia pelo juiz, humanista, António Quintela que sentenciava os arguidos, caso por caso, conforme as condições de vida de cada um. Normalmente acusações que recaiam sobre um vendedor de rua ou uma varina que fez banca na via pública.
Pela manhã e dado à notícia do caso do rapaz e da morta viva inflamou de curiosidade os tripeiros e, em romaria encaminham-se para o cemitério do Bonfim. As opiniões, entre o povo, dividiam-se mas perfeitamente crédulo daquilo que tinha acontecido.
Uma velhota mexida e de pronúncia “esganiçada” caminhava entre a boa centena de pessoas em frente ao portão e ia dizendo: a campa da rapariga é pegada ao jazigo da Santinha Bernardina!
 
 
 

Entrada do cemitério da Igreja do Bonfim – Fonte: Google maps
 
 
O povo vai entrando e basculha sepultura por sepultura e nenhuma se encontrava violada. As vizinhas da Santa Bernardina estavam intactas. Nos meus verdes anos olhava toda aquela cena patética que de forma alguma a encaixava no meu cérebro. A gente dentro do cemitério aventava hipóteses de credibilidade que tomavam o caso como sendo real.
Mas entre todo aquele paganismo, caricato e profano levanta-se a voz de uma “tripeira” de pelos nas ventas e em termos de discurso político, em praça pública, em altos berros: “ vocês não veem? Vocês são, mas é uns “morcões” e umas “morconas” o que eles pretendem é acabar com o “Baile de Monchique”!
Anónimo


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