A estória que se segue representa uma faceta do portuense, ligada à superstição e própria de uma época em que as respectivas narrativas
aconteciam, em grupo, normalmente, à noite.
De meter medo ao
susto
“O campo de repouso
eterno do Bonfim foi palco de um caso curioso que assisti e me juntei ao
poviléu, em frente ao portão, no ano 1948, quando algo de bizarro e insólito se
aventava ter acontecido na noite anterior por via de uma notícia publicado no
Jornal de Notícias.
Para os lados de
Miragaia havia a conhecida sala de baile de “Monchique” e, um moço tripeiro
resolveu ir, ali, passar umas horas e dar uns passos de dança. Na sala
encontrou uma moça, solitária e lindamente vestida de tecido de crepe.
Estava só. Depois de
alguma hesitação afoitou-se e convidou-a para dançar ao que a donzela aceitou.
Durante a dança o
rapaz estranhava que as mãos da rapariga estivessem frias e, a qualquer palavrinha
sedutora e delicada do moço, à bonita mocinha, ela não lhes respondia. Pensou,
então, o amoroso: “mãos frias coração quente e mudinha, certamente, por causa
da sua timidez...”
Alta madrugada o baile
fechou as portas. Saiu o par para a rua. Condoído o rapaz, da menina, por não
ter um casaco para lhe cobrir, os crepes leves e a abrigar do nevoeiro da manhã
colocou-lhe, delicadamente, a sua gabardina por cima dos ombros.
Caminharam pela rua
Nova da Alfandega, subiram as ruas Mouzinho da Silveira, a 31 de Janeiro (Stº
António), entraram na Praça da Batalha e seguiram a Stº Ildefonso e estão na
rua do Bonfim. O par, sempre, de mãos dadas (e as da rapariga, continuavam
gélidas) e sem balbuciar palavra.
Ao chegarem ao largo
da igreja do Bonfim a rapariga dirigiu-se para o portão do cemitério, largou a
mão do acompanhante; retirou a gabardina dos ombros e pisgou-se a correr para
dentro do campo, sagrado, de repouso.
O tripeiro,
aterrorizado, deitou a correr, batendo com os calcanhares no traseiro, pela Bonfim
abaixo com os bofes a saírem-lhe pela boca. Parou na Avenida dos Aliados e
entrou na redacção do Jornal de Notícias para contar o infausto acontecimento
que acabara de ter.
Sede do Jornal de Notícias (Entrada dupla, em arco, a meio
da foto), na Avenida dos Aliados, em 1948
O Jornal de Notícias
era o diário mais popular no Porto da minha infância, depois havia o Comércio
do Porto, para os comerciantes e o Primeiro de Janeiro para as elites
conservadoras e literárias.
O JN continuava a ser
o diário do povo, da procura e oferta de emprego e muito desenvolvido nos casos
do dia que quotidianamente se passavam. Inclusivamente o desenvolvimento dos
julgamentos do Tribunal de Polícia pelo juiz, humanista, António Quintela que
sentenciava os arguidos, caso por caso, conforme as condições de vida de cada
um. Normalmente acusações que recaiam sobre um vendedor de rua ou uma varina
que fez banca na via pública.
Pela manhã e dado à
notícia do caso do rapaz e da morta viva inflamou de curiosidade os tripeiros
e, em romaria encaminham-se para o cemitério do Bonfim. As opiniões, entre o
povo, dividiam-se mas perfeitamente crédulo daquilo que tinha acontecido.
Uma velhota mexida e
de pronúncia “esganiçada” caminhava entre a boa centena de pessoas em frente ao
portão e ia dizendo: a campa da rapariga é pegada ao jazigo da Santinha
Bernardina!
O povo vai entrando e
basculha sepultura por sepultura e nenhuma se encontrava violada. As vizinhas
da Santa Bernardina estavam intactas. Nos meus verdes anos olhava toda aquela
cena patética que de forma alguma a encaixava no meu cérebro. A gente dentro do
cemitério aventava hipóteses de credibilidade que tomavam o caso como sendo
real.
Mas entre todo aquele
paganismo, caricato e profano levanta-se a voz de uma “tripeira” de pelos nas
ventas e em termos de discurso político, em praça pública, em altos berros: “
vocês não veem? Vocês são, mas é uns “morcões” e umas “morconas” o que eles
pretendem é acabar com o “Baile de Monchique”!
Anónimo
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