“Em baixo,
perpendicularmente ao litoral, tal como hoje, dispunham-se em fileiras as
barracas. Nos topos desses arruamentos os banheiros hasteavam bandeiras, em que
estavam escritos os seus nomes: Maria da Luz; Paulino; Leão; etc.
O movimento dos
banhos começava mal as estrelas se apagavam no céu. Quem aparecia primeiro na
praia, ainda imersa na penumbra da manhã e coberta de neblina, eram os aldeões
de Cima do Douro.
Estes banhistas
iam para a água com indumentária bastante reduzida; por isso se escondiam eles,
o mais possível, entre os penedos. As mulheres vestiam uma simples camisa; os
homens nada mais que as famosos ceroulas de atilhos! No fim do banho
agasalhavam-se muito; embrulhavam-se o mais que podiam em grossos xailes. Os
homens atavam lenços de mulher em volta do pescoço; e só os tiravam passadas
muitas horas. Às sete da manhã estavam banhados e almoçados. Entretinham-se
conversando uns com os outros, ou ouvindo tocar os cegos que costumavam
estacionar junto à Fonte de Cadouços.
A maior parte das
famílias que vinham passar o Verão à Foz, começava a preparar-se para sair para
o banho às 5 ou 6 da manhã. Pouco depois começavam a chegar os carroções, os
jericos, as sege, as caleches, os barcos com os banhistas do Porto. Enchia-se a
praia de animação e de gente… Quem arranjava barraca tratava-se de se despir;
os outros, enquanto esperavam, passeavam pela beira do mar, saltavam pelos
rochedos, conversavam, etc.
Ainda se não
tinham inventado os maillots. Se uma senhora daqueles tempos pudesse ver a
praia do Molhe à hora do banho, desmaiava horrorizada… se não morresse outra
vez. A moral e a polícia de então mandavam que se fosse para a água ainda mais
vestido do que se andava em terra.
Em regra os fatos
eram feitos de baeta grossa, azul ou preta: os dos homens constavam de camisola
de mangas e calças compridas; os das senhoras eram vestidas de cauda… tanto as
senhoras como os homens levam calçados sapatos de ourelo".
Artur de Magalhães
Basto – A Foz há 70 anos – Conferência pronunciada no Colégio Brotero na noite
de 26/6/1936; Fonte: blogue “portoarc.blogspot.com”
Praias do Ourigo e
Caneiro, em 1910, com as barracas em filas dispostas perpendicularmente ao
litoral
Praia dos Ingleses –
Ed. JPedroso, In “As Praias de Portugal (Ramalho Ortigão)”
Na gravura acima observa-se
a denominada Praia dos Ingleses que, é, afinal, a Praia do Ourigo. Aquela obra
de Ramalho Ortigão foi escrita em 1876.
Para estas praias da
Foz vinha o portuense fazendo-se conduzir em carroção, em jumentos ou nos
char-à-bancs da carreira, que partiam do Largo do Carmo, a seis vinténs por
pessoa ou da Porta Nova, a quatro vinténs.
O carroção era
ronceiro demais para fazer-se uma viagem de ida e volta, na mesma manhã. As
famílias preferiam para esses casos a “burricada”.
Pessoas conhecidas
organizavam burricadas em que, por vezes, se assistiam a quedas das senhoras,
abaixo dos burros, o que significava uma paragem da caravana para remediar a
situação.
Os burros acabaram
também por ganhar em compita com uns vaporzinhos que, a partir de determinada
altura, demandaram a Foz vindos da Ribeira, pois, o medo da ultrapassagem do
rio Douro, no sítio das “Dezoito Braças”, vinha de há muitos anos.
Para as praias da Foz, nos meses de Verão, uma pequeníssima
parte da burguesia portuense alojava-se em casas próprias, que apenas serviam
nos meses de veraneio e, a outra grande maioria, ocupava casas que lhes eram
arrendadas.
Só nas últimas décadas do século XIX, é que algumas famílias
portuenses se começariam a fixar, todo o ano, na Foz.
Para as praias da Foz, nos meses de Verão, a burguesia da
província também chegava à Foz para passar a época balnear, com bagagens
imensas, ocupando, sobretudo, casas arrendadas.
Camilo Castelo
Branco, com a sua perspicácia habitual, tratou de comparar as damas, a banhos,
segundo a sua origem geográfica.
“A menina portuense, ao entrar no banho, tirita e se contorce entre os braços da
banheira, que a incita à intrepidez de mergulhar. Ali vai ao lado dela a senhora provinciana, arrastando
airosa a túnica de baeta, gesticulando com arrogante denôdo, e encarando na
onda com a soberba de quem demarca ao Oceano os seus limites com a ponta do pé.
(…) Elas aí veem, as frescas virgens da
serra, escarlates como as mulheres bíblicas, de pulso varonil e peito de
amazonas. Elas aí estão afrontando-se com a vaga bramidora, e entrando na água
com o rosto alto e o passo firme dos fortes de Israel, fugindo os Faraós. Isto
sim que são mulheres de carne e alma”.
Na obra “A Foz há 70
anos”, Artur Magalhães Basto fazendo referência a um trecho de Ramalho Ortigão, inserido em “As Farpas”, alude ao modo como eram passados os dias das famílias
a banhos na Foz:
E continuava
mencionando as jericadas até
Matosinhos e Leça:
As primeiras praias
após a foz do rio Douro
Praia das Pastoras
na primeira metade do século XX e o farol de Felgueiras à entrada da barra do
rio Douro
“Na Foz, foi a reunião que marcou o começo de
melhoramentos nas praias da Foz.
Entre os banheiros da Foz organizou-se uma
sociedade que tem por fim melhorar a praia chamada do Ourigo, que vem a ser o
Caneiro e as vizinhanças, péssimo local para uso dos banhistas.
Ontem, pelas 6 horas da tarde, verificou-se,
com efeito, a inauguração dos seus trabalhos.
A praia estava vistosamente adornada com
muitas bandeiras e mastros cobertos de flores.
Havia um pavilhão adornado a damasco.
A banda da guarda municipal tocou algumas
peças de bom gosto; numerosas senhoras presenciaram a solenidade e mesmo
tomaram parte nele e no ar restrugiram muitos foguetes.
Hoje começam os trabalhos.”
In “Jornal das
Senhoras”, de 16 de Julho de 1877 – 2ª Feira
Na época balnear, a gente a banhos na Foz tinha a
possibilidade de participar na festa do S. Bartolomeu.
Praia do Caneiro em
dia de S. Bartolomeu
Praia do Ourigo e Rua da Praia
Na foto acima, ao
longe, pode ver-se o Molhe de Carreiros e, em primeiro plano, uns jovens de uma
colónia balnear.
A decoração festiva só
pode ser pelo S. Bartolomeu, em meados do século XX.
A festa de S.
Bartolomeu realiza-se em 24 de Agosto, na Foz do Douro, centrada,
principalmente, nas praias do Caneiro e do Ourigo.
Pelo S. Bartolomeu,
o povo tem o antigo costume de ir à praia tomar o miraculoso banho santo ou dos
sete mergulhos.
“Bons, saudosos e
primitivos eram esses tempos em que a romaria de S. Bartolomeu, na Foz, era,
como então se dizia, de “arromba”. De alto lá com ela, diríamos nós agora.
Os carroções do
Manuel José d’Oliveira, puxados por bois transparentes como rebuçados, os
barcos da Porta Nobre e o «ómnibus» do Cadete começavam logo de madrugada a
árdua tarefa, golfando na Foz o seu conteúdo – o Porto em peso, clero, nobreza
e povo.
Uma enorme
multidão de aldeões e de gentis camponesas assaltava a praia tomando banho. E
não menos numerosos eram os espectadores, atraídos pela curiosa cena e pela
simplicidade e transparência das «toilettes» de banho, quase paradisíacas.
Em todo o dia, a
animação era extraordinária naquela praia. A festa durava até o anoitecer, hora
em que principiava a debandada.
O rio tornava a
coalhar-se de barcos empavesados e da Foz ao Porto a multidão de romeiros,
descantando alegremente, pejava a estrada, dificultando a passagem dos pesados
veículos.
Hoje tudo está
mudado.
Meia dúzia de
desgraciosos aldeões de ambos os sexos, tomando banho na praia solitária; mais
tarde, a festa da igreja, simples, modesta. Junto ao Castelo, algumas tendas de
doce e tascas ambulantes.
E, finalmente, a
concorrência de banhistas e de famílias da cidade no Passeio Alegre, como em
todos os dias santificados, durante o estio.
Os «americanos» e
as «tipoias de praça» mataram os barcos, os carroções e o óminbus. E a lindíssima
e pitortesca estrada do Porto à Foz já não regurgita de bandos festivos de
irrequietos e alegres camponeses.”
In jornal “Gazeta de Notícias” de 25 de Agosto de 1890 – 2ª Feira
Praia do Ourigo e a
roupa a corar no areal
Praia do Ourigo em 1964
Praia dos Ingleses
no começo do século XX
Farol de Felgueiras
observado desde a Praia dos Ingleses
Finda a época balnear os banhistas, que a tinham vivido em
permanência, abandonavam a Foz durante o mês de Novembro, em debandada.
A Foz passava, assim, à sua condicção de terra de lavradores
e pescadores.
No Jornal “O PORTUGAL”, mais um dos muitos periódicos
publicados no Porto, um autor desconhecido, em 11 de Novembro de 1851, escrevia
sobre o abandono da Foz pelos banhistas:
Tudo deserta da Foz
“Tantos carros a chiar
Carregados de colchões!
Cadeiras aos trambolhões
Esteiras a escorregar
Gotejando água do mar,
Correndo o ‘churrião veloz’
Os burros de catrapoz! …
Porquê é esse desatino?
Diz-me chorando o Paulino
Tudo deserta da Foz.”
Entretanto, sobre o mesmo assunto, Dorothy Wordsworth, uns
anos antes, no verão/outono de 1845, se referia ao fim da época balnear na Foz,
na sua obra “Viagem a Portugal e ao Sul de Espanha”:
“(...) Entre 30 e 40
raparigas, alegres risonhas e brincalhonas, juntaram-se em volta da porta da
rua de manhã bem cedo e aí esperaram até serem autorizadas a entrar, cerca de
uma dezena de cada vez, para a sala onde as várias embalagens estavam dispostas
e foi divertido observar a pressa com que se afizeram às cargas que pareciam mais
leves ou mais convenientes para transportar, e com que rapidez as deixavam para
outras levarem, quando a mão revelava terem sido os olhos um guia traiçoeiro.
Depois de muitas quezílias amigáveis entre elas e após muitos protestos
igualmente bem-humorados do seu patrão por causa do atraso ocasionado por todo
esse tagarelar sem sentido, cada uma delas ajudou outra a levantar a carga para
a colocar na cabeça, um talão foi dado a cada uma para ser mostrado ao oficial
nas portas da cidade, e lá se foi o grupo para deixar entrar o seguinte; e a
mesma cena foi repetida uma vez e outra vez a casa estar limpa de todos os
vestígios de mobília. Nós deixámo-nos ficar para assistir à divertida cena e
depois montámos nos cavalos e partimos para a cidade, tendo a sorte de escapar
a uma molhadela – pois uma molhadela em Portugal não molha somente a pele,
parece passar ‘através’ dela, como me pareceu uma vez ou duas em que fui
apanhada por um aguaceiro – literalmente em menos de três minutos fiquei tão
molhada como se tivesse mergulhado no Douro. “
(Continua)
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