Nona Carta do
Barão de Forrester
As minhas vindimas
não permitem que eu trate somente do que está no fundo do rio; por isso eis-me
nas vizinhanças da quinta do Enxodreiro e Régua, escolhendo alguns cachos de
uvas sem defeito - obra bastante dificultosa em razão do oidium que nestes sítios tantos
estragos tem feito.
Cheguei aqui
justamente numa ocasião importante - que vem a ser uma festa musical sobre o
rio. Todos os habitantes da Régua - em peso ou estavam no cais ou em barcos toldados e
elegantemente armados. Os artistas eram de Jugueiros e da Régua, tocaram muito
bem e todo o mundo parecia satisfeito - quando se ouviram gritos por todas as
bandas, sensação geral pela aparição de um barco toldado, cortinado, emplumado
de preto e cheio de homens vestidos de rigoroso luto!
Esta peça flutuante
tinha estado amarrada mais para cima do rio, de sorte que os da festividade não
a tinham visto. O barco fúnebre veio vindo vagarosamente para baixo -
a música parou, e por alguns minutos todos mostraram certos receios.
Ao pé de mim, um
sujeito assegurou-me que havia de haver pancada, que as figuras sinistras eram
membros do clube musical da Régua, que vinham desafiar os seus irmãos de Jugueiros!
Outro, com aparente
seriedade, deu-me a entender que talvez fossem alguns conspiradores do reino
vizinho, que vinham raptar El-Rei
D. Pedro V.
Um terceiro (e já
se sabe o que diz o adágio acerca de negócio de três) logo que ouviu soar o
verbo raptar lembrou-se
do substantivo rapto, e
possuído desta ideia e evocando os espíritos de seiscentos mil habitantes das
regiões inferiores, exclamou com frenezim: "Será o Conde de Saldanha
raptando a filha do Ferreirinha".
Nisto o barco
chegou ao pé de nós - entrou pelo meio de toda a súcia e parando entre as duas
bandas de música abriram-se as cortinas e os empregados da Câmara do Peso da
Régua, vestidos não de grande gala, mas de luto pesado pela morte de S.
Magestade a Rainha [provavelmente D. Maria II], mostraram-se e fizeram as suas
cortesias aos amigos e conhecidos.
Ora, Srs.
redactores, durante o cerco do Porto e mesmo depois o general Conde de Saldanha
sempre me fez a honra de me tratar com amizade; e quando escrevi o meu Ensaio sobre Portugal, ainda estava
persuadido que sua Exa., já marechal e duque, era meu amigo e desejava promover
o bem da sua pátria - porém, em primeiro lugar, se sua Exa. me não enganou,
deixou de cumprir a sua palavra, prometendo dar-me todos os orçamentos e
estatísticas sobre o país, que havia na secretária, - e não mos deu - e
segundo, tanto ele como os Srs. Rodrigo e Fontes de Melo, me asseguraram que
estavam resolvidos a fazer o bem destas províncias do norte, ao mesmo tempo que
me fizeram a honra de pedir a minha humilde cooperação. Ofereci-me para servir
gratuitamente na direcção da empresa - não fui aceite; ofereci o meu dinheiro
há perto de um ano - não tem sido preciso.
Fiz o que pude, ao
menos mostrei a melhor vontade - mas o bem para estas províncias ainda não veio
e ainda se não principiaram as estradas!
Por estes motivos
digo que hei-de pôr de quarentena todos estes bons desejos e profissões,
portarias e decretos e discussões de partidos promovidos pelo governo ou seus
agentes; e hei-de guardar o meu dinheiro na algibeira até que possa ter alguma
garantia não simplesmente de boas palavras mas de boas obras; preferindo, em
lugar de dedicar a minha atenção aos projectos de estradas do Minho, ver se posso estabalecer
uma academia para a instrução de jovens arrais, na navegação deste rio, cujos
obstáculos parecem que, por fatalidade, ainda tem de existir por muitos
séculos.
Falo neste estilo
de homens públicos, por
serem eles como a caça do monte, que esta exposta, com licença ou sem ela, ao
tiro de qualquer caçador, porém ainda que não esteja satisfeito com o proceder
do Exmo. presidente do governo e seus colegas, muito senti ouvir
semelhantes reflexões sobre o carácter particular do nobre marechal e seu
filho, muito especialmente tendo eu há tempos encontrado o próprio conde que
vinha de Travassos de visitar a Exma. Srª Dª Margarida Rosa Ferreira, o qual me
assegurou que logo que soubera dos acontecimentos que tanto têm dado que falar,
se tinha apressado a ir oferecer todas as satisfações à Exma. Srª Dª Antónia
Ferreira, e não achando sua Exa. fora muitíssimo bem acolhido por sua Exma. mãe
e vinha-se embora muito penhorado da visita.
Deixarei tocar os
músicos e grazinar os
murmuradores, que nestas alturas são ainda mais numerosos do que uma grande
parte dos frequentadores da praça do Porto - lastimando em que eles não tenham
outra cousa em que se ocupem, e voltarei ao exame das pedras do rio - mas por
hoje não serei mais extenso.
Sou de VV
J.J. Forrester
Vindimas no Douro em
1911
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