Quarta Carta do
Barão de Forrester
O Convento de
Ancede situado num belo vale, ainda que em posição elevada, a um quarto de
légua de Porto Manso, é digno de atenção: mas o seu estado actual de abandono e
a ausência dos frades, contrastam de uma maneira singular com o seu aspecto
ordinário em outros tempos. O lugar de Porto Manso muito sente a extinção
destas corporações religiosas, pelas esmolas que os frades distribuíam
diariamente aos pobres – e quanto ao terem acabado os dízimos, dizem os povos
que este benefício resultou só a favor dos proprietários. Conheço um indivíduo
que ganhou com a mudança e é o meu compadra e arrais, António de Oliveira Dias
(mestre o mais hábil no Douro) que tem aqui seu casal, e que costuma nas
ocasiões da minha chegada empregar os serviços do ex-cozinheiro do dito extinto
convento de Ancede. Em mui poucos países tenho assistido a jantares mais bem
servidos e abundantes do que o foi um, que o meu compadre aqui me deu. Todas as
cobertas foram servidas com delicadeza e asseio. Tivemos excelente caldo, vaca
cozida e arroz – galinhas cozidas com presunto e salsichões – enorme peru
assado com o seu picado à Ancede – dois gansos formidáveis – alguns frangos –
uma perna de vitela – presunto de Melgaço feito em fiambre – boa cernelha de
vaca assada – três coelhos bravos ensopados – dois excelentes guisados – um
leitão muito tostadinho – e meia dúzia de perdizes mortas com toda a cerimónia
da antiga lei, em 1 de Setembro. Depois seguiram pudins, pão-de-ló (ou cavaca
fina), biscoutos, morcelas, melancia, melão, laranjas, limas, maças, pêras,
pêssegos e doce de calda; - porém nem um só cacho de uvas, nem tão pouco uma
garrafa de vinho!
As uvas pela maior
parte se perderam e tal será a escassez de vinho nestes sítios, que o velho que
em outros anos se comprava a seis mil reis e moeda de ouro, já se está vendendo
a 30$ooo réis.
Fiz os meus
cumprimentos ao meu compadre pela sua prodiga hospitalidade e ele respondeu-me
que muito estimava poder mostrar-me que nos vinte anos que me tinha servido,
não somente tinha ganho para o sustento e educação da sua família mas também
poupado bastante dos dinheiros que eu lhe tinha dado a ganhar, não somente para
me fazer este pequeno oferecimento mas também para que tivéssemos um petisco
para comermos na viagem que íamos seguindo.
De Porto Manso fiz
uma digressão até à antiquíssima vila de Canaveses, onde no Marco achei as
videiras com a mais bela aparência e cheias de magnificas uvas – facto este o
mais notável, quando nos arredores todas as uvas estão perdidas pela moléstia.
O Tâmega em
Canaveses, ainda trás bastante água e tem uns 400 a 500 palmos de largo. O
sítio é tão belo, que apesar da falta de comodidades, achei bastante em que me
entreter durante dois dias inteiros.
Em todo o concelho
de Baião, o pão está muito caro em razão do calor que tem perdido a maior parte
do que estava na terra e que não servirá senão para o gado.
A ribeira de Porto
Manso, outrora mui produtiva e abundante em água, este ano produz menos que
metade do usual e se as chuvas continuarem a faltar, as consequências poderão
ser mui fatais.
O estado do rio
Douro entre o ribeiro de Pala e o rio Bestança é digno de particular
observação. O leito está todo descoberto e o rio é um mero canal que apenas tem
60 palmos de largura e cujo curso é entre enormes rochedos de granito de 25 a
35 palmos de altura. Estes rochedos estendem-se sobre um espaço de 800 palmos
de largura em cada uma das margens, até á casa do açougue em Porto Manso e a
casa do Souto no cais do rio Bestança – e ambos estes pontos estão na altura de
60 a 70 palmos da borda do rio. Mesmo quando estes rochedos se acham cobertos,
é uma temeridade navegar no rio com barcos carregados – porém no Inverno
acontece muitas vezes que as enchentes do rio trazem dentro do curto espaço de
três dias tal quantidade de água, que o rio sobe até às duas casas indicadas,
tendo pois 1600 palmos em lugar de 60 de largura, e 90 de altura.
O motivo do rio
levantar tanto neste sítio é bem óbvio: - nos pontos de Escarnidas e Fiéis de
Deus, o aperto das margens e a altura dos rochedos impede que as águas
desemboquem, e por isso espalham-se pelo cais de Porto Manso, da mesma maneira
que em 1780 antes de se demolir o cachão de S. João da Baleira, as águas não
achando expediente cobriram toda a Ribeira da Vilariça.
Logo acima das
pedras da Morteira, que são os mais altos rochedos no cais de S. Paio, defronte
do Porto Antigo, existia no meio do rio a pedra nativa chamada da Seixeira, que
tinha 20 palmos de altura sobre a actual margem do rio – mas não era
prejudicial à navegação – antes era uma rica propriedade de um particular, que
dela tirava bom rendimento pela pescaria que até 1828 rendeu seiscentos e
tantos sáveis num dia. Apesar do dispêndio, inutilmente feito a meu ver, com a
demolição deste rochedo – ele ainda tem seis palmos de altura fora de água.
Se antes de
empreender estas obras, se tivessem aconselhado com os homens práticos, haviam
de ter-se informado que o princípio da resistência da água da Seixeira, nascia
da Fisga para baixo – águas que não levam os barcos para a Seixeira, mas sim
sobre o rochedo Gonçalo Velho, no cais do Souto do Rio, onde iam e ainda vão
bater: e em prova desta nossa asserção a corrente que principia na Fisga ainda
continua com a mesma força na marca do rio em que sempre é prejudicial.
A pólvora não está
muito cara – o ferro não falta – a gente da terra tem sempre vontade de
trabalhar, venha a ordem para a demolição somente de metade do assustador
Gonçalo Velho, e em poucos dias e sem que se faça grande despesa, ele deixará
de existir.
Sou, de VV.
&c.
J.J. Forrester
Convento de Ancede –
Ed. Pedro A. Leitão
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