quinta-feira, 8 de março de 2018

(Continuação 1)


Vinte horas de Liteira
 
 
Este título, publicado em 1864, identifica um dos muitos romances de Camilo Castelo Branco, no qual o escritor faz a narrativa de uma viagem entre Ovelhinha, “uma póvoa escondida nos fraguedos do Marão” (uma aldeia situada junto a Amarante) e a Rua da Boavista, no Porto, como pretexto para o diálogo com um amigo.
O escritor começa por encontrar, numa estalagem, no Marão, o amigo António Joaquim que lhe oferece boleia para o Porto na sua liteira.
Entre eles, e dada a duração da viagem, vão contando histórias até chegarem ao Porto, passadas vinte horas!
A obra será publicada em fascículos, como novela, no jornal “O Commercio do Porto”.
 
 
“- Para a vida e para a morte ! Antonio Joaquim, salvaste -me! Esta liteira, e as campainhas, e os machos hão-de pesar na balança das tuas acções misericordiosas!
Disse, e desci pendurado nos galhos da cepa.
-Essa apostrophe - disse elle - extenuou-te ! .. Vem tomar caldo de galinha.
Antonio Joaquim é uma pessoa de quarenta annos, proprietario, casado, e residente n'uma de suas quintas do Minho, nas cercanias de Braga”.
Camilo Castelo Branco, “Vinte Horas de Liteira”
 
 
 

Mapa (1864) com a identificação (pontos amarelos) do percurso do escritor: Ovelhinha, Amarante, Penafiel, Baltar, S. Roque da Lameira e Rua da Boavista
 
 
 
A norte, em finais do século XVIII, as viagens entre localidades eram feitas através de carreiros, já que não existiam estradas.
Quando D. Maria I (1734-1816) subiu ao trono (em 1777), o país ainda não estava dotado com as vias de comunicação há muito tempo exigidas.
O Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Mello 1699-1782) apenas mandara fazer uma estrada até à sua propriedade em Oeiras, e a Companhia dos Vinhos do Alto Douro mandou abrir algumas estradas, no Douro.
Em 1788, D. Maria l manda construir, uma estrada de Lisboa ao Porto, mas ela iria ficar por Coimbra.
No entanto, esse troço vai permitir o transporte de passageiros, utilizando os carros de transporte do correio, a mala-posta, a exemplo do que acontecia noutros países europeus.
A mala-posta partia da porta do Correio Geral, na Calçada do Combro, em Lisboa, ao mesmo tempo que partia de Coimbra uma outra no sentido inverso.
As viagens realizavam-se às segundas, quartas e sextas e as malas-postas encontravam-se e estacionavam na estalagem de Porto de Mós.
Como os poucos passageiros que nela viajavam, tinham como destino a Universidade de Coimbra, a carreira terminou, em 1804, por escassez de passageiros.
Aguardava-se, à época, a abertura da estrada até ao Porto, mas as Invasões Francesas vieram adiar tal desígnio.
As principais vias de comunicação no interior do país eram então os rios.
William Morgan Kinsey (1788-1851) na sua obra Portugal Illustrated Letters publicada, em 1828, resume numa frase o estado das estradas em Portugal:
 
“Como alguém já disse é mais fácil conduzir um navio até ao Brasil do que conduzir uma mula de Lisboa ao Porto.”
 
Assim, os carreiros por onde se movimentavam as pessoas nem sequer admitiam, geralmente, com o mínimo de condições, a deslocação em carruagens, coches e seges.
Restava, nesses casos, o uso do cavalo, da mula ou do burro, de liteira urbana (transportada por homens), da liteira de duas mulas ou do carro de bois.
 
 
O Cavalo
 
Na utilização do cavalo, uma melhoria acontece com a reformulação da sela, mantendo, no entanto, os estribos de madeira e permitindo, assim, que, em caso de queda, os pés fiquem livres e protegem da humidade.





 
 
 
O Burro e a Mula
 
Praticamente, em todas as vilas e aldeias existiam para alugar estes animais de carga. Eram, então, o transporte mais utilizado pelos viajantes.

 
 

Burro mirandês (em vias de extinção)

 
 
 
A Liteira
 
 
Sobre este meio de transporte escreveu Henry L'Êveque:
 
Nas províncias de Portugal, que ficam para além de Coimbra, a norte do Mondego, o terreno é geralmente tão áspero e tão acidentado, os caminhos são tão íngremes e tão estreitos, e as curvas tão abruptas, que é muitas vezes muito difícil aí passar um carro. (…)
Viaja-se, por isso, a cavalo, ou melhor, sobre mulas, que têm patas muito mais seguras.
Mas as senhoras, os enfermos e os idosos, que não suportam o movimento das montadas, são obrigados a recorrer à Liteira, cujo uso, tão comum em tempos na Europa, ainda se preserva nesta parte de Portugal.”
 
 
 
Outras características das liteiras é que estavam carregados com um grande número de sinos e guizos, que o animal sacudia e fazia soar enquanto caminhava, funcionando como aviso a quem se aproximava, nos estreitos caminhos.
A distância vencida por dia não ultrapassava os 40 km e a liteira era conduzida por homem ou homens a pé ou a cavalo.
 
 
 

Liteira – Ed. Henry L'Êveque, In “Costume of Portugal”, 1814

 
 
 

Liteira - Ed. William Morgan Kinsey (1788-1851), In Portugal Illustrated Letters London, 1829
 
 
 
 
Numa outra forma de utilização da liteira, o condutor deslocava-se em montada própria, como mostra a gravura abaixo.




Liteira – Fonte: Museu Nacional dos Coches


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