O Jornal “O Comércio do Porto” noticiava no dia 6 de Março de
1879, que tinha sido presa no dia anterior a cidadã Antónia Custódio das Neves,
que até àquele momento se tinha apresentado sempre como António e sempre tinha
sido conhecida como tal, pois vestiu-se sempre como homem e assim era
conhecida. Essa personagem haveria de ter um fim trágico ao morrer durante o
incêndio do Teatro Baquet, que se situava então, na Rua de Santo António.
«Chamou-se, no
baptismo, Maria da Trindade e era filha de Maria das Neves ou Maria Coroada.
Nascida em Quintela (Sernancelhe), foi, ainda criança, para Granja do Tedo
(1851). Vestiu-se como rapaz e adoptou o nome de António das Neves, estatuto
que manteve pela vida fora, na escola, no trabalho à jorna pelo Douro e como
empregado de comércio, no Porto, mais tarde. Cultivou a amizade de uma rapariga
da Granja do Tedo, mas adiou sempre o casamento. Correndo o ano de 1879, certo
dia, no Porto, a polícia suspeitou da estranha situação de António das Neves,
que não trazia consigo documentos militares. Foi levado a Tribunal mas logo
libertado devido às boas referências de toda a gente. Readquirindo um estatuto
de mulher casou nesse mesmo ano com o filho de um antigo patrão.
Morreu
tragicamente no incêndio que, em 20 de Março de 1888, deflagrou no Teatro
Baquet.»
Fonte: Site da Câmara Municipal de Tabuaço
Teatro Baquet na Rua de Santo António
Maria Coroada e
o Cisma da Granja do Tedo
«Entre os anos de 1840
e 1847, não se sabe bem por que caminhos, a família dos Custódios (José
Custódio, mestre escola, e Cristina Gaspar), pais de doze filhos, entregaram-se
a um estranho culto para o qual arregimentaram numerosos adeptos. Presidia uma das
filhas, Maria das Neves, que se intitulou Maria Coroada, espécie de sacerdotisa
herética e devassa que reinventou uma torpe liturgia a partir de uma catequese
antiga e cristã. Diz-se, para mais, que era mãe da Mulher-Homem de Granja do
Tedo.
Finalmente o
administrador do antigo concelho de S. Cosmado pôs fim, através de ameaças,
àquelas práticas. Uma velha casa, no Povo de Baixo, voltada para o rio Tedo, é
lembrada ainda como a Casa das Coroadas.»
Fonte: Site da Câmara
Municipal de Tabuaço
«Sendo este um culto
popular, liderado por uma mística popular, em pleno século XIX, desde logo
reflecte valores e opiniões, visões e expectativas, próprias do seu tempo e
respectivo espaço sócio-cultural. E uma das mais marcantes é a sua concepção
entrópica do mundo».
A Nova Eva era o
catalisador de um Novo Mundo porque o velho estava esgotado, eivado de
injustiça e corrupção. Maria das Neves representa a expressão de «uma
ruralidade novecentista» além de «uma natureza prosaica e simplória embora
expedita e confiante». Daí a sua ideia de que «os padres pouco fazem e muito
comem», daí a «desconfiança face à Justiça» e a constatação do «poder
discricionário e autoritário de reis e nobres». Este culto foi selvaticamente
destruído em 1847 por ordem do administrador do concelho de São Cosmado tendo a
sua «guerrinha» confiscado todos os livros, estandartes e alfaias cerimoniais.
Trinta anos depois houve foguetes e vivas quando António das Neves, filha de
Maria Coroada, veio do Porto em 1877 visitar a família na Granja do Tedo e
chegou de comboio à Régua”.
Fonte: Editora “Apenas Livros”, Direcção de Ana Paula Guimarães
e Revisão de Luís Filipe Coelho
“Freguesia do concelho de Tabuaço desde 1855,
tendo pertencido anteriormente ao concelho de S. Cosmado integrado na comarca
de Armamar, distrito de Viseu, bispado de Lamego, a Granja do Tedo que, segundo
um recenseamento, de 1828, possuía 106 fogos e 380 indivíduos, gozou até 1836
das liberdades municipais inerentes ao estatuto de concelho.
O facto explicará porventura a relativa
proeminência de que terá gozado e que parece poder deduzir-se da presença de um
mestre-régio de primeiras letras no local, pelo menos desde os anos 30 do
século passado.
Tal como a cosmogonia pregada pela profetiza,
nos rituais do movimento conjugam-se influências cristãs e católicas com
práticas de difícil identificação.
Mais do que na cosmogonia, essas práticas
parecem ser muitas vezes uma paródia dos rituais católicos.
De notar primeiramente o papel central
desempenhado pela casa da profetiza. Lugar privilegiado que é aliás visto como
um cometimento divino. De facto, segundo Maria Coroada, a sua casa seria
"a nova arca da Aliança" donde haveria de sair "a luz do novo
mundo".
Espaço de representação da transformação do
mundo, a casa tinha diferentes espaços atribuídos a este fim: a sala principal
era o lugar onde decorriam todas as cerimónias religiosas e uma outra sala,
onde estava pintado o rio Jordão, um local de iniciação onde os adeptos eram
baptizados.
Na sala principal era oficiada a missa com os
ouvintes voltados de costas para o oficiante e a comunhão ministrada sob a
forma de gomos de laranja. Orações como o Pai-Nosso, a Avé-Maria e as ladainhas
eram mantidas, mas o seu conteúdo transformado. No caso das ladainhas, por
exemplo, a invocação dos nomes dos santos era substituída pela invocação de
nomes de plantas.
A música e a dança acompanhavam todos os
rituais do movimento. As autoridades que o reprimiram acusaram ainda os seus
adeptos de se entregarem a práticas imorais, nomeadamente ao nudismo.
Maria Coroada chamou também a si o ministério
de outros sacramentos. O casamento e o baptismo eram oficiados por ela e, tudo
indica que, durante os anos que o movimento durou, ela tenha realmente
destronado o padre da freguesia nas suas actividades paroquiais.
Uma das acusações que contra ela proferiram
Pinho Leal e o Abade de Miragaia tem a ver com o facto de se ter permitido
anular muitos casamentos canónicos celebrados, instituindo novas alianças
matrimoniais. Esta "desordem nas famílias" teria atingido também a
sua própria.
Descritos sinteticamente as crenças e rituais
do movimento, resta-nos agora caracterizar o conteúdo da sua mensagem
político-social. Se pensarmos nos numerosos exemplos de movimentos messiânicos
medievais, modernos e contemporâneos, a existência duma mensagem deste tipo não
constitui surpresa. De realçar, porém, porque parece ser menos habitual, pelo
menos na época contemporânea, o facto de o movimento ter expressado uma
mensagem político-social progressiva que nunca em nenhum momento se confunde
com a defesa de referências tradicionais ou com qualquer forma de idealização
do passado.
De facto, a crítica às hierarquias sociais
tradicionais e à própria monarquia são contundentes.
A preconização do ensino feminino gratuito
constitui um dos múltiplos aspectos em que no discurso do movimento se valoriza
a imagem da mulher.
As pregações de Maria Coroada revelam ainda
uma preocupação fundamental com os desvalidos da sociedade, os pobres, os
inválidos, os velhos, os órfãos e as viúvas.
O relevo que é dado a esta questão parece
indicar a crise de assistência pública resultante da extinção recente das
ordens religiosas. À sua resolução se liga o essencial das propostas utópicas
do movimento.
Neste sentido, preconiza-se a edificação duma
espécie de asilos, primeiro custeados pelos membros de direito da Comunidade
que são os lavradores e, mais tarde, auto-subsistentes. A fundação destes
estabelecimentos iria permitir ainda aos lavradores expiarem o único crime que
lhes era atribuível; o crime de "tirar marcos".
Fonte: Maria Fátima
Sá e Melo Ferreira
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