sexta-feira, 16 de março de 2018

(Continuação 4)



No jornal “A Columna” de cariz revolucionário e Setembrista, que era editado na desaparecida há muito, Rua dos Lavadouros, seria publicado um artigo entre 29 de Novembro e 2 de Dezembro de 1847 pela pena do escritor e capitão-tenente da Armada, de seu nome Francisco Maria Bordalo (1821 Lisboa, 1861 Lisboa).

Embarco-me no vapor, deixo o meu pátrio Tejo, - vejo sumir-se a Pena, bela coroa da romântica Sintra; à noite enxergo o farol das Berlengas, confundindo a sua luz com a das estrelas; depois durmo, que é uma excelente maneira de encurtar as viagens; e ao romper do dia diviso a Foz, a sua povoação, o seu castelo, e lá por entre montanhas a erguer-se um como cipreste gigante.
Silêncio! - eio!... caluda, que vamos a investir com a barra - e não é ela para graças. O Joaquim Luís e o Turíbio gritam - a bombordo - a estibordo. - E o Cabedelo está aqui agarrado a proa do barco, e o mar rebenta com fúria - parece um lençol de escuma.
Bravo! Passamos adiante - mas cá está a maldita Cruz de ferro - Deus me perdoe a heresia!... Heresia, não, porque a chamada Cruz de ferro não é mais do que uma torrezinha de pedra, que teve em outro tempo o sinal da redenção, dizem.
E com esta conversa safamos de todos os baixos, e eis-nos aqui a largar o ferro em frente a Massarelos.
Namorei-me de uma casa na margem do sul do rio - disseram-me pertencer ao Sr. Antero [que não tive a honra de conhecer] - bonita! isolada à beira do rio, assombrada de arvoredo, - é capaz de fazer poetas. Por mim declaro que se ali passasse um mês, compunha romance de trinta volumes, coisa a desbancar Suee Dumas, - muito maior que o Judeu e que o Monte Cristo.
As construções navais que aparecem na outra margem, começam a dar ideia da vida que anima o Porto: uma corveta de guerra, várias embarcações mercantes, de belos cascos... de elegante mastreação... desenho, obra e madeiras portuguesas - são objectos que devem notar-se... E aqui podia eu fazer largo discurso sobre a decadência da nossa Marinha - falar em Vasco da Gama e Pero de Alenquer e Pero Nunes e... nada, isso já está muito repisado, e eu trato de escrever uma obra inteiramente original, ou para me servir de uma expressão moderna - não quero vasar em nenhum molde o metal da minha eloquência. Agora sim, que ninguém me entendeu.
Vamos, largo do Ouro [o sítio dos estaleiros] - rema avante; aguenta contra a corrente, que quero ir desembarcar à Ribeira.
Gosto mais do Douro, do que do meu pátrio Tejo. Não tem a majestade deste - é verdade - não pode acomodar a um cantinho todas as naus da Inglaterra, da França, da Rússia e da Turquia - é o mesmo; quem quer ver mar largo - bem largo - vai viajar no oceano - e eu que já o estou farto de o ver! - O Douro é estreito - bem sei - mas por isso é que eu gosto dele; tortuoso, assim é que me agrada, apraz-me o subir a qualquer eminência das suas ribas, e ver como se enrosca por entre as montanhas que lhe talharam o leito; como esbraveja às vezes contra essas margens alcantiladas... Tenho pena de não ter nascido à beira do Douro!
Que caras de vender saúde tem os barqueiros - comparai-os com os infesados do Cais do Sodré e da Ribeira Nova. Pois as mulheres de Valongo e Avintes, com aqueles elegantes tamanquinhos - sim senhor elegantes... - Ai que toquei na tecla - isto é tentação - abre nuntio!
A minha catraia vai passando em frente de Miragaia. Lembrou-me o romance do Sr. Garret - eu tenho queda para a poesia! - perguntei aonde era o castelo de Gaia, e mostraram-me na riba oposta umas ruínas - olhei com entusiasmo para elas! Depois espraiando de novo a vista pela extensão de Miragaia, dizia comigo mesmo: - Por aqui devia de ir passando a cavalgada de moiros, quando a bela Gaia mirou pela última vez ao seu Real amante. - E fiquei sério ao contemplar alternadamente as duas margens do rio, recordando-me também do Espetro, belo poema-romance do Sr. José Maria da Costa e Silva.
Não tardei porém em ser distraído. Mostraram-me a Serra do Pilar, que parecia fechar uma pequena baía, olhando da posição em que eu estava; porque o Douro torce-se aqui e acolá, como um avaro que procura esconder os seus tesouros. As ideias mudaram logo de norte; veio-me à lembrança o cerco, aquela memorável defesa; - e D. Pedro, e o General Torres, e os Polacos da Serra passaram em continência diante da minha imaginação; - porque tem isso consigo os poetas e mesmo os prosadores, vêm ante si cada vez que querem os grandes homens de todos os tempos; dos pequenos não fazem eles caso…
…Desçamos à Praça Nova, ou mais modernamente - praça de D. Pedro. Eis-nos aqui na parte mais regular da cidade. As duas calçadas que partem deste lugar em direções opostas - a de Santo António e a dos Clérigos - são espaçosas, e orladas de muitos bons prédios: a primeira coroada pela bela paróquia de Santo Ildefonso; a segunda pela igreja e Torre dos Clérigos (que amizade com que eu fiquei a esta torre!) - A praça é quadrada; cercada de gradarias e assentos de ferro, assombrada de arvoredo em roda, e ornada com o palacete da Câmara Municipal; um chafariz; e o único café e bilhar decente do Porto, único cabeleireiro, e armazém de modas - tudo propriedade de Mr. Guichard.
…A fachada da igreja dos Clérigos pobres - ou de S. Pedro de Alcântara - também prende a atenção como a torre, e como ela pertence a um género de arquitetura inclassificável.
… Baixemos à calçada, e vamos à Câmara Municipal; é necessário não perder tempo.
O palacete é pintado de azul; a gradaria das janelas doirada. No topo tem um guerreiro que sustenta as armas da cidade, e empunha uma lança.
Entremos o portão; no vestíbulo há uma fonte que refresca aquele ambiente. - Subamos a escadaria, penetremos na sala das sessões - lá está a espada de D. Pedro adornando uma das paredes - ao lado do retrato de sua filha.
Confesso que me comoveu aquela vista - aquele largo sabre de bainha de ferro que guiou à vitória os 7500 bravos de Arnósa!... Aí temos outra recordação intempestiva - esquecimento é que se quer.
Passamos à secretaria, e ao arquivo da Municipalidade: o curioso de antiguidades tem aí com que se entreter. Mostrar-lhe-ão um livro em que estão pregadas algumas folhas de papel de algodão, meio dilaceradas porém cobertas de carateres antiquíssimos - é o primeiro auto de Vereação - século XIII ou XIV. O foral da cidade e o de vários lugares do distrito, adornados de belas iluminuras, aonde se conserva o brilhantismo das cores, fruto de uma arte perdida para nós; são obra do tempo de el-rei D. Manuel; e outras preciosidades. Antes de abandonar o palácio da Câmara vede a pequenina capela, e gostareis por certo dos seus adornos, posto que sejam de madeira…”
…Não me resta a visitar nenhum lugar da cidade, passei mesmo um dia no seu arrabalde - a Foz; - templos, palácio, torres, teatro, cemitérios, ruas, praças e vielas, hospícios; o rio e a sua ponte e os seus barcos; homens, mulheres, carruagens; Associações, biblioteca e museu, telégrafos, jardins, passeios, academia e prisão, - tudo procurei ver - de tudo contei um pouco, sem que todavia me passasse pela ideia o ser guia de viajantes no Porto. Agora só me resta visitar as quatro estradas novas que partem da cidade para Braga, Guimarães, Penafiel, e Lisboa; - depois regressar à casa paterna, e recordar, saudoso, estes dias passados nas ribas do Douro. Vamos - monta a cavalo - o Sr. C. Júnior é o meu guia; - trota pela rua da Rainha - eis-nos na estrada de Braga.
Lá está a casa da barreira meia derrocada - foi o povo que a destruiu porque queria ser livre, e todos sabem que as estradas são um tropeço para a liberdade; além de que nossos pais andaram sempre bem pelos antigos atalhos, tortuosos, perigosos, imundos. Devo sempre fazer aqui uma observação - os homens e mulheres do Minho não transitam senão pelas estradas novas, agora o que fazem é danifica-las quanto podem.
Cá está em baixo uma povoaçãozita, com seu templozinho humilde, - é S. Mamede de Infesta.
Avante, pararemos em Leça do Balio.
Chegamos; uma ponte pênsil, pequena mas mui bonita, lançada sobre o rio Leça, aformoseia este lugar; a povoação fica mais longe.
Não iremos adiante; retrocederemos para passar a outra estrada. Voltamos à rua da Rainha, dobramos à esquerda para a rua de 27 Janeiro; no fim desta ainda volvemos à esquerda para a rua de Costa Cabral: ao cabo dela está o começo da estrada de Guimarães.
Galopa até à Cruz das Regateiras.
Um templo, uma cruz de pedra, algumas casas humildes - eis aí o lugar. Sigamos a passo para desfrutar a beleza desses campos que nos cercam, miremos essas soberbas quintas que orlam o caminho, essas colónias verdejantes, e lá ao longe os severos cabeços de várias serras recortando-se no fundo azul do céu.
Passamos por Águas Santas, e antes de chegar à Maia, cortamos à direita; por estreitas devesas, perguntando a que lado fica a estrada de Valongo, vamos sair a Rio Tinto; estamos no caminho que procurávamos, e que se prolonga até Penafiel. Nós seguimos em sentido oposto, e vimos por S. Roque da Lameira entrar na cidade.
Estou fatigado da cavalgata, a tarde vai descaindo... não importa: ainda vou à estrada de Lisboa, e á Serra do Pilar.
Passamos o Douro na ponte pênsil; sopeu o cavalo sobre o abismo para lançar um olhar ao rio e ás águas margens... avante; estamos em Vila Nova de Gaia.
É preciso subir essa calçada íngreme e imunda para chegar ao histórico alto da Bandeira (aonde perdeu um braço o Sr. Visconde de Sá - para quê?) - Aí começa a estrada dos Carvalhos, que devia prolongar-se até Lisboa.
Há pois vinte e duas léguas de boa estrada; construídas nos arredores do Porto; vi meia dúzia delas, então me desenganei de que as companhias monstros não eram tanto ilusão como me tinham dito em Lisboa alguns meses depois da revolução do Minho, quando eu voltava de uma larga viagem ao sul da América.
Subimos à serra - que religioso respeito me infunde este lugar! Aqui estão as baterias, precedidas de fossos - além o convento cravejado de balas, - os ferros das janelas torcidos ou quebrados, - as pedras amassadas pelo choque dos projeteis... mas sobre a porta incólume em seu nicho esse santinho que afugentou de si as bombas!
O sol abismava-se no oceano, - era essa hora a mais solene do dia em que os objetos começam a descorar, os vultos reais a tornarem-se fantásticos. Em volta de mim reinava o silêncio e a solidão. O meu amigo C. apartara-se por alguns momentos; só restava uma sentinela à porta do convento, marchando compassadamente em um espaço determinado como um autómato bem fabricado.
E lá em baixo, do outro lado do rio, pendurava-se a cidade por suas majestosas colinas, expraiava-se pela beira do Douro, e unia a si com um cinto de madeira e ferro Vila Nova de Gaia.
Era um quadro sublime de grandeza!
A quem visitar o Porto recomendo-lhe este ponto de vista, e o das Fontainhas na outra margem: - não sei por qual me decida - ambos são maravilhosos.
À noite voltamos à cidade.
No dia seguinte embarquei no vapor para Lisboa.
Ao passar pela Foz, algumas senhoras que passeavam na praia agitaram os seus lenços a despedir-se de nós - a dar-nos a boa viagem... e Deus escutou os votos daqueles anjinhos, tivemos um tempo divino até Lisboa. Um desses Serafins conheci eu bem - tinha-me prometido vir ali despedir-se de mim, - e não olvidou a promessa. O céu te pague, mulher, o bem que me fizeste: - os desgraçados contentam-se com tão pouco!
Adeus, Porto, adeus, volto a Lisboa, e já agora não passarei sem celebrar as belezas da minha terra natal; sim, hei-de escrever um livro das minhas viagens à roda da cidade aonde nasci; porque não - quando Xavier des Maistres viajou em roda do seu quarto; o meu trabalho é muito mais amplo; vou tratar disso, e até que se publique - adeus leitor! Desculpe a maçada.
Lisboa, 22 de Novembro de 1847
Autor: Francisco Maria Bordalo; Fonte:  “aportanobre.blogspot”


A seguir, numa panorâmica obtida cerca de 13 anos após a visita do lisboeta Francisco Maria Bordalo, em que a paisagem não seria muito diferente daquela que ele encontrou, podemos observar que a capela de Carlos Alberto na Torre da Marca já estava edificada, mas, ainda ter-se-ia que esperar 5 anos, para que o Palácio de Cristal viesse a ser inaugurado.


Vista de Massarelos c. 1860 – Ed. Archivo Pitoresco

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