Décima Segunda carta do Barão de Forrester
Assim como até aqui
me tenho entretido como que de uma vida
irregular, escrevendo acerca das pedras do Douro, acomodações de
estalagens, &c, &c, assim também passarei agora a dizer uma ou duas
palavras sobre um objecto que grave impressão me tem causado pelas terras onde
por onde tenho passado: refiro-me a certas casas, geralmente muito mal construídas,
mas sempre em lugares mais públicos, e com as janelas au rez de chaussès, junto das quais
geralmente se vê bastante gente, congregada, falando e divertindo-se como
romeiros em dia de festa. Estas casas, Sr. Redactor, são as cadeias, para onde,
decerto, não vai gente que tenha praticado boas acções; contudo, se o objecto
de uma prisão é castigar os culpados, e o do castigo é corrigi-los, parecem-me
muito fora de razão que sejam dados aos povos, semelhantes maus exemplos como
estes a que me refiro; porque, em muitos sítios, longe de ser castigo, os
presos vivem, só com a diferença de não terem a sua liberdade, melhor e em
maior abundância que jamais conheceram, simplesmente porque pertencem a alguem
destes povos de aldeia, como parentes ou compadres que também têm os seus; de
sorte que uma espécie de maçonaria ou fraternidade existem entre eles, e
a confraria é quem os
sustenta.
Dizem, - mas eu
como viajante não posso dizer se é verdade, - que estes estabelecimentos são
só privilégio dos
pobres; e que até, por muitos e sucessivos anos, gozam deste mesmo privilégio,
ou por esquecimento, ou porque nenhuma despesa fazem ao Estado; mas, ainda
assim, frequentes vezes acontece que no meio do seu regozijo e repentinamente
aparece uma ordem não de soltura, mas para que, ligados uns aos outros, vão
seguindo caminho do Porto ou Lisboa, para cumprirem o degredo, expiarem as
últimas penas.
Eu não me acho com
forças, nem a ocasião é própria, para entrar deveras neste assunto; contudo, na
cadeia da Relação a cidade do Porto, acontece quase o mesmo, e em muito maior
escala, quanto ao edifício, mas não quanto aos confortos em razão da ausência
dos parentes. Aqui consta que há também inquilinos de muitos anos, que ocupam,
segundo os anos de serviço, diversas graduações; e que seu chairman (desculpe o termo
inglês por não saber o termo técnico) tem muita autoridade, e os seus decretos tem força de lei; e decerto,
são rigorosamente cumpridos, e com maior presteza, que costumam os empregados
legais. Não digo isto para ofender repartição pública alguma; porque é bem
sabido que nenhuma tem a obrigação de trabalhar dia e noite, como pratica a clientela
do dito chairman.
Haverá quem diga
que eu sou um estrangeiro muito perverso, e que agora abuso da hospitalidade
dos dignos portugueses, fazendo estas minhas críticas, da mesma forma que,
quando me atacaram na época em que falei nos vinhos do Porto; e quando mereci o
lisonjeiro epíteto de ser uma "ave estranha num país estrangeiro".
Porém, Sr. Redactor, já estou muito velho e à prova de bomba; não me intimidam quando eu trato de fazer bem ao
país que amo como meu. Vou contar-lhe uma história que tem seus visos de romance; mas nem por
isso deixa de ser menos verdadeira.
Quando habitei a
casa na Ramada Alta actualmente ocupada pelo patriótico e filantropo (termo de
que me sirvo em lugar de ill.mo e exc.mo) visconde da Trindade, tinha um
relógio de mesa muito lindo, de três e meio palmos de altura, sendo o assunto
um preto segurando um
cavalo bravo e fogoso. Quando saía da minha casa pela manhã, e voltava à noite,
costumava sempre conferir o meu relógio de algibeira com aquele; mas
aconteceu-me um dia, que, voltando a casa, dei pela falta do relógio, manga de
vidro, preto, e cavalo branco, e até a própria chave. Em vão, pergunto a minha
mulher, filhos e criados, pela falta; mas ninguém me podia esclarecer o
negócio; porém tendo motivos de suspeitar de algumas pessoas, relacionadas com
os criados, paguei a cada um deles um mês adiantado, e mostrei-lhes a porta.
Foi justamente, Sr. Redactor, nesta ocasião que alguém me falou na bela
organização do corpo dos ladrões na cidade do Porto, debaixo da autoridade do
ladrão-mór a que acima me referi.
Mandei falar a
este potentado por eu
não ter a honra de o
conhecer pessoalmente, remetendo-lhe os sinais do objecto roubado, e
contando-lhe todas as circunstâncias do roubo. Recebi logo um recado verbal mui
atencioso, já se sabe, no estilo de - "fulano faz os seus cumprimentos a
sicrano, &c; e logo que possa, dará conta da sua missão": Com efeito -
na mesma noite uma pessoa mui bem trajada, com hábito de Cristo ao peito, me
procurou em casa; e tal era a sua presença de respeitabilidade, que o meu novo
criado sem hesitação alguma o encaminhou à minha sala de visitas, pondo as
competentes velas de cera; e apresentando-lhe uma cadeira, convidou-o a
assentar-se em quanto que vinha ao meu gabinete chamar-me. Pode bem imaginar-se
a minha surpresa, quando entrei na sala, e depois da devida troca de
cumprimentos, o cavaleiro hóspede participou-me que era o embaixador do ill.mo ladrão-mór
da cadeia; e que vinha, da sua parte, para assegurar-me que o roubador não
tinha sido nenhum membro da honrada profissão
a que ele presidia, aliás com muito gosto me teria sido já restituído o
relógio.
Agradeci, como era
de supor, a finesa do cavaleiro e lhe retribui os cumprimentos da personagem que ele vinha
representar. Confesso, porém, que enquanto o meu criado o acompanhava até à
porta, passei um golpe de vista por toda a sala para verificar se, com efeito,
mais alguma outra redoma me faltava.
Publiquei anúncios
nas gazetas, ofereçendo alvissaras de 6 moedas a quem me desse notícias do meu
pobre cavalo branco, e seu condutor africano. Em seguida veio um adeleiro
convidar-me para ir ver um relógio muito bonito que ele - que não tinha visto
os anúncios - julgava poder servir-me, dando ao mesmo tempo uma descrição
exactissima do objecto.
Acompanhado por um
amigo, segui o adeleiro até uma casa na rua de....... na cidade baixa; entrei
numa loja onde estava a conversar uma mulher de mantilha com o dono: não
reparei muito nesta mulher no momento da entrada; mas vi sobre o mostrador 3
montes a 2 moedas em que ela pegou sem as contar, metendo-as num lenço, e
saindo precipitadamente. A quantia do dinheiro por ser aquele que eu tinha
oferecido de alvissaras, fez que eu, ainda que tarde, lançasse os olhos após a
mulher; e não pude deixar de pensar que eu a tinha visto em diferentes
ocasiões, falando com os meus criados.
O logista não me
conhecia; e eu também nada lhe disse do fim da minha visita. O adeleiro
disse-lhe que eu era muito tentado com objectos de gosto, e queria ver a sua
coleção. Levou-nos para uma sala no 1º andar; e logo que entrei, vi numa
prateleira entre ricos vasos de porcelana e outros objectos, o meu cavalinho
com todos os mais aprestes. O bom do homem abriu as suas gavetas, e
caixa-forte; em poucos momentos cobriu a mesa de pulseiras, cordões de ouro,
alfinetes de peito, tiáras e anéis de brilhantes, e um sem número de
condecorações. E em várias outras partes da sala apontou toda a qualidade de
roupa feita, e alguns lenços de seda pendurados sobre uma corda que comunicava
com uma campainha fora da porta.
Logo conheci que eu
estava no atélier de um ladrão de profissão; cujos discípulos eram ensaiados
neste recinto, praticando a gíria de
furtar lenços sem serem pressentidos, sendo o grau de perfeição na arte o poder
tirar um destes lenços da corda solta sem tocar a campainha.
Nestas alturas
tirei da algibeira o Periódico
dos Pobres, e mostrei o meu anúncio ao professor da arte ligeira. Ele mudou de cor,
e deu um passo para a porta; porém interceptei-lhe a retirada, e em poucas
palavras, mas com muita firmeza, reclamei o que me pertencia. Pranteou, -
suplicou perdão, - protestou a sua inocência, dizendo que não lhe era possível
saber de onde vinham os objectos que lhe ofereciam à venda, ou em penhor; - que
não conhecia quem lhe tinha trazido o relógio; e que muito sentia não ter visto
o anúncio, porque no momento da minha entrada na sua loja, a mulher que dias
antes havia trazido o objecto roubado, estava neste acto levando as 6 moedas,
preço que lhe tinha custado. Continuou a jurar que nada sabia do furto, mas
acrescentando que, visto que o objecto era meu - conhecia ser da sua obrigação
entregar-mo; o que com efeito fez dentro de meia hora.
Como vi que não era
possível descobrir o modo engenhoso, com que o relógio tinha sido roubado de
minha casa, forçoso foi que me contentasse com a sua restituição, sem ulterior
procedimento; mas - quando cheguei a casa, e principiei a dar corda ao relógio
reparei que a fábrica tinha sido atada com um bocadinho de retroz de seda
verde, que havia sido tirada da pequena mesa de costura que estava no outro
lado da sala - operação esta que decerto não foi feita no momento, e que tinha
por fim evitar que o relógio desse horas durante a mudança. Este facto deixou
suspeitas sobre mais de um indivíduo; e será força de imaginação, mas é facto,
que quando eu passo por certa rua muito estreita que conduz ao postigo do Sol,
uma mulher, que julgo ser a mesma que eu tinha visto recebendo o dinheiro na
loja de que já falei, - logo que me avista, retira-se para dentro de casa.
Tenha paciência,
Sr. Redactor, com esta massada -
mas estas reflexões são consequência da prisão voluntária a que me votei na
minha barquinha, e da minha imaginação precisar de distração. Porém o remédio
está na sua mão e não gostando do que tenho escrito, remédio será queimar esta
carta.
Agora falemos
sério. Sentirei, Sr. Redactor, se eu nesta narração entrar em seara alheia; por isso que sei que o
meu amigo Sr. José Frutuoso Aires Gouveia Osório, doutor pela universidade de
Coimbra, e Edimburgo, nas suas viagens à Inglaterra, França, Bélgica, e países
do norte, estudou teórica e praticamente a organização das prisões. Desejava
muito perguntar a este meu amigo, porque motivo não tem ainda publicado as suas
observações áquele respeito. Será, por acaso, que ele, também como eu, tenha
pedido estatísticas, sobre o assunto a algum ministro de estado, e as não tenha
recebido, depois de lhas prometerem? Quem sabe!
Sou de VV.
J. J. Forrester
Casa do Barão de Forrester na Ramada Alta
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