domingo, 21 de setembro de 2025

25.285 Os 600 anos do complexo monacal de Santa Clara

 
As religiosas do mosteiro de Santa Clara, no Porto, eram Franciscanas Clarissas e oriundas de um pequeno convento situado na foz do rio Tâmega, na freguesia de Santa Clara do Torrão, onde usufruíam de rendas de portagem de mercadorias que transitavam pelo rio Douro.
 
 
“No século X, foi fundado no anterior cenóbio do Salvador, situado no lugar do Torrão, Entre Ambos os Rios, junto à margem esquerda do Tâmega, na confluência do Douro. 
Os seus patronos foram D. Châmoa Gomes, dama nobre do Porto e seu marido, o fidalgo leonês, D. Rodrigo Froilas, que o dotaram generosamente e receberam do bispo D. Vicente e do cabido do Porto a doação do respectivo couto. 
Em 1256, ou em 1257, por bula do papa Alexandre IV, de 13 de Janeiro, foi autorizada a fundação do Convento para cem religiosas, vindo doze monjas clarissas de Zamora para iniciar a comunidade, uma das quais seria a abadessa. 
Iniciou-se então, a construção do edifício chegando apenas três irmãs de Zamora, o que pode significar um começo mais modesto do que o esperado. 
Em 1258, já estava instalada a primeira comunidade de clarissas que seguia a regra do Cardeal Hugolino, tendo sido o Convento refundado. 
A alegação da existência de abusos cometidos no Convento por grande número de nobres, apresentada por Frei João de Xira, visitador das religiosas e confessor de D. João I, justificou a sua transferência do Torrão, lugar despovoado e solitário, para o Porto. 
Em 1416, sob o patrocínio de Dona Filipa de Lencastre, e através da bula "Sacrae Religionis" de Inocêncio VII, do mesmo ano, dirigida ao abade beneditino de Santo Tirso, foi obtida a autorização necessária. 
Em 1416, a 25 de Março, foi lançada a primeira pedra - benzida pelo bispo do Porto, D. Fernando da Guerra - na presença do monarca que, nesse ano, tomou os dois conventos sob a sua protecção. 
Cerca de 1427, efectivou-se a trasladação da comunidade para o local dos "Carvalhos do Monte" junto à Porta de Santo António da Pena ou Penedo, dentro dos muros da cidade, ao longo da muralha fernandina, com a intervenção de D. Fernando de Guerra, arcebispo de Braga. As freiras mantiveram os privilégios, doações e foros, obtidos no anterior Convento. 
Em 1568, passou da claustra à observância”. 
In: autoridades.arquivos.pt
 
 
“A freguesia de Santa Clara do Torrão, no antigo concelho de Benviver, era curato da apresentação do Convento de Santa Clara do Porto, passando mais tarde a reitoria. O Decreto de 31 de Dezembro de 1853 extinguiu o concelho de Benviver, passando esta freguesia para o Marco de Canaveses.
Arcediagado de Benviver (século XII). Comarca eclesiástica de Sobretâmega - 1º distrito (1856; 1907). Segunda vigararia do Marco de Canaveses (1916; 1970).”
In Arquivo distrital do Porto, História administrativa/ Bibliográfica/ Familiar.
 
 
 
O Mosteiro de Santa Clara foi, assim, construído para dar cumprimento a um voto de D. Filipa de Lencastre, sendo lançada a primeira pedra no ano seguinte à morte da rainha.
A este acto, que se revestiu de grande solenidade e se realizou em 28 de Março de 1416, esteve presente o Bispo D. Fernando Guerra, acompanhado pelo cabido e clero, comunidades de S. Francisco e S. Domingos, pelo rei D. João I e filhos, o infante D. Fernando e D. Afonso, conde de Barcelos, toda a corte e o povo da cidade, que assistiram a uma procissão que teve por término o local de implantação do mosteiro.
As primeiras freiras, que eram oriundas do mosteiro de Santa Clara do Torrão (Entre-os-Rios) e que viviam até aí, em condições muito precárias, conseguiram autorização para construírem o edifício dentro da muralha, colocando-se assim ao abrigo de possíveis incursões dos castelhanos.
Com a supressão de vários mosteiros mais pequenos nas diversas localidades entre o século XV e o século XVI, as freiras foram-se agregando em Santa Clara levando para lá as suas rendas, sendo uma delas uma portagem por todas as mercadorias que passavam pelo Rio Douro.
As obras estavam totalmente concluídas em 1457, facto a que não foi alheio o monarca, que colocou o mosteiro sob protecção régia.
A transferência dá-se, então, em 1457, sobre a presidência da abadessa D. Mécia Álvares que, pouco depois, é substituída no cargo por D. Leonor Ferraz.
Aliás, esta família Ferraz estará, desde sempre, ligada a este mosteiro.
Assim, é o caso da abadessa Briolanja Ferraz, filha de Afonso Ferraz, fidalgo da casa de D. João III, que terá feito a integração na ordem de vários padroados e doacções.
No começo de 1683, durante a construção de um novo claustro, terá ocorrido um incêndio no mosteiro com danos de alguma monta.
Seguir-se-á uma intervenção que levará a igreja para uma aparência do período barroco, com a capela-mor recoberta a ouro em 1729, e o novo arco cruzeiro levantado em 1731.
Para trás, tinha ficado uma intervenção do início do século XVII, que resultou na cobertura do interior da igreja a azulejos.
Em 1758, a igreja estava toda recoberta a folha de ouro.
Por esta altura, a população cifrava-se em 300 almas, das quais 1/3 eram monjas oriundas da nobreza e da burguesia endinheirada e, os outros 2/3, era criadagem, alguma dela de tez negra, pelo que, não admira que os altares apresentassem santos negros - Santa Ifigénia e S. Benedito.
Os dotes exigidos às futuras monjas eram grandes.
As candidatas à entrada tinham que ter mais de doze anos, serem solteiras ou viúvas, mas, sempre, virtuosas.
A admissão resultava de uma votação secreta de toda a comunidade, a que se seguia a profissão de fé.
O mosteiro vivia na abastança. 
 
 
 

Mosteiro de Santa Clara, gravura de J. Victoria Villanova, em 1834
 
 
 
A estrutura arquitectónica é de grande simplicidade destacando-se, no entanto, os dois portais: o da igreja, renascentista, e o da portaria da casa conventual, muito semelhante ao portal de entrada da igreja do convento de S. Francisco do Porto, já com um espírito barroco. No início do século XVIII, devido ao número crescente de monjas, são construídos novos dormitórios (1707-1715).
Entre 1714 e 1716, é edificado junto da muralha fernandina um novo dormitório sendo, assim, demolidas as instalações para os padres confessores e capelão que só serão novamente levantadas em 1719.
A sua igreja, desde sempre com a sua entrada lateral, característica dos mosteiros femininos mantém, até aos nossos dias, intacto o magnífico interior, totalmente revestido a talha dourada, na linha de outras igrejas portuenses, como a de S. Francisco, ou S. Pedro de Miragaia, ou Monchique, esta última desaparecida.
A entrada da igreja é feita através de uma porta barroca, datada de 1697 e reformulada no século XVIII, com elementos renascentistas como colunas salomónicas e capitéis coríntios. No interior, podemos vislumbrar toda a magnificência desta igreja, toda coberta por talha dourada da primeira metade do século XVIII.
O esmero e o requinte de execução que podemos admirar nos retábulos, sanefas, tecto, arco cruzeiro e, principalmente, na capela-mor, provam a categoria dos artistas da escola do Porto e fazem de Santa Clara um paradigma do domínio da talha dourada. À esplêndida capela-mor encontra-se ligado o arquitecto-entalhador Miguel Francisco da Silva, responsável pela feitura do retábulo-mor, ilhargas, tecto, arco cruzeiro e retábulos/nichos colaterais (1730), ignorando-se o autor do risco.
Chegou a ser um dos mais ricos conven­tos da cidade.
Até ao ano de 1500, as aba­dessas de Santa Clara do Porto recebiam impostos sobre todo o sável e lampreias que eram pescados no rio Douro e, tam­bém, portagem de todas as mercadorias que transitavam pelo mesmo rio, dado que as clarissas mantiveram, em princípio todos os privilégios, doações e foros, que traziam do Torrão.
As monjas do mosteiro de Santa Clara também eram conhecidas por “Donas do Codeçal”.
No século XVIII, as rendas anuais do mosteiro atingiram o elevado montan­te, para a época, entenda-se, de doze con­tos de réis. 
O texto que se segue dá-nos uma descrição do mosteiro, em meados do século XIX.
 
 
“Quando fomos visitar o convento de Santa Ana [sic; Santa Clara], entrámos a cavalo no átrio; o ruído dos cascos dos cavalos atraiu algumas das Freiras, e jovens residentes até à janela gradeada. A senhora inglesa a cavalo, ou antes, talvez o seu chapéu e longo vestido de montar, pareciam atrair as atenções, até que os nossos dois cães terra nova “cortaram” essas atenções e captaram a sua admiração. No centro do isolado átrio estava uma bonita fonte de mármore, com uma grande pia circular, a resplandecer com água límpida que a enchia até ao bordo. Mal os cães deram por ela, pularam de imediato e mergulharam na pia, nadando em volta dela como se tivesse sido feita para eles. De vez em quando mergulhavam até ao fundo trazendo pedras, que iam depositar no átrio, saltando de novo para a água, e não descansaram até já não haver um único seixo na fonte. As gargalhadas e os gritos de admiração das senhoras por detrás das grades revelavam que se sentiam tão surpreendidas e divertidas por estes comportamentos como se os cães fossem magos. Enquanto esperávamos autorização para ver a capela, trocámos algumas palavras de circunstâncias com uma das freiras mais velhas, através da grade de ferro que separa a capela do resto do convento do lado oeste.”
Dorothy Wordsworth, In “Diário de uma Viagem a Portugal e ao Sul de Espanha” (1845)
 
 
 
Entre as várias solenidades religiosas que eram assinaladas pelas clarissas, contava-se a festa, a 16 de Janeiro de cada ano, dos santos mártires de Mar­rocos, que pertenciam à Ordem de S. Fran­cisco.
Os padres regrantes da ordem de Santo Agostinho, conhecidos como frades crúzios, que tinham o seu mosteiro do outro lado do rio, no cimo do monte da Serra do Pilar, possuíam uma relíquia dos mártires de Marrocos e, na véspera do dia 16 de Janeiro (ao cair da tarde), levavam a relí­quia em procissão até uma das janelas do convento e mostravam-na à cidade. Do lado de cá, as monjas subiam a um mirante feito a partir de um cubelo da muralha fernandi­na e, enquanto cantavam uma antífona, a madre abadessa incensava, do lado de cá, o relicário. 
 
 
 

Cubelo e Muralha antes da última intervenção

 
 
A foto, acima, apresenta um troço da muralha, antes da última intervenção, mui­to perto da Igreja de Santa Cla­ra e da Rua do Miradouro. Esta rua começa nas esca­das dos Guindais e termina na Alameda das Fontainhas. Tem aquele nome por ficar per­to do mirante da muralha fernandina que era o local de re­creio das monjas e o sítio de onde elas can­tavam a antífona em louvor dos santos mártires de Marrocos e miravam a relíquia.
A Rua do Miradouro já tinha esta denominação em 1846.
Aliás, os conventos ou mosteiros femininos ostentavam os seus mirantes que, em Santa Clara, adaptaram os torreões das muralhas.
Sobre uma outra tradição existente no convento escreve Germano Silva:
 
 
“Há no Porto uma tradição, muito antiga, de as noivas, na véspera do casamento, oferecerem a Santa Clara (a de Assis) meia dúzia, ou uma dúzia, de ovos "de galinha poedeira", logo caseira, para que não chova no dia da boda…Eu não sei, e julgo que ninguém sabe, como estas coisas se engendram na imaginativa crónica popular e passam de avós para netos; de pais para filhos; da lenda para a história; e da história para a tradição ou para o simbolismo. Mas julgo, e é apenas uma mera suposição, que esse antigo uso popular anda ligado ao facto de as clarissas terem sido, em tempos idos, conhecidas também por "esposas de Santa Clara" - sendo que aqui a expressão quer dizer as esposas que vivem em Santa Clara e não as esposas da padroeira.
Todo isto tem a ver com a realização da antiga e tradicional procissão da Paixão, que no Porto acontecia na Sexta-Feira Santa. O préstito saia da Igreja de S. Francisco e passava pela "casa das esposas de Santa Clara". Quando aqui chegava, já a noite começava a cair sobre a cidade. Era então costume deixar na igreja das freiras "o esquife com a imagem do Senhor Morto "para contemplação das 'esposas do Senhor'", como também se costumava dizer.
Como atrás fica dito - e isto é apenas uma suposição -, pode ver-se na oferta dos ovos uma súplica das noivas às "esposas de Santa Clara "”.
 
 
 
 
O mosteiro era abastecido por manancial proveniente de duas nascentes que se juntavam no campo do Espinheira, na Póvoa de Cima, a actual Praça Rainha D. Amélia, corria mais ou menos paralelo à actual Rua da Alegria passando pelas faldas do Monte de Santa Catarina, que se chamou também Monte dos Congregados e que por pertencer em parte a Thadeu António de Faria é também conhecido por Monte do Tadeu, passava ainda por Malmerendas (Rua Dr. Alves da Veiga, actual) e paralelamente à Rua do Caramujo (troço final da Rua da Alegria) e por Santo Ildefonso, Rua do Campinho, Entreparedes e Praça da Batalha, rumava por fim ao mosteiro.
Este manancial também abastecia o Paço Episcopal.
No seu trajecto o manancial abastecia o chafariz do Largo da Póvoa de Cima, também chamado de S. Crispim, hoje instalado no Palácio de Cristal, a fonte do Canavarro instalada na Rua Santa Catarina e desaparecida e ainda a Fonte da Firmeza, hoje instalada na Praça das Flores, antes implantada na rua do mesmo nome.
Na sequência do Decreto de 30 de Maio de 1834, de extinção das ordens religiosas, o Estado tomou posse definitiva dos bens do mosteiro, em 1900, quando faleceu a sua última religiosa, a abadessa Maria da Glória e, por outro lado, a igreja de Santa Clara deixa de ter comunicação com o mosteiro.
Desde então, as antigas instalações do mosteiro passaram a albergar, em 1901, no corpo norte e na antiga casa dos capelães, o dispensário Rainha D. Amélia (actual centro de saúde da Batalha) e, por adaptação do claustro pelo Governo Civil do Porto, surgiu uma casa de reclusão (o Aljube). Em 1903, a Associação Protectora da Infância instalou-se no edifício envolvente do pátio da igreja. Nas décadas de 1920 e 1930, no corpo das instalações, a sudeste, estiveram as instalações do Hospital de Santa Clara, onde, mais tarde, se albergou o Instituto Ricardo Jorge e, a partir de 1960, também por lá esteve, a Polícia de Segurança Pública do Porto.
 
 
 
 

Pátio do mosteiro de Santa Clara com o seu chafariz (Desenho/reconstituição -1920) – Ed. João Monteiro
 
 
 
 
 

Pátio do mosteiro de Santa Clara. À esquerda, a porta do mosteiro e, à direita, a porta da igreja
 
 
 
No interior da igreja de Santa Clara, podemos encontrar um dos melhores exemplares da arte da talha dourada do Barroco Joanino.



 

Portaria da igreja do mosteiro de Santa Clara
 
 
 

Interior da Igreja de Santa Clara
 
 
 
 
Em 1910, a igreja é classificada como Monumento Nacional e, desde 1996, faz parte integrante do centro histórico do Porto, reconhecido pela Unesco como Património da Humanidade.
Em 22 de Outubro de 2021, após cinco anos de obras de recuperação, a igreja de Santa Clara abriu, ao público, completamente remodelada.

Sem comentários:

Enviar um comentário