segunda-feira, 25 de março de 2019

25.39 A Mabor


A “Mabor - Manufactura Nacional da Borracha”, inaugurada em 6 de Abril de 1946, foi uma empresa que, embora com sede na freguesia de Lousado, em Famalicão, sempre disse muito aos portuenses e à cidade do Porto, pois, teve sempre a sua sede nesta cidade, na Avenida dos Aliados e, dada a relativa proximidade com as instalações fabris, muitos lá trabalharam.
Foi fundada pelo Dr. Júlio Anahori de Quental Calheiros – 3º conde da Covilhã e presidente do Conselho de administração do Banco Borges & Irmão. A sigla e marca “Mabor”, radicam no nome de Maria Emília Fernandes Borges, a esposa do conde, filha do banqueiro Francisco Borges.
O 3º conde da Covilhã tinha enviuvado de um primeiro casamento, com Vera de Sousa e Cruz, que faleceu muito nova, filha do banqueiro Sousa e Cruz.


A origem


A freguesia de Lousado, Concelho de Famalicão, naqueles idos dos anos 30, do século XX, era uma zona muito pobre.
Contam alguns uma estória, de que o nascimento da Mabor resultará de um pedido do cardeal Cerejeira ao seu amigo, conde da Covilhã, para levar para aquela freguesia de Famalicão uma indústria. E, assim, com o apoio da “General Tire and Ruber Company” (empresa americana de pneus), onde o Conde da Covilhã tinha amizades, nasce a Mabor.
A instalação da fábrica começa uns anos antes, em 1937, quando é adquirida uma licença pertencente a Carlos Farinha, com o exclusivo de fabrico de pneus e câmaras de ar.
Só em 1940, haveria de se estruturar o grupo que adquiriu o alvará citado, com financiamento do Banco Borges & Irmão e o acompanhamento técnico da “General Tire and Ruber Company”, esta, com 20% do capital. A sociedade que surgiu, viu a luz do dia em 13 de Junho de 1940.
As instalações fabris começariam a ser construídas em 1942 e seriam inauguradas em 6 de Abril de 1946.
Nesse mesmo dia, foi apresentado o primeiro pneu da marca e também o primeiro alguma vez produzido em Portugal.



Instalações fabris da Mabor – Fonte: “restosdecoleccao.blogspot.com”



Fase de fabrico de um pneu na Mabor – Fonte: “restosdecoleccao.blogspot.com”


A 2ª guerra mundial tinha terminado há pouco.
Dificuldades de obtenção de matérias-primas, essenciais para o fabrico dos pneus, fazem a Mabor optar pela construção de uma fábrica destinada a produzir telas de reforço dos pneus, que eram, até então, importadas.
A partir de 1950 a Mabor que até aí importava da “General Tire and Ruber Company” as telas de reforço dos pneus, passou a adquiri-las na “Indústria Têxtil do Ave, Sarl”, fábrica mandada construir por Henrique Malheiro Dias e inaugurada em 1950.
Em 1948, já tinha sido autorizada a exportação para as colónias.
Quando surge a guerra colonial (15 Março de 1961) tinha já falecido, há cerca de um mês, o presidente do conselho de administração da Mabor, à data, Delfim da Silva Fernandes Vinagre (1894/07 Fev 1961), natural de Barcelos, banqueiro, sócio do Banco Borges & Irmão, grande proprietário agrícola e casado a 1/12/1920, com D. Lúcia Brenha Borges, (1892/196..), natural da Vitória, Porto.
Delfim Vinagre, acumulava aquelas funções com uma outra de grande relevo para a cidade do Porto. Era presidente do conselho de administração da “Fábrica de Lanifícios de Lordelo do Ouro”, sita na Rua de Serralves.
Em 1968, a necessidade de aumentar a capacidade produtiva instalada e de corresponder às novas exigências de ordem técnica, obrigam à inauguração de uma nova fábrica, mais a norte e expansão para os territórios ultramarinos.
Em breve a empresa sob a marca “Mabor General” começa a produzir pneus para veículos pesados, “chaimites”, ligeiros, motos e câmaras de ar e pisos para recauchutagens.


“Indústria Têxtil do Ave” e, à direita, a “Mabor” – Fonte: “restosdecoleccao.blogspot.com”


Linha de fabrico de pneus na Mabor – Fonte: “restosdecoleccao.blogspot.com”



Tabela de preços em 1947 – Fonte: “restosdecoleccao.blogspot.com”


Publicidade à Mabor



A reconversão


Nos anos 80, a Mabor já dava sinais de envelhecimento, ficando a reestruturação a cargo do grupo “Continental AG” que passaria a ter, no final do processo, 100% do capital, tendo adquirido também a “Indústria Têxtil do Ave” e, passando a ser, então, a Continental Mabor- Industria de Pneus, SA, em 1993.
Para a “Continental Mabor-Industria de Pneus, SA”, a criação da AutoEuropa é um momento fundamental.
Quando em 1989, a AutoEuropa surge em Portugal e o Estado obriga à incorporação de componentes feitos no país, a Continental (que já tinha acções da Mabor) identifica uma oportunidade de negócio e faz uma joint-venture com a fábrica portuguesa (a Mabor detinha 40% do capital e a Continental 60%). Estávamos em 1990 e a Continental Mabor torna-se uma realidade. Depois, demorou apenas três anos para que a multinacional alemã se tornasse o único accionista da fábrica nortenha.
Em 1999, a Volkswagen ganha exclusividade de distribuição de pneus Mabor na Alemanha e, em 2002, o volume anual de vendas excede a marca de 1 milhão.
O início da distribuição exclusiva na Europa Oriental e Áustria acontece em 2007 através da Porsche.


À esquerda um reclame que muitos conheceram na platibanda do edifício do teatro Rivoli


Presentemente, a “Continental Mabor” é a única empresa nacional a dedicar-se ao fabrico de pneus, empregando cerca de 1500 trabalhadores e sendo, do grupo alemão, a sua joia da coroa.
Em 2010, a empresa já facturava 650 milhões de euros.
Em 2014, a unidade fabril tinha uma facturação de 794 milhões de euros e resultados líquidos na ordem dos 200 milhões.
A Continental Mabor registaria receitas de 830 milhões de euros, em 2016, das quais 97,3%, diziam respeito a vendas para o exterior.
Das 20 fábricas de pneus da Continental é, sucessivamente, a de mais destaque.
A Continental de Lousado abastece 68 países, de um extremo (Estados Unidos) ao outro do mundo (China), mas a Europa é o seu maior mercado, com 54% das vendas.

segunda-feira, 18 de março de 2019

25.38 Deambulando entre a Ramada Alta e o Carvalhido


Capela do Senhor da Agonia, ou do Senhor do Calvário, ou Capela de Nossa Senhora das Dores na Ramada Alta


O sítio da Ramada Alta tomou a denominação de uma quinta que ali existia, pertencente, em meados do século passado, à família Barros Lima.
José Francisco de Barros Lima foi um negociante portuense e um dos heróis do Movimento Vintista que eclodiu em 1820, no Porto, e se traduziu na revolta contra a presença dos interesses britânicos em Portugal.
Este sítio, que também se chamou “Falperra”, fazia parte integrante dos caminhos de Santiago e era também percorrido pelos romeiros que tinham por destino as festas da Senhora da Hora e do Senhor de Matosinhos, com passagem pela Rua de 9 de Julho (antiga Rua da Ramada Alta) e tendo por primeiro destino o Carvalhido.
Alguns metros antes, naquela estrada, paravam no cruzeiro denominado o Senhor do Padrão, que ainda existe.


Cruzeiro do Senhor do Padrão


Como se apercebe, na base envolvente ao cruzeiro existe uma chapa com uma legenda, que pretende homenagear os caminhantes:
"Louvado seja os tempos de valores virtude lizura ozeas. MDCCXXXVIII 1738".
Este cruzeiro, até ao ano de 1980, esteve implantado na Rua 9 de Julho, a cerca de 50 metros do actual local.




“O Cruzeiro do Senhor do Padrão foi erigido em 1738, assinalando a antiga estrutura viária desta zona da cidade do Porto, por onde passava o caminho que se dirigia ao norte da Península, nomeadamente a Santiago de Compostela. O cruzeiro testemunha, também, um tipo característico de religiosidade de caminhos, uma vez que, na sua aparente ingenuidade, simboliza um dos valores religiosos mais importantes da vivência religiosa exterior da época barroca.
Quando o espaço abrangente se urbanizou, com a construção de habitações e a abertura dos eixos viários que confluem para a Praça do Exército Libertador, o cruzeiro foi rodeado e protegido por uma estrutura quadrangular, com faces azulejadas e portão de acesso ao recinto.
No ano de 1993 o Cruzeiro do Senhor do Padrão foi classificado como de interesse municipal, e em 2000 a autarquia portuense restaurou a estrutura e devolveu-lhe a feição primitiva, colocando na base da mesma uma placa comemorativa que assinala a intervenção.”
Cortesia Catarina Oliveira (DGPC)



Rua de Oliveira Monteiro engalanada para os festejos do Senhor do Padrão e dos Aflitos em 1996


Desde há longa data, no terceiro fim-de-semana de Julho, realizam-se os tradicionais festejos em honra do senhor do Padrão e dos Aflitos.
No século XIX, os romeiros que demandavam a festa da Senhora da Hora, tomavam o caminho que seguia pela Rua de Cedofeita, passando pelo Ribeirinho (onde se juntavam os mirones a assistir à passagem, sentados em cadeirinhas, algumas de aluguer) para chegarem ao Carvalhido, pela Rua 9 de Julho. Em seguida, tomavam a  estrada que ligava a Francos e rumavam à ponte medieval que atravessava (e, continua a atravessar) a já formada Ribeira da Granja, em Ramalde do Meio. Seguia-se o Viso e chegavam às Sete Bicas.
Este caminho era também usado para os romeiros demandarem as festas do Senhor de Matosinhos, mas, neste caso, existia uma outra alternativa, pela qual, após ser alcançada a Rua de Serralves, próximo à igreja de Lordelo do Ouro, depois de percorrida toda ela, se chegava a Matosinhos pela Rua da Vilarinha.
Os arraiais duravam três dias e pelo caminho os romeiros tinham outros dois, de ensaio, à passagem – Ramada Alta e Carvalhido – tendo à disposição o vinho verde tirado das pipas, o pão-de-ló (roscas, cavacas, “bolinhos de Penafiel”, “doces de gema”) e o afamado “doce de Paranhos”. O peixe frito e as espetadas acompanhavam sempre o verdasco e as vendedeiras apresentavam para venda, em cestos, a fruta da ocasião.
Os romeiros faziam o percurso para a festa da Senhora da Hora (que ocorre nos nossos dias, 40 dias após a Páscoa) e para a festa do Senhor de Matosinhos (que ocorre, hoje, 52 dias após a Páscoa), tendo à sua disposição arraiais de passagem na Ramada Alta e nos largos do Carvalhido e da Prelada.


“Foi ontem o primeiro dia da romagem ao Senhor de Matosinhos, que o dia favoreceu. Em todo o caminho, desde o princípio da Rua de Cedofeita, o povo era imenso. Nos três arraiais do largo da Prelada, largo do Carvalhido e Ramada Alta era custoso fazer caminho pelo meio de gente que se apinhava naqueles pontos, num tumultar incessante.
No sítio do Ribeirinho estacionavam, segundo o costume, muitas famílias sentadas em fileiras de cadeiras, colocadas nas duas orlas do caminho. Caleches, carros, carruagens, etc, até os clássicos carroções, tudo andou em bolandas.”
In jornal “O Comércio do Porto”, 20 de Maio de 1861 – 2ª Feira



“Ontem de tarde houve arraial no Carvalhido e Ramada Alta aonde concorreu muita gente da cidade, houve abundância de peixe frito, espetadas e doce de Paranhos, que tudo teve muito consumo. A rua de Cedofeita esteve brilhante.”
In “Periódico dos Pobres do Porto”, 12 de Maio de 1856 – 2ª Feira

“Ontem foi o arraial da Hora no Carvalhido. Foi grande a concorrência. Porém, a meio da tarde, principiou um diminuto orvalho, que fez com que todo o povo se retirasse, ficando só no arraial as pipas com a zurrapa chamada vinho, as fritadeiras e doceiras de Paranhos.
As cadeiras que se costumam pôr na Ramada Alta e no Reguinho, aos proprietários não valeu a pena retirá-las de casa porque o receio da chuva fez uma completa retirada.”
In Jornal “O Direito”, de 14 de Maio de 1858




“De tarde desde a rua de Cedofeita ao Carvalhido, movia-se, num continuado fluxo e refluxo uma multidão de gente.
Na fonte dos Ablativos estacionavam, na forma do costume, numerosas famílias.
Na Ramada Alta e largo do Carvalhido houve também os costumados arraiais subalternos.”
In jornal “O Comércio do Porto”, 15 de Maio de 1863 – 6ª Feira



Sobre a festa da Senhora da Hora, de que nos fala os dois artigos jornalísticos seguintes, ela realizava-se na capela da Senhora da Hora, no sítio da Mãe d’Água, junto da fonte das Sete Bicas.
 
 
“Teve ontem lugar, próximo do Padrão da Légua, a festa anual de Nossa Senhora da Hora.
Foi grande o número de romeiros que ontem de tarde peregrinava pelas ruas que conduzem àquele arrabalde.
Houve muita animação e não pouco peixe frito.”
In “O Jornal do Porto, 15 de Maio de 1863 – 6ª Feira
 
 
 
“No passado domingo, 20 do corrente, realisou-se o ultimo dia da festa; foi grande a afluência de forasteiros que excedeu a espectativa, em virtude do estado do tempo não ser muito convidativo; á noitinha, desabou um forte aguaceiro que pôz tudo em debandada, e talvez fôsse um bom calmante para os cacos esquentados pela divina efervescencia bachante.
Durante o dia, tocou a banda de Ramalde, que não desmereceu os bons créditos de que gosa, sob a escrupulosa regência do sr. Amorim”.
In semanário “O Sino” de 27 de Maio de 1917




A actual Rua do Carvalhido faz fronteira entre as freguesias de Ramalde e Paranhos e herdou este topónimo pelo facto de, nesse lugar, ter existido uma grande concentração de soutos de carvalheiras. O Carvalhido aparece já designado por “Sovereyros munitos” (Sobreiros Resguardados), no documento de 1138, quando D. Afonso Henriques procedeu à ampliação e confirmação do couto do Porto.
Por deliberação da Câmara Municipal do Porto, em 1835, passou este local a designar-se por Praça do Exército Libertador, em homenagem às tropas liberais, chefiadas por D. Pedro IV.
Esta artéria provém do antigo troço da velha Estrada dos Nove Irmãos (séc. XVI) que partia de Cedofeita pela actual Rua do Barão de Forrester e de Oliveira Monteiro, levando os viajantes até à mata do Carvalhido, depois pelo Monte dos Burgos para Vila do Conde, seguindo até Valença e, daí, para a Galiza.
A pouca distância do cruzeiro encontramos aquela que foi a primeira igreja paroquial do Carvalhido até à criação da Paróquia do Coração de Jesus do Carvalhido, por provisão do bispo do Porto, D. António Augusto de Castro Meireles, de 24 de Dezembro de 1940.
A referida igreja, localizada no extremo Norte da Praça do Exército Libertador, é um edifício do século XVIII, referenciada pela primeira vez, em 1760, num registo paroquial de Santo Ildefonso. O edifício encontra-se no cruzamento das ruas da Natária, do Carvalhido e da Prelada com a Praça do Exército Libertador e pertencia, desde 1886, à Confraria de Nossa Senhora da Conceição.


“No dia 10 do corrente mês terá lugar, na capela de Nossa Senhora da Conceição, sita na Praça do Exército Libertador, antes do Carvalhido, a grande festividade ao milagroso mártir S. Paio.
Na véspera à noite haverá um brilhante fogo-de-artifício.
Durante a tarde e à noite, até acabar o fogo, uma das melhores bandas de música executará lindas e escolhidas composições musicais.
Pelas 5 horas da tarde sairá uma majestosa procissão, levando 5 andores com as imagens: Senhora do Parto, Senhora da Conceição, Senhor dos Aflictos, Santo António e S. Paio, bem como muitos anjinhos.
On trânsito da referida procissão será Praça do Exército Libertador,rua Nova do Carvalhido, rua das Valas, antigo largo da Ramada Alta, dá a volta à capela situada no referido largo, segue pela rua 9 de Julho e recolhe à capela.”
In jornal “O Primeiro de Janeiro”, 1 de Setembro de 1871 – 6ª Feira



Igreja do Carvalhido c. 1950 – Ed. Teófilo Rego


“Posteriormente à sua construção, a fachada granítica da igreja foi valorizada com uma integração harmoniosa dos azulejos, cujos painéis são da autoria do pintor cerâmico F. L. Pereira, conforme se pode confirmar pelas marcas manuais, com indicação das iniciais e o último nome do pintor, por extenso. Francisco Luís Pereira (1891-1961) foi um artista que trabalhou na Fábrica da Vista Alegre e, mais tarde, na Fábrica do Outeiro (Águeda), onde foram produzidas, em 1944, estas belíssimas peças de valor artístico considerável.”
Cortesia de Maximina Girão Ribeiro


O espaço ocupado actualmente por aquele cruzeiro, deo Senhor do Padrão, foi alvo de alguns melhoramentos como consequência da abertura da Rua da Constituição entre a Rua de Serpa Pinto e a Rua de Oliveira Monteiro, ocorrida já nos anos 70 do século passado, intervenção que descontinuou a Rua 9 de Julho.
Muitos de nós ainda se lembrarão que a área entre estas duas ruas era uma imensidão de barracas, uma gigantesca “ilha”.
Voltando à Ramada Alta na área que lhe é afecta destaca-se no seu meio a capela do Senhor do Calvário ou capela de Nossa Senhora das Dores, em cujo retábulo-mor, nos mostra uma pintura que representa o Santíssimo Sacramento no ostensório, adorado por anjos e foi executada por Maria Margarida Costa e, na sala das sessões, conserva-se a pintura de Nossa Senhora da Conceição, de Henrique José da Silva, de 1809.
Entre a capela-mor e a nave, na fachada Sul, destaca-se um oratório de reduzidas dimensões invocando a Virgem do Carmo, com tecto abobadado.


“Na capela da Ramada Alta festeja-se no Domingo, 31 de Maio, o Senhor do Calvário.
Haverá arraial e muita gente costuma concorrer a ele, como é costume, para ver passar os romeiros que vão e voltam pela estrada de cima de Matosinhos.
Hoje à noite há fogo-de-artifício.”
In “Gazeta Portuense”, 30 de Maio de 1868 - Sábado

Como se apercebe pela notícia anterior, o Senhor do Calvário, na Ramada Alta, era festejado em plena romagem dos devotos ao Senhor de Matosinhos, cujo dia máximo dos festejos, naquele ano, foi a 2 de Junho.


“Verifica-se amanhã, na capela da Ramada Alta, a festa da Senhora das Dores.
De tarde sairá em procissão a imagem, percorrendo as ruas 9 de Julho, largo do Carvalhido, Estrada Nova, Boavista e Ribeirinho.”
In “Jornal do Porto”, 9 de Agosto de 1873 - Sábado


Em 1903 a igreja cedeu parte dos seus terrenos à Câmara, para que esta pudesse proceder ao alargamento da Rua de Serpa Pinto.



Planta usada na abertura da Rua de Serpa Pinto de meados do século XIX – Fonte: gisaweb


Na planta acima (porção da original), a Rua de Serpa Pinto, de ligação ao matadouro municipal, ainda não existe, bem como as ruas de Brito Capelo e Egas Moniz.
Vê-se que o caminho identificado com o número 5 sofre uma bifurcação que segue em direcção ao Monte Pedral atravessando terrenos que serão de implantação do futuro quartel.
A Rua de Serpa Pinto, naquele troço da planta, seria traçada no rastro colorido identificado com o número 2, com trajecto ABCDEFG (visível) e HIKLMNO na restante porção de planta (não publicada) acabando na letra P, que identificava o matadouro.
Identificada com o nº 5 era o “Caminho para o Matadouro”, hoje apenas um troço, que corresponde à Rua de Marracuene.



Planta actual correspondente à área anterior aí observável (1850) – Fonte: Google maps


Nas duas plantas anteriores tenta fazer-se a respectiva correspondência de arruamentos.

Legenda:

1. Ramada Alta
2. Rua de Serpa Pinto
3. Rua dos Burgães
4. Rua de Marques Marinho (Travessa da Bouça)
5. Rua de Marracuene
6. Rua da Bouça


Planta de Telles Ferreira de 1892 da Ramada Alta (mantêm-se as identificações comparativas anteriores) – Fonte: gisaweb


Aspecto da Rua de Serpa Pinto em 1939




Ramada Alta nos anos 70


Mesma perspectiva actual da foto anterior


Pela esquerda das fotos segue a Rua Nossa Senhora de Fátima e, em frente, a Rua 9 de Julho.



Casa do Barão de Forrester na Ramada Alta


Pela direita da foto anterior segue a Rua do Barão de Forrester.


Mesma perspectiva actual da foto anterior – Fonte: Google maps



Capela do Senhor do Calvário e as 2 tílias de sentinela - Fonte: gisaweb



Capela do Senhor do Calvário com as suas duas novas sentinelas – Fonte: Google maps


“Sempre que passo à Ramada Alta, nas minhas idas ao Porto, fico encantado com aquele recanto de província, miraculosamente conciliado com a passagem de tanto automóvel. Digo entre mim: qualquer dia, desaparecem a capela e aquelas duas árvores, aquelas duas tílias que lhe fazem sentinela. O largo, que ainda se chama largo e que até se chama da Ramada Alta, nome antigo, de arredor de cidade, morrerá ou se crismará em praceta, sem capela e sem árvores ou só com dois palitos, floridos de cimento, como homenagem à natureza extinta. É preciso que a Ramada Alta mude de nome, que não cante ali nenhum pássaro, nem ali se fabrique, em folha natural, o velho oxigénio, um anacronismo, e que o ar se polua e engrosse com as emanações de tanto automóvel. Só assim o larguinho, com o nome de praceta, merecerá o bilhete oficial, que o acredite como coisa citadina. (...)”
Fonte: João de Araújo Correia (Canelas, Peso da Régua, 1 de Jan. de 1899 - Peso da Régua, 31 de Dez. de 1985) em Pó Levantado (1974)


O Carro Eléctrico nº 361 (Brill/STCP 28 - Pipis) da série de 350 a 373


De notar o abrigo com o seu quiosque anexo, característico daqueles tempos, e um eléctrico conhecido devido à sua elegância, por “pipi”, que tem por destino a Rotunda da Boavista.

segunda-feira, 11 de março de 2019

25.37 Os linguadinhos do “Garrafão”


No dia 11 de Setembro de 1993 (um Sábado cinzento e triste), passava um pouco das 21 horas, quando o último Eléctrico da linha 19, com o nº 223, começou a percorrer a Rua Brito Capelo (ou a Rua dos Eléctricos, como era também conhecida), conduzido por José de Sousa, tendo como revisor, António Mendes Gonçalves.
O eléctrico referido, com o nº de renumeração 223, era um Brill 28, com plataforma salão.
Nos últimos anos em circulação, os eléctricos daquela série, eram os veículos em maior número.
Esta linha fazia o serviço entre a Boavista e Matosinhos.



Eléctrico da linha nº “19” junto ao Mercado de Matosinhos



O Eléctrico da foto anterior, do qual não se divisa o nº de renumeração, deverá ser um Brill 28, com plataforma salão, da mesma série do que efectuou o último percurso em Matosinhos.
Também naquele dia, terminou a linha nº “1”, entre Matosinhos (Mercado) e o Infante. Aliás, nem sequer chegou a circular todo o dia, naquele 11 de Setembro.


Eléctrico (“Belga”) na linha nº 1 deslizando c.1970 na Rua Brito Capelo e passando junto da Rua Tomaz Ribeiro - Cortesia Vítor Monteiro (FB)


Eléctrico na linha nº 1 (“Belga”) deslizando em 1979 na Rua Brito Capelo


Acontece que, devido à ampliação do porto de Leixões, os eléctricos já tinham deixado de circular, entre Matosinhos e Leça da Palmeira, em Março de 1960, quando tinham chegado àquelas localidades, em 1897 e 1898, respectivamente.
Este último trajecto começou por ser feito através da Ponte do Eléctrico que se situava no local onde hoje está a Ponte Móvel.
Aquela ponte foi levantada em 1887 e por ela passaram, primeiro, os carros “americanos”.


Ponte do Eléctrico entre Matosinhos e Leça da Palmeira


A Doca nº 1 (inaugurada em Julho de 1940) com o Mercado de Matosinhos já construído


Na foto anterior, à esquerda, já é visível o Mercado de Matosinhos, inaugurado em 1952, pelo que a foto será posterior a esta data.
A partir do levantamento da Doca nº 1, a ligação entre as margens do rio Leça por “Eléctrico”, passou a acontecer por terreno firme, adjacente ao limite a nascente da referida doca, o que levou à demolição da velha Ponte do Eléctrico.
O “Eléctrico” pôde, assim, continuar a servir Leça da Palmeira.


Doca nº 1 já construída onde ainda não é visível o Mercado de Matosinhos que seria levantado à direita (próximo términos da doca)


Perspectiva da praia de Leça da Palmeira, captada no local do término das linhas do elétrico, em 1952 – Cortesia de Vítor Monteiro (FB - "Imagens Antigas do Concelho de Matosinhos")


Término das linhas do elétrico com perspectiva inversa da foto anterior c. 1960


Na foto acima é possível observar o local onde terminava a viagem dos eléctricos que demandavam Leça da Palmeira. À esquerda, o prédio do “Hotel Golfinho” que ardeu e já não existe, e a meio vê-se o prédio que seria ocupado alguns poucos anos depois pelo restaurante “Garrafão”.


Perspectiva actual da foto anterior com o prédio que foi ocupado pelo restaurante novamente devolvido apenas a residência – Fonte: Google maps


Restaurante Garrafão - Fonte: Américo de Castro Freitas


Restaurante Garrafão


Foi o “Garrafão” um dos mais icónicos restaurantes de Leça da Palmeira, instalado num prédio do século XIX e que ficou célebre pelos seus linguadinhos fritos, panados com ovo e pão ralado, acompanhados por açorda de marisco.
No início da década de 60 do século XX o restaurante ocupou instalações perto da “Capela do Ruas”, ou Capela do Sagrado Coração de Jesus” funcionando ainda como mercearia, com João Rufino Pinto e esposa, Maria Amélia Pinto, ao leme do negócio.


Capela do Sagrado Coração de Jesus ou Capela do Ruas na Rua António Nobre em Leça da Palmeira


Depois, as instalações, em Novembro de 1963, passaram para as que são apresentadas nas fotos vertentes, com vista para a praia e adjacente à Avenida da Liberdade – um prédio de r/c e 1º andar.
No r/c funcionava a cozinha, a despensa, a garrafeira e o restaurante.
O 1º andar servia de habitação.
Entre 1978/80 ostentou a estrela Michelin, tendo encerrado definitivamente após o falecimento da proprietária há cerca de dez anos.
Voltando ao tema que vínhamos desenvolvendo, diga-se que, a partir de Março de 1960, para possibilitar a construção da Doca nº 2, os eléctricos deixaram, para sempre, de chegar a Leça da Palmeira e, a partir daquele dia 11 de Setembro de 1993, abandonariam o Concelho de Matosinhos para sempre, ao fim de mais de um século de relevantes serviços prestados às populações, depois do “Americano” e da “Máquina” o terem também feito.
No caso do “Eléctrico”, ele foi o substituto, de facto, do transporte conhecido por “Americano” que tinha chegado a Matosinhos, em 1873.
Ambos deslizavam em carris e percorriam o mesmo trajecto ao longo da Rua Brito Capelo.


Carro americano no Porto na Praça D. Pedro – Ed. Aurélio da Paz dos Reis


Sobre o transporte conhecido por “Americano” é o texto que se segue, com alguns excertos de «A Formosa Lusitânia», da autoria de Lady Jackson, obra que seria traduzida por Camilo Castelo Branco e no qual a escritora dá conta das peripécias vividas numa viagem de “americano” a Matosinhos.

“Em 1873 veio ao Porto Lady Jackson, uma inglesa bastante atenta a tudo, e que não deixa de experimentar os carros “americanos”: «São extremamente cómodos; percorrem as duas milhas que medeiam entre o Porto e este Arrabalde (a Foz) quase no terço do tempo que leva ordinariamente uma carruagem de aluguer. O preço da passagem é seis vinténs. Os carros são espaçosos e arejados, sem sol nem poeira: toda a gente os frequenta. Começaram a circular no ano passado, segundo me dizem, e têm tido grande êxito.
Alguns destes americanos param na Rua dos Ingleses (actual Infante D. Henrique), na parte mais baixa da cidade, enquanto que outros levam os passageiros «acima», ao topo do monte, perto da Misericórdia.
Vale bastante a pena de seguir para este último ponto; a rampa é tão forte que duas ou três vezes vi senhoras apearem e preferirem caminhar ao sol e ao pó, com medo de que os carros se despenhassem. Mas tal acidente nunca se deu» …
Lady Jackson refere-se à Rua da Restauração, por onde subia o “americano” desde o cruzamento de Massarelos até ao Jardim da Cordoaria, “onde uma nuvem de poeira” avisa que o «americano» está a chegar.
A jornada de Matosinhos até à parte superior da cidade termina à entrada deste jardim.
Espera-o muita gente. Vem completamente cheio, mas tão depressa descarrega a sua carregação de banhistas da Foz, que se enche de imediato e parte» …
… «A estrada da Foz segue junto ao rio e na maior parte à sombra de altas e frondosas árvores».
«É uma estrada cheia de vida; assim tivesse menos pó, que forma sobre ela uma nuvem contínua, em consequência do trânsito constante dos carros de bois, passando e repassando, de cavalgaduras, de pequenos carros de cortinas com gente da província, ou banhistas que não chegaram a tempo ou não acharam lugar nos «americanos».
De dez em dez minutos, ou de quarto em quarto de hora, passa um destes “americanos” com grande rapidez, correndo docemente pelos rails».
Não se esquece de nos dizer que em Massarelos se juntam «mais duas guias» para os carros que vão “acima ”- refere-se ao reforço de mais uma parelha de mulas – eram os «sotas» usados em todas as ruas inclinadas.
Depois da Foz, «o americano que conduz a primeira carrada de banhistas, segue depois para aquela formosa vila, ou povoações gémeas (Matosinhos e Leça) que distam da Foz milha e meia»
… É de uma beleza contínua quanto se avista em todo o comprimento da estrada» …
… O estrídulo tinir da campainha avisa os habitantes de Leça e Matosinhos que o «americano» vai largar. Regresso no mesmo à Foz, sigo até à Cordoaria e retrocedo; deste modo passeio todas as manhãs oito ou nove milhas, que se andam em hora e meia, por dois shillings-de um cabo a outro, percorrendo o cenário sempre novo e sempre encantador do Majestoso Douro e das alpestres ribas para além da Foz» …
… Algumas vezes cheguei ao carro no momento em que partia, já todo ocupado.
O condutor abria a porta e dizia: «uma senhora quer entrar» -imediatamente, erguiam-se 3 ou 4 cavalheiros, e eu sentava-me no lugar do sujeito mais próximo, o qual, cortejando-me, saía para fora. Um inglês decerto não se levantaria para que uma mulher se sentasse no seu lugar; e provavelmente, quando as portuguesas, lá no futuro, se emanciparem…»”
Fonte: leca-palmeira.com


Por sua vez, a “Máquina”, era um transporte que usava a energia do vapor (era um pequeno comboio) que circulava pela Rua de Roberto Ivens e partia da Boavista, passando por Cadouços e que chegou a Matosinhos em 1882.


Rua Juncal de Baixo (Rua Roberto Ivens) em 1905 com os trilhos da “Máquina” bem visíveis – Ed. Alberto Ferreira – Praça da Batalha


Perspectiva actual da foto anterior - Fonte: Google maps



Bilhete de 10 cêntimos de ida e volta na “Máquina” da Boavista a Matosinhos – Fonte: Os Velhos Eléctricos do Porto


Fora ter sido servida pelos eléctricos, Leça da Palmeira haveria de ser servida também por um outro comboio, que não aquela “Máquina”.


Comboio e “Eléctrico” cruzando-se em Leça da Palmeira - Fonte: Os Velhos Elétricos do Porto


A foto anterior é de um local que dista cerca de 50 metros do Forte de Nossa Senhora das Neves que ficará para a esquerda do enquadramento.
A ligação ferroviária a Leça da Palmeira seria, assim, resultante de um aproveitamento duma via de um outro transporte ferroviário, que tinha sido usado antes, para a movimentação da pedra para construção dos molhes do porto de Leixões.
Para isso, foi feita a chamada Ponte de Pedra ou Ponte do Comboio, mesmo na foz do antigo rio Leça.


Ponte do Comboio e venda de sardinha em Matosinhos


Acabada a construção do Porto de Abrigo, a via daria então lugar ao Ramal de Matosinhos ou Linha de S. Gens, servindo o transporte de pessoas que no seu trajecto, em Matosinhos, a partir do Senhor do Padrão, percorria o que é hoje a Rua de Heróis de França,  que antes da construção dos molhes, era uma frente de mar.
Como curiosidade, aponta-se que o “Eléctrico” e a “Máquina” no seus percursos para Matosinhos se cruzavam para os lados do Castelo do Queijo.
A situação é explicada mais abaixo, na planta da área em causa.


Trajectos da “Máquina” e do “Eléctrico”

Legenda:

- O percurso a azul era executado pela Máquina rolando em Matosinhos pela Rua Roberto Ivens, e o assinalado a preto pelo Eléctrico e, antes deste, pelo “americano”, servindo-se da Rua Brito Capelo.
- Entre os pontos 5 e 1 a máquina rolava na Rua de Gondarém e a partir daí (aproximadamente entre o chalet do Andresen, situado na estrada de Carreiros e o chalet do engenheiro António da Silva, situado na Rua de Gondarém) até ao Castelo do Queijo, inflectia na direcção do mar, cruzando-se com a linha do eléctrico um pouco depois de passar à porta do chalet de José Augusto Dias.
- Por sua vez o “Eléctrico” ou o “americano” fazia o percurso na estrada de Carreiros (Avenida Brasil) aproximando-se do Castelo do Queijo pela Rua do Castelo (Avenida de Montevideu).
- O ponto 3 dá a localização aproximada da Capela de Santo Amaro


Cruzamento da linha a vapor (à esquerda) com a do eléctrico (à direita) ao fundo estará o Castelo do Queijo


Deve referir-se que o traçado da Rua de Gondarém, à época, não confluía ainda com a Avenida da Boavista, pois, esta só seria aberta, entre a fonte da Moura e a frente de mar, no início do século XX.


O “Eléctrico”, nº 35, vindo de Matosinhos, passando c. 1900, junto do palacete Andresen na Estrada de Carreiros


Os “Eléctricos” do modelo da foto acima foram dos primeiros a aparecer em circulação.
Começaram como carros “Americanos” sendo posteriormente  motorizados, em finais do século XIX.
Tinham 18 lugares sentados e bancos de ripas de madeira e os passageiros viajavam de costas para as janelas devido à disposição longitudinal dos bancos (Modelo “Risca ao meio”).
O veículo idêntico, do mesmo modelo da foto anterior, com o nº 22, foi recuperado e hoje está no museu dos STCP.


No Porto restam apenas três linhas de eléctricos: 

O “18”, entre o Carmo e Massarelos;
O “1” que liga o Infante ao Passeio Alegre;
E o “22” que parte do Carmo, terminando na Rua Augusto Rosa (Batalha), junto da entrada para o Funicular dos Guindais.
Hoje em dia, muitos continuam a defender um regresso do eléctrico a Matosinhos, tendo por destino final o Senhor do Padrão e passando a servir, assim, o terminal de cruzeiros onde chegam anualmente c. 100.000 visitantes.
Aquela “Linha 18”, primitivamente, ligava a Praça da Liberdade a Matosinhos.
Um primeiro troço desde a Praça da Liberdade à Boavista era realizado por eléctrico e num segundo, da Boavista a Matosinhos entrava em acção a “Máquina” com passagem por Cadouços. Encerrou em 1914, para sempre.
Importa dizer que quando foi introduzida a tracção a vapor entre a Boavista e a Foz, em 1878, durante os primeiros anos, houve uma operação mista com tracção a vapor durante o período de Verão e tracção animal durante o período de Inverno e na noite durante o verão.
Em 1882 a linha foi estendida da Foz (Cadouços), via Rua de Gondarém, para Mattosinhos, que passaria a escrever-se só com um “t” em 1909 mas, curiosamente, ganhou o “z” (Matozinhos).