Houve, desde há séculos, locais onde os portuenses se passeavam e passavam as suas horas de ócio, seja no Cimo do Muro, na Ribeira, junto à Fonte da Natividade, ao Jardim da Cordoaria, às Fontainhas, ao Poço das Patas, ao Largo da Aguardente, ao Jardim da Arca d'Água, ao Parque da Cidade, etc.
Em O Tripeiro, Série V, Ano X encontramos uma interessante descrição,
de autoria de Amadeu Cunha, sobre costumes da juventude dos princípios do séc.
XX:
“Extensa, estreita,
a subir até ao campo, algumas vezes a rua do Almada fora aproveitada para
“feeries” de luminárias sanjoaninas. Janelava-se bastante ao longo dela, em
matéria de namorio. Era a época do pigarro e do lenço branco passado pelas vias
respiratórias como senhas de enamoramento… Até à Picaria era toda colmeia
activa. Daí para cima a residêncialidade desacompanhava-se de lojas, pouso de
famílias ditas de tratamento… Naquele curto espaço de rua esses ádvenas, ao
maior número dos quais mal pungia o buço, suscitaram estranheza, desconfiança…
Tratava-se desinquietar as meninas do sítio, em idade de namorar. Habitualmente
às tardes, após o jantar, aquelas varandas engraçavam-se da animação delas, que
espaireciam, se distraíam, metiam a riso, segregando uma às outras, para os
lados. Posto que a rua, rebarbativamente burguesa, andasse, por uma variedade
de episódios, em efabulações camilianas e até nas próprias realidades
biográficas do romancista (Camilo e Ana Plácido habitaram esta rua) todo
o desretraímento entre elas e os rapazes se reduzia, unicamente, a simples,
risonhos e a recíprocos brincos de expressão amável sem qualquer trejeito a
mais”.
Sobre o Jardim de S. Lázaro o historiador Dr. Artur de Magalhães Basto
descreve assim a vida deste jardim em meados do séc. XIX:
“ Em dia de música, S. Lázaro é o ponto de reunião elegante.
Quase se não cabe lá, tal é a multidão que ali passeia com ar endomingado e
solene. Há bancos por toda a parte, mas os que primeiro se enchem são os que
estão em volta do pequeno lago central. Vêem-se sentadas meninas (…)
flanqueadas pelo terrível papá, que nestes momentos perde um pouco da sua
costumada ferocidade (…) e que por isso, não repara nos leões namoradores, que
lá ao longe, confundidos na turba, ou meio encobertos pelo arvoredo, lhes
desinquietam as filhas. Enquanto a música dura, eles e elas fingindo-se
absortos na contemplação inocente do jacto de água que repuxa o lago, trocam á
sorrelfa olhares incendiários de mistura com suspiros e ais tirados do âmago do
peito. O Jardim de S. Lázaro por 1850 era isto: um campo de batalhas de amor,
onde não corria sangue, mas onde por vezes não faltavam lágrimas.”
Este belo jardim deixou de ser frequentado pela gente grada da cidade
quando, em 1865, se abriram os novos jardins do Palácio de Cristal. Passou a
ser frequentado por soldados, sopeiras, empregados de comércio etc.
Sobre ainda o jardim de S. Lázaro, escreve Germano Silva:
“Aí por 1850, meados
do século XIX, andava em voga no Porto uma cantiga que era entoada,
especialmente, pelas moças dos arrabaldes da cidade que cá vinham vender os
produtos das suas terras de origem: as hortaliças de Gondomar; a boroa de
Avintes; os biscoitos e as regueifas de Valongo; as frutas da Maia. A cantilena
era esta: «Quem me dera ser do Porto/ou no Porto ter alguém;/ quem me dera ter
a fama/que as moças do Porto têm».
E que fama seria
aquela, que causava engulhos às raparigas arrabaldinas? É fácil de imaginar.
Naqueles recuados tempos o romantismo batia em cheio, aí pelo Porto.
Mas o romantismo não
pode ser entendido, somente, na sua fase amoruda, estritamente sentimental, do
«Vai alta a lua na mansão da morte/já meia-noite com vagar soou», de Soares de
Passos, que as meninas da Rua do Almada recitavam com acompanhamento ao piano.
O Romantismo foi,
também, um movimento cultural ou literário, se quiserem, que apareceu no Porto
na sequência da evolução social da própria sociedade portuense, nomeadamente a
da alta burguesia mercantil.
O desenvolvimento do
comércio, nomeadamente o do vinho, e o consequente crescimento da economia,
geraram no Porto uma sólida classe média em cujo seio apareceu e se desenvolveu
o romantismo que, sem se despegar da veia amoruda, foi também um movimento de
libertação, do virar de uma página; do fechar da porta às ideias antigas e
anquilosadas do passado; e da abertura dos portões aos novos ventos que surgiam
de uma Europa civilizada e em permanente mutação.
Os conceitos antigos
eram contestados. Por exemplo: os conceitos de casamento em que, especialmente
no que às raparigas diz respeito, predominava a vontade dos pais. Muitas
canseiras deram as moças casadoiras aos progenitores. Houve raptos, fugas de
casa e o abandono do lar doméstico tornaram-se coisas o dia-a-dia.
Estas peripécias, e
outras do género, é que geraram a tal fama que as moças do Porto tinham, como
referia a cantiga.
Mas foi a faceta
amoruda aquela que mais marcou o romantismo portuense. Que aqui, na cidade,
teve um palco privilegiado; o Jardim de S. Lázaro.
Construído logo a seguir
ao Cerco do Porto, o Jardim de S. Lázaro foi, até ao ajardinamento do espaço da
Cordoaria, por 1860, o único recinto da cidade onde as famílias podiam ir
passear e ouvir música, tranquilamente. Depois a Cordoaria destronou S. Lázaro.
Como, anos mais tarde, o Palácio de Cristal significaria a morte da Cordoaria.
E ao virar do século XIX para o seguinte, a Foz e os banhos no mar iriam fazer
esquecer o Palácio de Cristal.
Em S. Lázaro, era
frequente ver-se «um ou outro amorudo imerso na contemplação do repuxo do lago,
enquanto os seus pensamentos voavam para a mulher amada».
Era o tempo em que os
brasileiros de torna-viagem e os morgados de Riba - Douro acorriam a S. Lázaro,
de onde lançavam olhares langorosos às meninas do Recolhimento de Nossa Senhora
da Esperança, que pudicamente se escondiam atrás dos cortinados das janelas.
A desfaçatez dos
frequentadores do jardim era tanta, que a Santa Casa da Misericórdia do Porto,
que administrava, como ainda hoje acontece, aquele recolhimento, ordenou que
«em todas as janelas da frente do Recolhimento, entre as mesmas janelas e a
grade de ferro, e somente na frente da meia vidraça inferior, se mandasse
colocar rótulas em forma de persianas, firmes e pintadas de verde, de forma, a
que, não tolha a vista de dentro para fora ou seja para a rua e para o jardim,
mas que ao mesmo tempo não deixe distinguir de fora a pessoa que, da parte de
dentro, estiver à janela».
Há aqui um pormenor
que importa referir, para melhor se compreender a medida da Santa Casa da
Misericórdia do Porto; a Avenida de Rodrigues de Freitas que hoje corre
paralela ao colégio ainda não existia. Antes do seu alargamento, o espaço do
jardim ficava muito mais perto das janelas do Recolhimento.
À primeira vista, pode
parecer que a Santa Casa acabava de tomar uma medida certeira e pacífica.
Engana-se quem assim pensar. Houve protestos e o caso suscitou, inclusivamente,
a discussão pública nos jornais. Num deles, escreveu-se isto: «a Santa Casa, ou
quem quer que é, fica responsável perante Deus se algum pobre diabo se for
deitar às dezoito braças, assim que estiver farto de contemplar o belo verde-couve
das gelosias em vez da cara da sua Dulcineia».
E havia os que
proclamavam que aqueles que diziam mal da iniciativa da Santa Casa «eram os que
viam fugir a esperança de continuar com as suas devassidões e não poderem
verificar o efeito que faziam nas internadas os seus requebros, os seus acenos
e os seus galanteios».
A todos respondia a
Santa Casa dizendo que «aquilo, o Recolhimento, era uma casa de educação e não
uma escola de namoro».
In Jornal de Notícias
No século XIX, principalmente no inverno, as saídas nocturnas eram escassas
e as pessoas reuniam-se em serões e festas dentro de portas.
Cena de um serão de família
Horácio Marçal em O Tripeiro, Número Especial de 1974, e referente ao séc. XIX, informa-nos que:
“De Inverno, como
não havia festas, faziam-se visitas a pessoas amigas ou aparentadas, por via de
regra, á noite. Aí pelas 10 horas, servia-se o chá, que os visitados, com
simulada modéstia, designavam por pinga de água morna. Juntamente, apareciam as
fatias de pão com manteiga, os biscoitos de argolinha, ladrilhos de marmelada e
queijadas do mosteiro de S. Bento de Ave-Maria, iguarias, estas, dispostas na
bandeja com determinado requinte. Se algum dos convidados não apreciava chá (o
que raras vezes acontecia), serviam-lhe então uma pinga do choco, isto é, um
cálice de vinho fino. No final do delicado repasto, vulgarmente, jogava-se o
loto ou quino a feijões. O jogo do quino era divertidíssimo, não tanto pela
natureza, como pelas facécias que os circunstantes lhe interpunham ao
cantarolarem os números. Se não havia jogatina, havia musicata ao piano pelas
meninas ou pela dona da casa, pois nesses tempos já passados, era chique e de
boa distinção saber dedilhar o teclado de um piano”.
Alexandre Herculano viveu no Porto cerca de um ano, tendo acompanhado D. Pedro IV na sua entrada na cidade em 1832, com 22 anos. Foi-lhe dada a incumbência organizar a Biblioteca Municipal. Em carta, escrita em 1862 a uma senhora do Porto, afirma:
Jogo do Loto ou Quino
Aqueles românticos serões terminavam, ordinariamente, pela seguinte
frase atirada da porta da sala à multidão amarroada “está lá em baixo o
criado das senhoras com o saco de chales e o lampião”.
“As soirées chamavam-se súcias, e as melhores eram as da Feitoria e as da Filarmónica. Nas casas particulares convidava-se para beber uma xícara de água morna. Jogava-se o quino marcado a feijões, obrigado a anexins e a jocosidades apropriadas ao número de cada bola que se tirava do saco. Um conviva idóneo incumbia-se da missão de espevitar as velas. Menores de dez anos, inocentes mas circunspectos, serviam o açúcar e o leite. E ao centro da grande bandeja da doçaria e das fatias de pão com manteiga um cão de água em prata sobressaia ouriçado de palitos. Às onze horas um fâmulo dizia: — Chegou o criado das senhoras Viterbas com o saco dos xailes e os guarda-chuvas. E a companhia dispersava pelas ruas cavas e silenciosas, em magotes de pessoas atabafadas de agasalhos, precedidas de um vulto empunhando o clássico e monumental lampião, com duas velas, de acompanhar famílias”.
Ramalho Ortigão, In Farpas
“As soirées chamavam-se súcias, e as melhores eram as da Feitoria e as da Filarmónica. Nas casas particulares convidava-se para beber uma xícara de água morna. Jogava-se o quino marcado a feijões, obrigado a anexins e a jocosidades apropriadas ao número de cada bola que se tirava do saco. Um conviva idóneo incumbia-se da missão de espevitar as velas. Menores de dez anos, inocentes mas circunspectos, serviam o açúcar e o leite. E ao centro da grande bandeja da doçaria e das fatias de pão com manteiga um cão de água em prata sobressaia ouriçado de palitos. Às onze horas um fâmulo dizia: — Chegou o criado das senhoras Viterbas com o saco dos xailes e os guarda-chuvas. E a companhia dispersava pelas ruas cavas e silenciosas, em magotes de pessoas atabafadas de agasalhos, precedidas de um vulto empunhando o clássico e monumental lampião, com duas velas, de acompanhar famílias”.
Ramalho Ortigão, In Farpas
Alexandre Herculano viveu no Porto cerca de um ano, tendo acompanhado D. Pedro IV na sua entrada na cidade em 1832, com 22 anos. Foi-lhe dada a incumbência organizar a Biblioteca Municipal. Em carta, escrita em 1862 a uma senhora do Porto, afirma:
"O Porto
passou sempre por produzir bem só quatro cousas: dinheiro, morangos, nevoeiros
e patriotas: eu protestei constantemente que produzia além disso uma quinta –
lindas meninas. É verdade que comecei os meus protestos quando vivia no Porto e
tinha 25 anos; mas ainda hoje guardo pura a religião com que os fiz”.
Em contra-ponto, o irmão do poeta Garrett, de seu nome Alexandre
Garrett, critica, mordazmente, num poema heroicómico, as meninas casadoiras do
Porto, na pessoa de uma jovem da família dos Cirne.
“As Viagens a Leixões ou a Troca das Nereidas” – Autor: Alexandre José
da Silva Almeida Garrett (1797-1867)
Reunião familiar
Reunião familiar de brasileiro “torna-viagem”
“O uso do chá
generalizou-se no Porto por ocasião de duas grandes epidemias do reinado de D.
Pedro V. Até então era remédio para compor o estomago ou, quando muito, bebida
de grande cerimónia. Mas depois que foi adoptado como ceia inofensiva servia-se
às 9 horas da noite, o mais tardar, nas melhores casas da cidade”.
Alberto Pimentel
O rio Douro não deixava, também, de ser um local privilegiado para os
portuenses passarem bons momentos de lazer.
O padre Agostinho Rebelo da Costa, sobre estes passeios conta-nos:
“Em
tardes e noites mais acaloradas, os convivas divertiam-se nas chamadas “Fúrias
do Rio”, nome mítico que se dava aos amenos passeios pelo rio, em barcos
cobertos de toldos, jogando, comendo e deleitando-se ao som da música
instrumental”.
Ramalho Ortigão em 1850, a propósito dos mesmos passeios, diz-nos:
“Durante o verão
o folguedo predilecto das famílias abonadas eram as merendas e os jantares pelo
rio acima, a Quebrantões, ao Freixo, à Pedra Salgada, à Quinta da China. Aos domingos,
depois da missa primeira, o patrão trazia da feira do Anjo a provisão das
laranjas e dos pessegos de Amarante, um melão afiançado, e a indispensável
melancia. Um cesto levava as frutas, outro cesto maior e mais abarrotado,
coberto pela alvejante toalha de linho de Guimarães levava os talheres, o
alguidar de arroz de forno com o pato e o salpicão, a pescada frita, os grossos
“moletes” de Valongo e a borracha atestada de vinho maduro da Companhia do Alto
Douro. Fretava-se um dos grandes barcos de Avintes, remado por mulheres, um
tanto escalavrado, destingido pelas solheiras, semelhante do aspecto da madeira
e do cordame a uma velha nora descida para a água de uma horta ribeirinha,
cheirando a brôa fresca a cebolinho e a feno. A famíla toda – o marido, de calça
de ganga e chapéu de sol, a mulher, os filhos, a criada com roupinhas minhotas
e os dois marçanos, em chinelas de bezerro compradas nas Congostas, camisa de
linho caseiro, nisa de briche e chapéu braguêz de copa alta e aguda – tomavam
metodicamente assento à ré, sob o toldo branco, rusticamente armado em varas de
pinho, como um parreiral suspenso. O açafates com os víveres eram depostos à
proa. Pela noite os que, tendo ficado na cidade, tomavam o fresco na alameda
das Fontainhas, viam em baixo na água túmida e glauca, polvilhada de ouro pelo
reflexo das estrelas, deslizar de volta as barcas das musicatas, iluminadas das
lanternas à veneziana, lentas, misteriosas”.
Ainda sobre os divertimentos in O Commércio do Porto, 13 de Janeiro de
1870 escrevia-se:
“Apesar da
estação correr pouco favorável para as diversões nas ruas e praças, o Porto
está actualmente inçado de um enxame de arlequins, tocadores ambulantes, e
outros indivíduos de igual género, que todos à porfia empregam os melhores
meios de arranjar alguns vinténs.
O povo reune-se,
gosta, diverte-se e também paga, às vezes.
São pois de todos
os géneros e classes esses passatempos, verdadeiramente populares, e para
enumera-los todos seria necessário dispor de mais espaço do que podemos, no
entanto ai vai uma ligeira resenha deles:
Principiando
pelos arlequins, mencionaremos em primeiro lugar a companhia do Cavalo, como
lhe chamam.
Compõem esta de
dous ginastas, ou o que quer que seja, um dos quais executa jogos malabares e
outro dá cabriolas, e faz dançar nos pés uma tranca. Faz parte da companhia um
cavalo amestrado, que, sob a indicação do mestre, diz as horas que são
e indica a mulher mais bonita do grupo que se forma em torno, o que é
sempre uma honra galhofeira para a indicada, que às vezes cora e baixo os
olhos, quando o cavalo para defronte dela a fazer-lhe cumprimentos na cabeça. Há
grande risota entre os espectadores, algumas mordidelas de beiços de inveja das
excluídas e tudo isto acompanhado ao som da orquestra, que se compõem de um
cornetim e um tambor.
Segue-se outra
companhia, composta de dois arlequins e dois garotos, que acarretam, o primeiro
um tambor, e o outro uma mesa e todos os aprestos precisos para as sortes.
Esta companhia
nada oferece de notável, senão as figuras, quasi horripilantes, dos dous
artistas. Ao vê-los, dir-se-iam mais dous esqueletos movidos por desconhecidas
molas, do que seres viventes.
Estes
desgraçados, para conseguirem fazer alguma cousa, chafurdam-se na lama da rua,
e ao levantarem-se, tornam-se ainda mais horrendos pela desordem e hediondês
dos vestuários.
Vem em seguida a
companhia da mulher das forças, de que já tivemos ocasião de falar em
tempo; desde então a companhia não sofreu alteração, a não ser uma criança que
a mulher das forças traz sempre ao colo, e que parece ser seu filho,
companheiro já dos trabalhos dos seus pais, e herdeiro das
lantejoulas e farrapos vermelhos dos mesmos, com que um dia se adornará talvez
para honrar a arte dos seus progenitores.
Sucedem-se uma
série de especuladores, entre os quais ocupa o primeiro lugar a
dos pássaros sábios.
Este procura
sempre pelo teatro das suas exibições as entradas dos mercados, e os lugares de
mais trânsito.
Os pássaros, que
são todos canários, acham-se engaiolados, estando as gaiolas montadas sobre uma
tripeça. Próximo da gaiola há uma pequena caixa de folha, cheia de papéis
impressos e fechada, contendo, em 4 linhas, as sinas ou a revelação
do futuro de qualquer indivíduo.
Chega-se, e este
é o caso mais ordinário, uma criada de servir, dá 10 reis ao homem, produto
quase sempre da economia que fez nas compras, aquele abre a porta da gaiola,
sai um pássaro e com o bico tira um dos papelinhos da caixa de latão, que o
homem entrega à criada, dando depois alguns grãos de painço ao sábio passarinho.
Esta recompensa,
é o segredo do engenho das pequenas aves.
A criada, com o
papel na mão, como quase sempre não sabe ler, pede a alguém que lho leia e acha
sempre quem se encarregue de lhe explicar as misteriosas palavras do conteúdo
no bilhetinho. Feito isto, lá vai, ora risonha, ora triste, conforme a
revelação ministrada pelo inocente canarinho.
Esta especulação produz
sempre bons lucros para os donos dos pássaros, o que quer dizer que há sempre
um crescido número de parvos a consultar o oráculo.
Ocupa o segundo
lugar a especulação dos barquilhos, verdadeiro engodo da rapaziada, que
acha meio de arranjar os cinco reis, para os empregar naquela gulodice.
O homem
dos barquilhos para em qualquer lugar mais concorrido, e põe diante
de si uma caixa, que tem na tampa uma espécie de roda da fortuna. O rapaz
dá cinco reis, move a roda que faz girar uma pequena esfera; esta vai cair em
uma cavidade, e segundo o número que ela tem pintado, ganha outros
tantos barquilhos, que ele bem depressa faz chegar ao estômago.
Os barquilhos são
umas pequenas pastas feitas de massa de obreias com açúcar. Este petisco é a
suprema palavra de pastelaria para o rapazio.
Há finalmente os
músicos dos cafés, entre os quais merece o primeiro lugar a orquestre
do Boca Seca.
A orquestra
do Boca Seca compõem-se de uma família; pai, mãe e uma filha. Aquele
e a filha tocam ambos rebeca, e a mãe viola- francesa.
Entram todas as
noutes nos principais cafés e tocam diversos trechos de óperas, marchas e
músicas de dança, algumas pelos papéis que trazem.
Chamam-lhe a
orquestra do Boca Seca em consequência do regente, que é o chefe da
família, estar a cada passo a dizer que tem a boca seca, mesmo depois de beber
dez ou quinze, e às vezes mais, copos de cerveja, que os ouvintes lhe oferecem.
Torna-se notável este homem senão pelo género musical, pela quantidade de
cerveja que bebe em cada noute.
Toda a família
traja com bastante decência, e como alem disso se extremam do vulgar no que
tocam, tem entrada em todos os cafés.
Seguem-se ainda
dous outros músicos ambulantes espanhóis, pai e filha, que tocam, o primeiro
bandolim e a segunda violão. Esta chama-se Manuelita e também canta.
Além destes
vagueia pela cidade uma multidão de crianças que onde quer improvisam concertos
de harpa e rebeca, tormento tão flagelador como o dos realejos.”
“O domingo dos
pobres, segundo João Grave, (Vagos, 11 de
Julho de 1872 - Porto, 1934- foi um escritor e jornalista português e director
da Biblioteca Municipal do Porto), passava-se na rua, ao ar livre, cobiçando as
mercadorias das lojas de moda. Mas existiam ainda os passeios ao campo ou ao
rio, onde se improvisavam "grupos de tocadores de «ramaldeiras» em
bailaricos e descantes". A música e a dança, aliás, tornam-se o passatempo
favorito, ao mesmo tempo que as associações operárias reservam nas suas sedes
espaços para essas actividades. A pequena burguesia, com o crescimento do
terciário, inicia também os seus processos de distinção social, em grande parte
miméticos face à grande burguesia, organizando sociedades recreativas,
frequentando os passeios públicos onde são toleradas e alugando "camarotes
de terceira" no teatro lírico, num movimento que propicia o alargamento de
públicos.
Os mais
desfavorecidos fazem da rua o seu local de eleição, prolongando, muitas vezes,
o espaço doméstico. É na rua, também que se concentram as novidades e os
espectáculos: desde os "artistas populares, saltim- bancos e
vagabundos", até aos exóticos "cães malabaristas, ursos que fazem
vénias, o canário que toca pífaro, a mulher gigante, a mulher anã, as vistas
estereoscópicas das cidades estrangeiras ou da vida de Cristo", sem
esquecer o circo, os parques de diversões e as sessões de hipnotismo.
O quotidiano, de
resto, continua a marcar-se por cadências ruralizantes, mantendo-se uma
fortíssima influência do calendário religioso, com as suas procissões e as
festas sacro-profanas dos santos populares.
Excepcionalmente,
a monarquia concedia ao povo ocasiões festivas para "aclamação dos
monarcas ou por ocasião do nascimento de um príncipe ou da vinda da família
real ao Porto".
Com a devida vénia a João Teixeira Lopes
Sem comentários:
Enviar um comentário