quinta-feira, 9 de março de 2017

(Continuação 11) - Actualização em 14/11/2019




Houve, desde há séculos, locais onde os portuenses se passeavam e passavam as suas  horas de ócio, seja no Cimo do Muro, na Ribeira, junto à Fonte da Natividade, ao Jardim da Cordoaria, às Fontainhas, ao Poço das Patas, ao Largo da Aguardente, ao Jardim da Arca d'Água, ao Parque da Cidade, etc.
Em O Tripeiro, Série V, Ano X encontramos uma interessante descrição, de autoria de Amadeu Cunha, sobre costumes da juventude dos princípios do séc. XX: 


“Extensa, estreita, a subir até ao campo, algumas vezes a rua do Almada fora aproveitada para “feeries” de luminárias sanjoaninas. Janelava-se bastante ao longo dela, em matéria de namorio. Era a época do pigarro e do lenço branco passado pelas vias respiratórias como senhas de enamoramento… Até à Picaria era toda colmeia activa. Daí para cima a residêncialidade desacompanhava-se de lojas, pouso de famílias ditas de tratamento… Naquele curto espaço de rua esses ádvenas, ao maior número dos quais mal pungia o buço, suscitaram estranheza, desconfiança… Tratava-se desinquietar as meninas do sítio, em idade de namorar. Habitualmente às tardes, após o jantar, aquelas varandas engraçavam-se da animação delas, que espaireciam, se distraíam, metiam a riso, segregando uma às outras, para os lados. Posto que a rua, rebarbativamente burguesa, andasse, por uma variedade de episódios, em efabulações camilianas e até nas próprias realidades biográficas do romancista (Camilo e Ana Plácido habitaram esta rua) todo o desretraímento entre elas e os rapazes se reduzia, unicamente, a simples, risonhos e a recíprocos brincos de expressão amável sem qualquer trejeito a mais”.


Sobre o Jardim de S. Lázaro o historiador Dr. Artur de Magalhães Basto descreve assim a vida deste jardim em meados do séc. XIX:


 Em dia de música, S. Lázaro é o ponto de reunião elegante. Quase se não cabe lá, tal é a multidão que ali passeia com ar endomingado e solene. Há bancos por toda a parte, mas os que primeiro se enchem são os que estão em volta do pequeno lago central. Vêem-se sentadas meninas (…) flanqueadas pelo terrível papá, que nestes momentos perde um pouco da sua costumada ferocidade (…) e que por isso, não repara nos leões namoradores, que lá ao longe, confundidos na turba, ou meio encobertos pelo arvoredo, lhes desinquietam as filhas. Enquanto a música dura, eles e elas fingindo-se absortos na contemplação inocente do jacto de água que repuxa o lago, trocam á sorrelfa olhares incendiários de mistura com suspiros e ais tirados do âmago do peito. O Jardim de S. Lázaro por 1850 era isto: um campo de batalhas de amor, onde não corria sangue, mas onde por vezes não faltavam lágrimas.”


Este belo jardim deixou de ser frequentado pela gente grada da cidade quando, em 1865, se abriram os novos jardins do Palácio de Cristal. Passou a ser frequentado por soldados, sopeiras, empregados de comércio etc.
Sobre ainda o jardim de S. Lázaro, escreve Germano Silva:



“Aí por 1850, meados do século XIX, andava em voga no Porto uma cantiga que era entoada, especialmente, pelas moças dos arrabaldes da cidade que cá vinham vender os produtos das suas terras de origem: as hortaliças de Gondomar; a boroa de Avintes; os biscoitos e as regueifas de Valongo; as frutas da Maia. A cantilena era esta: «Quem me dera ser do Porto/ou no Porto ter alguém;/ quem me dera ter a fama/que as moças do Porto têm».
E que fama seria aquela, que causava engulhos às raparigas arrabaldinas? É fácil de imaginar. Naqueles recuados tempos o romantismo batia em cheio, aí pelo Porto.
Mas o romantismo não pode ser entendido, somente, na sua fase amoruda, estritamente sentimental, do «Vai alta a lua na mansão da morte/já meia-noite com vagar soou», de Soares de Passos, que as meninas da Rua do Almada recitavam com acompanhamento ao piano.
O Romantismo foi, também, um movimento cultural ou literário, se quiserem, que apareceu no Porto na sequência da evolução social da própria sociedade portuense, nomeadamente a da alta burguesia mercantil.
O desenvolvimento do comércio, nomeadamente o do vinho, e o consequente crescimento da economia, geraram no Porto uma sólida classe média em cujo seio apareceu e se desenvolveu o romantismo que, sem se despegar da veia amoruda, foi também um movimento de libertação, do virar de uma página; do fechar da porta às ideias antigas e anquilosadas do passado; e da abertura dos portões aos novos ventos que surgiam de uma Europa civilizada e em permanente mutação.
Os conceitos antigos eram contestados. Por exemplo: os conceitos de casamento em que, especialmente no que às raparigas diz respeito, predominava a vontade dos pais. Muitas canseiras deram as moças casadoiras aos progenitores. Houve raptos, fugas de casa e o abandono do lar doméstico tornaram-se coisas o dia-a-dia.
Estas peripécias, e outras do género, é que geraram a tal fama que as moças do Porto tinham, como referia a cantiga.
Mas foi a faceta amoruda aquela que mais marcou o romantismo portuense. Que aqui, na cidade, teve um palco privilegiado; o Jardim de S. Lázaro.
Construído logo a seguir ao Cerco do Porto, o Jardim de S. Lázaro foi, até ao ajardinamento do espaço da Cordoaria, por 1860, o único recinto da cidade onde as famílias podiam ir passear e ouvir música, tranquilamente. Depois a Cordoaria destronou S. Lázaro. Como, anos mais tarde, o Palácio de Cristal significaria a morte da Cordoaria. E ao virar do século XIX para o seguinte, a Foz e os banhos no mar iriam fazer esquecer o Palácio de Cristal.
Em S. Lázaro, era frequente ver-se «um ou outro amorudo imerso na contemplação do repuxo do lago, enquanto os seus pensamentos voavam para a mulher amada».
Era o tempo em que os brasileiros de torna-viagem e os morgados de Riba - Douro acorriam a S. Lázaro, de onde lançavam olhares langorosos às meninas do Recolhimento de Nossa Senhora da Esperança, que pudicamente se escondiam atrás dos cortinados das janelas.
A desfaçatez dos frequentadores do jardim era tanta, que a Santa Casa da Misericórdia do Porto, que administrava, como ainda hoje acontece, aquele recolhimento, ordenou que «em todas as janelas da frente do Recolhimento, entre as mesmas janelas e a grade de ferro, e somente na frente da meia vidraça inferior, se mandasse colocar rótulas em forma de persianas, firmes e pintadas de verde, de forma, a que, não tolha a vista de dentro para fora ou seja para a rua e para o jardim, mas que ao mesmo tempo não deixe distinguir de fora a pessoa que, da parte de dentro, estiver à janela». 
Há aqui um pormenor que importa referir, para melhor se compreender a medida da Santa Casa da Misericórdia do Porto; a Avenida de Rodrigues de Freitas que hoje corre paralela ao colégio ainda não existia. Antes do seu alargamento, o espaço do jardim ficava muito mais perto das janelas do Recolhimento. 
À primeira vista, pode parecer que a Santa Casa acabava de tomar uma medida certeira e pacífica. Engana-se quem assim pensar. Houve protestos e o caso suscitou, inclusivamente, a discussão pública nos jornais. Num deles, escreveu-se isto: «a Santa Casa, ou quem quer que é, fica responsável perante Deus se algum pobre diabo se for deitar às dezoito braças, assim que estiver farto de contemplar o belo verde-couve das gelosias em vez da cara da sua Dulcineia». 
E havia os que proclamavam que aqueles que diziam mal da iniciativa da Santa Casa «eram os que viam fugir a esperança de continuar com as suas devassidões e não poderem verificar o efeito que faziam nas internadas os seus requebros, os seus acenos e os seus galanteios».
A todos respondia a Santa Casa dizendo que «aquilo, o Recolhimento, era uma casa de educação e não uma escola de namoro».
In Jornal de Notícias



No século XIX, principalmente no inverno, as saídas nocturnas eram escassas e as pessoas reuniam-se em serões e festas dentro de portas.



Cena de um serão de família



Horácio Marçal em O Tripeiro, Número Especial de 1974, e referente ao séc. XIX, informa-nos que: 


“De Inverno, como não havia festas, faziam-se visitas a pessoas amigas ou aparentadas, por via de regra, á noite. Aí pelas 10 horas, servia-se o chá, que os visitados, com simulada modéstia, designavam por pinga de água morna. Juntamente, apareciam as fatias de pão com manteiga, os biscoitos de argolinha, ladrilhos de marmelada e queijadas do mosteiro de S. Bento de Ave-Maria, iguarias, estas, dispostas na bandeja com determinado requinte. Se algum dos convidados não apreciava chá (o que raras vezes acontecia), serviam-lhe então uma pinga do choco, isto é, um cálice de vinho fino. No final do delicado repasto, vulgarmente, jogava-se o loto ou quino a feijões. O jogo do quino era divertidíssimo, não tanto pela natureza, como pelas facécias que os circunstantes lhe interpunham ao cantarolarem os números. Se não havia jogatina, havia musicata ao piano pelas meninas ou pela dona da casa, pois nesses tempos já passados, era chique e de boa distinção saber dedilhar o teclado de um piano”. 



Jogo do Loto ou Quino



Aqueles românticos serões terminavam, ordinariamente, pela seguinte frase atirada da porta da sala à multidão amarroada “está lá em baixo o criado das senhoras com o saco de chales e o lampião”. 
 
 
 
“As soirées chamavam-se súcias, e as melhores eram as da Feitoria e as da Filarmónica. Nas casas particulares convidava-se para beber uma xícara de água morna. Jogava-se o quino marcado a feijões, obrigado a anexins e a jocosidades apropriadas ao número de cada bola que se tirava do saco. Um conviva idóneo incumbia-se da missão de espevitar as velas. Menores de dez anos, inocentes mas circunspectos, serviam o açúcar e o leite. E ao centro da grande bandeja da doçaria e das fatias de pão com manteiga um cão de água em prata sobressaia ouriçado de palitos. Às onze horas um fâmulo dizia: — Chegou o criado das senhoras Viterbas com o saco dos xailes e os guarda-chuvas. E a companhia dispersava pelas ruas cavas e silenciosas, em magotes de pessoas atabafadas de agasalhos, precedidas de um vulto empunhando o clássico e monumental lampião, com duas velas, de acompanhar famílias”.
Ramalho Ortigão, In Farpas



Alexandre Herculano viveu no Porto cerca de um ano, tendo acompanhado D. Pedro IV na sua entrada na cidade em 1832, com 22 anos. Foi-lhe dada a incumbência organizar a Biblioteca Municipal. Em carta, escrita em 1862 a uma senhora do Porto, afirma: 


"O Porto passou sempre por produzir bem só quatro cousas: dinheiro, morangos, nevoeiros e patriotas: eu protestei constantemente que produzia além disso uma quinta – lindas meninas. É verdade que comecei os meus protestos quando vivia no Porto e tinha 25 anos; mas ainda hoje guardo pura a religião com que os fiz”.


Em contra-ponto, o irmão do poeta Garrett, de seu nome Alexandre Garrett, critica, mordazmente, num poema heroicómico, as meninas casadoiras do Porto, na pessoa de uma jovem da família dos Cirne.
 
 

“As Viagens a Leixões ou a Troca das Nereidas” – Autor: Alexandre José da Silva Almeida Garrett (1797-1867) 



Reunião familiar


Reunião familiar de brasileiro “torna-viagem”


“O uso do chá generalizou-se no Porto por ocasião de duas grandes epidemias do reinado de D. Pedro V. Até então era remédio para compor o estomago ou, quando muito, bebida de grande cerimónia. Mas depois que foi adoptado como ceia inofensiva servia-se às 9 horas da noite, o mais tardar, nas melhores casas da cidade”. 
Alberto Pimentel


O rio Douro não deixava, também, de ser um local privilegiado para os portuenses passarem bons momentos de lazer.
O padre Agostinho Rebelo da Costa, sobre estes passeios conta-nos:


Em tardes e noites mais acaloradas, os convivas divertiam-se nas chamadas “Fúrias do Rio”, nome mítico que se dava aos amenos passeios pelo rio, em barcos cobertos de toldos, jogando, comendo e deleitando-se ao som da música instrumental”.


Ramalho Ortigão em 1850, a propósito dos mesmos passeios, diz-nos:


“Durante o verão o folguedo predilecto das famílias abonadas eram as merendas e os jantares pelo rio acima, a Quebrantões, ao Freixo, à Pedra Salgada, à Quinta da China. Aos domingos, depois da missa primeira, o patrão trazia da feira do Anjo a provisão das laranjas e dos pessegos de Amarante, um melão afiançado, e a indispensável melancia. Um cesto levava as frutas, outro cesto maior e mais abarrotado, coberto pela alvejante toalha de linho de Guimarães levava os talheres, o alguidar de arroz de forno com o pato e o salpicão, a pescada frita, os grossos “moletes” de Valongo e a borracha atestada de vinho maduro da Companhia do Alto Douro. Fretava-se um dos grandes barcos de Avintes, remado por mulheres, um tanto escalavrado, destingido pelas solheiras, semelhante do aspecto da madeira e do cordame a uma velha nora descida para a água de uma horta ribeirinha, cheirando a brôa fresca a cebolinho e a feno. A famíla toda – o marido, de calça de ganga e chapéu de sol, a mulher, os filhos, a criada com roupinhas minhotas e os dois marçanos, em chinelas de bezerro compradas nas Congostas, camisa de linho caseiro, nisa de briche e chapéu braguêz de copa alta e aguda – tomavam metodicamente assento à ré, sob o toldo branco, rusticamente armado em varas de pinho, como um parreiral suspenso. O açafates com os víveres eram depostos à proa. Pela noite os que, tendo ficado na cidade, tomavam o fresco na alameda das Fontainhas, viam em baixo na água túmida e glauca, polvilhada de ouro pelo reflexo das estrelas, deslizar de volta as barcas das musicatas, iluminadas das lanternas à veneziana, lentas, misteriosas”. 


Ainda sobre os divertimentos in O Commércio do Porto, 13 de Janeiro de 1870 escrevia-se:


“Apesar da estação correr pouco favorável para as diversões nas ruas e praças, o Porto está actualmente inçado de um enxame de arlequins, tocadores ambulantes, e outros indivíduos de igual género, que todos à porfia empregam os melhores meios de arranjar alguns vinténs.
O povo reune-se, gosta, diverte-se e também paga, às vezes.
São pois de todos os géneros e classes esses passatempos, verdadeiramente populares, e para enumera-los todos seria necessário dispor de mais espaço do que podemos, no entanto ai vai uma ligeira resenha deles:
Principiando pelos arlequins, mencionaremos em primeiro lugar a companhia do Cavalo, como lhe chamam.
Compõem esta de dous ginastas, ou o que quer que seja, um dos quais executa jogos malabares e outro dá cabriolas, e faz dançar nos pés uma tranca. Faz parte da companhia um cavalo amestrado, que, sob a indicação do mestre, diz as horas que são e indica a mulher mais bonita do grupo que se forma em torno, o que é sempre uma honra galhofeira para a indicada, que às vezes cora e baixo os olhos, quando o cavalo para defronte dela a fazer-lhe cumprimentos na cabeça. Há grande risota entre os espectadores, algumas mordidelas de beiços de inveja das excluídas e tudo isto acompanhado ao som da orquestra, que se compõem de um cornetim e um tambor.
Segue-se outra companhia, composta de dois arlequins e dois garotos, que acarretam, o primeiro um tambor, e o outro uma mesa e todos os aprestos precisos para as sortes.
Esta companhia nada oferece de notável, senão as figuras, quasi horripilantes, dos dous artistas. Ao vê-los, dir-se-iam mais dous esqueletos movidos por desconhecidas molas, do que seres viventes.
Estes desgraçados, para conseguirem fazer alguma cousa, chafurdam-se na lama da rua, e ao levantarem-se, tornam-se ainda mais horrendos pela desordem e hediondês dos vestuários.
Vem em seguida a companhia da mulher das forças, de que já tivemos ocasião de falar em tempo; desde então a companhia não sofreu alteração, a não ser uma criança que a mulher das forças traz sempre ao colo, e que parece ser seu filho, companheiro já dos trabalhos dos seus pais, e herdeiro das lantejoulas e farrapos vermelhos dos mesmos, com que um dia se adornará talvez para honrar a arte dos seus progenitores.
Sucedem-se uma série de especuladores, entre os quais ocupa o primeiro lugar a dos pássaros sábios.
Este procura sempre pelo teatro das suas exibições as entradas dos mercados, e os lugares de mais trânsito.
Os pássaros, que são todos canários, acham-se engaiolados, estando as gaiolas montadas sobre uma tripeça. Próximo da gaiola há uma pequena caixa de folha, cheia de papéis impressos e fechada, contendo, em 4 linhas, as sinas ou a revelação do futuro de qualquer indivíduo.
Chega-se, e este é o caso mais ordinário, uma criada de servir, dá 10 reis ao homem, produto quase sempre da economia que fez nas compras, aquele abre a porta da gaiola, sai um pássaro e com o bico tira um dos papelinhos da caixa de latão, que o homem entrega à criada, dando depois alguns grãos de painço ao sábio passarinho.
Esta recompensa, é o segredo do engenho das pequenas aves.
A criada, com o papel na mão, como quase sempre não sabe ler, pede a alguém que lho leia e acha sempre quem se encarregue de lhe explicar as misteriosas palavras do conteúdo no bilhetinho. Feito isto, lá vai, ora risonha, ora triste, conforme a revelação ministrada pelo inocente canarinho.
Esta especulação produz sempre bons lucros para os donos dos pássaros, o que quer dizer que há sempre um crescido número de parvos a consultar o oráculo.
Ocupa o segundo lugar a especulação dos barquilhos, verdadeiro engodo da rapaziada, que acha meio de arranjar os cinco reis, para os empregar naquela gulodice.
O homem dos barquilhos para em qualquer lugar mais concorrido, e põe diante de si uma caixa, que tem na tampa uma espécie de roda da fortuna. O rapaz dá cinco reis, move a roda que faz girar uma pequena esfera; esta vai cair em uma cavidade, e segundo o número que ela tem pintado, ganha outros tantos barquilhos, que ele bem depressa faz chegar ao estômago.
Os barquilhos são umas pequenas pastas feitas de massa de obreias com açúcar. Este petisco é a suprema palavra de pastelaria para o rapazio.
Há finalmente os músicos dos cafés, entre os quais merece o primeiro lugar a orquestre do Boca Seca.
A orquestra do Boca Seca compõem-se de uma família; pai, mãe e uma filha. Aquele e a filha tocam ambos rebeca, e a mãe viola- francesa.
Entram todas as noutes nos principais cafés e tocam diversos trechos de óperas, marchas e músicas de dança, algumas pelos papéis que trazem.
Chamam-lhe a orquestra do Boca Seca em consequência do regente, que é o chefe da família, estar a cada passo a dizer que tem a boca seca, mesmo depois de beber dez ou quinze, e às vezes mais, copos de cerveja, que os ouvintes lhe oferecem. Torna-se notável este homem senão pelo género musical, pela quantidade de cerveja que bebe em cada noute.
Toda a família traja com bastante decência, e como alem disso se extremam do vulgar no que tocam, tem entrada em todos os cafés.
Seguem-se ainda dous outros músicos ambulantes espanhóis, pai e filha, que tocam, o primeiro bandolim e a segunda violão. Esta chama-se Manuelita e também canta.
Além destes vagueia pela cidade uma multidão de crianças que onde quer improvisam concertos de harpa e rebeca, tormento tão flagelador como o dos realejos.”


“O domingo dos pobres, segundo João Grave, (Vagos, 11 de Julho de 1872 - Porto, 1934- foi um escritor e jornalista português e director da Biblioteca Municipal do Porto), passava-se na rua, ao ar livre, cobiçando as mercadorias das lojas de moda. Mas existiam ainda os passeios ao campo ou ao rio, onde se improvisavam "grupos de tocadores de «ramaldeiras» em bailaricos e descantes". A música e a dança, aliás, tornam-se o passatempo favorito, ao mesmo tempo que as associações operárias reservam nas suas sedes espaços para essas actividades. A pequena burguesia, com o crescimento do terciário, inicia também os seus processos de distinção social, em grande parte miméticos face à grande burguesia, organizando sociedades recreativas, frequentando os passeios públicos onde são toleradas e alugando "camarotes de terceira" no teatro lírico, num movimento que propicia o alargamento de públicos.
Os mais desfavorecidos fazem da rua o seu local de eleição, prolongando, muitas vezes, o espaço doméstico. É na rua, também que se concentram as novidades e os espectáculos: desde os "artistas populares, saltim- bancos e vagabundos", até aos exóticos "cães malabaristas, ursos que fazem vénias, o canário que toca pífaro, a mulher gigante, a mulher anã, as vistas estereoscópicas das cidades estrangeiras ou da vida de Cristo", sem esquecer o circo, os parques de diversões e as sessões de hipnotismo.
O quotidiano, de resto, continua a marcar-se por cadências ruralizantes, mantendo-se uma fortíssima influência do calendário religioso, com as suas procissões e as festas sacro-profanas dos santos populares.
Excepcionalmente, a monarquia concedia ao povo ocasiões festivas para "aclamação dos monarcas ou por ocasião do nascimento de um príncipe ou da vinda da família real ao Porto".
Com a devida vénia a João Teixeira Lopes

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