sexta-feira, 3 de outubro de 2025

25.288 O comércio na Praça de Carlos Alberto

 
A Praça de Carlos Alberto, que ganhou este topónimo a partir de 1850, está implantada em terrenos a que antigamente se chamava Horto do Olival e, aos quais, a cidade amuralhada tinha acesso através da Porta do Olival.
Intra-muros, nessa zona, esteve a judiaria até à expulsão dos judeus, em 1496, ordenada por D. Manuel I.
Por aquela porta se saía para rumar ao norte do País.
Primeiro, por caminhos rústicos através de campos da Quinta da Corredoura ou dos Carvalhos do Monte, mais tarde, por ruas, respectivamente, a Rua da Estrada (Rua de Cedofeita) e a Rua das Oliveiras (que ainda ostenta o topónimo com referência ao antigo local).
A Praça de Carlos Alberto é dominada a norte/nascente, desde o início do século XVIII, pelo Palacete Balsemão e, a sul/poente, pela fachada lateral da Igreja dos Terceiros do Carmo e fachada principal do respectivo hospital e, ainda, a sul/nascente pelo palacete dos Couto Moreira.

 
 

Palácio do Visconde de Balsemão - Desenho de Carlos Alberto Nogueira da Silva, In «Archivo Pittoresco», 4, 1861, p. 393
 
 
Aquele palacete foi antecedido no mesmo local por uma morada de três casas casas com os seus quintais, águas e mais pertenças que, em 1718,  eram propriedade de Diogo dos Santos Mesquita e, alguns anos depois, surgiria na posse do negociante portuense Luís Correia dos Santos.
A casa passa a ser conhecida como Palacete Balsemão, a partir de 1800, quando Maria Rosa Alvo Brandão Perestrelo de Azevedo casa com o 2.º visconde de Balsemão, Luís Máximo Alfredo Pinto de Sousa Coutinho (Falmouth, 30 de Maio de 1774 — Lamego, 2 de Outubro de 1832).

 
 

Hospital do Carmo, em 1833, voltado para a Praça Carlos Alberto, em desenho de J. Villanova

 
 
Em 1801, as instalações do que seria o Hospital do Carmo estavam concluídas.
Em 1811, decide-se montar uma botica, que será instalada numa das lojas do edifício do hospital. Todavia, em 1862, adquiriu-a Joaquim Baptista de Lemos, que a vai transformar na Farmácia Lemos com portas abertas até aos nossos dias.
A partir de 1865, o Hospital do Carmo passará a prestar assistência a doentes alheios à Ordem.


 
 

Palacete dos Couto Moreira, c. 1960, na esquina das praças de Carlos Alberto e Gomes Teixeira
 
 
 
 
Pela Rua de Cedofeita, começada a abrir em 1777, que rapidamente passou a Rua da Estrada e, depois, a Rua Direita de Cedofeita, se atingia a Falperra (Ramada Alta) e continuando se atingia o Carvalhido, pelo troço que, mais tarde, se chamaria Rua 9 de Julho. Daí, passando pelo Padrão da Légua e Padrão de Moreira, chegava-se à Estrada dos Nove Irmãos e a Vila do Conde, Póvoa, etc, percorrendo aquela que, a partir de determinado momento, foi chamada a Estrada Real 30.
Na notícia abaixo é dado conta de que a Rua Nova do Carvalhido passou a integrar a Estrada Real 30.



In "Jornal do Porto" de 22 de Fevereiro de 1889



Se se enveredava pela Rua das Oliveiras e, depois, pela Rua de Santo Ovídeo, actual Rua dos Mártires da Liberdade (para o povo sempre Rua da Sovela pelo seu traçado característico) atingia-se Santo Ovídeo (Praça da Regeneração topónimo que alternava com o de Praça da República), seguia-se a Rua da Rainha (Rua Antero de Quental), Lugar do Sério, Arca d’Água e continuava-se para Braga.
Tendo os itinerários referidos o seu início, no local da actual Praça de Carlos Alberto, não surpreende que, naqueles tempos, se lhe chamasse Largo dos Ferradores.
As oficinas dos ferradores de cavalos e muares seriam verdadeiras estações de serviço da época, colocadas num sítio estratégico, à saída da cidade, por isso, o topónimo sucessivo de Campo dos Ferradores, Largo dos Ferradores e Bairro dos Ferradores.
Não é de estranhar, também, que o local, após a introdução dos transportes de massas, fosse muito concorrido.
Na Praça Carlos Alberto, a partir de 12 de Agosto de 1874, começou a funcionar, sob a gestão da Companhia Carris de Ferro do Porto (CCFP), a linha de caminho-de-ferro americano até Cadouços, à Foz do Douro, passando pela Boavista.
Em 1883, uma outra linha concorrente dos “americanos”, os carros Ripert da “Empresa Portuense de Carros Ripert” (com sede na Rua de S. Dinis), que demandavam S. Mamede de Infesta e serviam vários outros pontos da cidade, passou a funcionar a partir da Praça de Carlos Alberto, com o término em frente à Tabacaria Havaneza, no local em que, mais tarde, esteve a Mercearia Pacheco.
Mas, desde sempre, foi também uma área que, pela sua localização, era propícia ao comércio.
Neste sítio, que já foi Campo, Largo e Bairro dos Ferradores e Largo da Feira das Caixas, acabando como Praça Carlos Alberto, realizou-se, entre c. 1676 e 1833, a “Feira dos Bois”.
Em 14 de Fevereiro de 1833, esta feira é transferida para o Poço das Patas, depois Campo Grande e, finalmente, Campo 24 de Agosto.
Por alvará de 1720, pelos dias 25, 26 e 27 de Julho, foi autorizada a realização de uma “Feira Franca”, anual, de fazendas e animais, que se realizaria pela primeira vez, no ano seguinte, passando pelas praças do Carmo, Cordoaria e Ferradores.
Tendo esta feira caído no agrado dos portuenses, passou a realizar-se bi-semanalmente (Terças e Sábados).
Até 1822, funcionou nesta praça, a “Feira da erva, carvão e lenha” e, depois a “Feira das Caixas” que comercializava cadeiras, caixas, bancos, tamancos e outros artigos em madeira.
Em 1823, esta feira funcionou no Mercado do Mirante (Praça Coronel Pacheco) e depois disso foi para a Praça da Batalha.
Durante algum tempo, na “Feira das Caixas”, no meio da praça, funcionou um teatro mecânico, cujos actores eram autómatos.
Em 1856, a “Feira das Caixas” foi para a já desaparecida Rua dos Lavadouros e, ainda hoje, podem ser observados os seus vestígios, na Rua da Picaria, que lhe ficava próximo.
Em Abril de 1858, passa a realizar-se nos Ferradores a “Feira dos Moços”, em Abril (nos contratos para os trabalhos de Verão) e em Novembro (para os de Inverno). Em 1876, foi transferida para a Rotunda da Boavista e depois para a Corujeira.
A partir de meados do século XIX, com o desenvolvimento que a cidade experimentou após a intervenção de João Almada e do seu filho Francisco Almada, o comércio que se baseava em feiras ao ar-livre passou, também, para debaixo de telha, em lojas. Apareceram, então, na Praça Carlos Alberto os hotéis, restaurantes, mercearias, casas de modas, etc.
Dada a impossibilidade de uma descrição cronológica apresentam-se, a seguir, alguns exemplos da ocupação comercial na Praça Carlos Alberto.
 
 
Lado Nascente
 
 
 

Praça de Carlos Alberto, com perspectiva sobre a Praça Gomes Teixeira, em foto do Plano Regulador de Almeida Garrett c. 1952

 
 
Na foto acima, no primeiro prédio, totalmente visível, à esquerda esteve, no nº 115, a “Leitaria Invicta”.

 
 

Anúncio publicado no jornal “O Alarme” (Diário Republicano da tarde) em 1904
 
 
 
Na mesma morada, a partir de 28 de Novembro de 1931, esteve a moderna e luxuosa Manteigaria Invicta de Alírio Tavares da Fonseca & Cia.
 
 
 

Publicidade à Manteigaria Invicta, em 1933
 
 


Neste lado da praça localizavam-se, segundo testemunho de Horácio Marçal, as casas de hospedagem e de comidas e bebidas.

 
 
 

Horácio Marçal, In revista “O Tripeiro”, Vª Série, Ano VIII, Nº 4, Agosto 1952
 
 
 
Ainda, segundo Horácio Marçal, outros estabelecimentos ficaram na memória de muita gente, como a “Mercearia dos Penas” na esquina da Praça Carlos Alberto com a Praça Gomes Teixeira (dos Leões ou da Universidade), a “Tabacaria Havaneza”, a “Camisaria Braga”, a “Camisaria Perdigão”, a “Confeitaria Abreu”, o armazém de fazendas ”Bártolo”, a casa de modas “Almeida & Cia”, a loja de miudezas de “Sousa Matos” a “Mercearia Campos”, o estabelecimento de artigos de verga da ilha da madeira “Casa Vilaça”, a casa de músicas “Eduardo da Fonseca”, o Café Carlos Alberto, funcionando nos baixos do palacete do Visconde da Trindade, na esquina da Rua das Oliveiras, de António Pires da Silva, com sala de bilhares e inaugurado em Outubro de 1901.
Para além da muito conhecida Hospedaria do Peixe, que estava instalada no palacete do visconde da Trindade, arrendada na década de 1840 por António Bernardino Peixe e onde se alojou o rei Carlos Alberto, existiam pelos Ferradores, várias hospedarias e hotéis.
No nº 120, a Hospedaria “Leão de Ouro”, cuja diária variava entre 600 e 800 réis.
 
 
 

No primeiro prédio, à esquerda, ficava a “Leão de Ouro”
 
 
 
Ainda do lado nascente da Praça Carlos Alberto, dá-se conta da “Pensão do Comércio” a 1$200 réis por dia, “Clarence”, “Hotel da Boa Esperança”, “Bons Amigos” e “Aurora”.
 
 
 

Hotel da Boa Esperança, do lado Nascente da Praça de Carlos Alberto – Ed. Photo Guedes
 
 
 
Na foto anterior, pode observar-se a confeitaria Oliveira e o Hotel da Boa Esperança.
No prédio onde teve portas abertas a confeitaria Oliveira, uns anos antes, esteve, o Hotel-Restaurante Carlos Alberto, na Praça de Carlos Alberto, nº 105.
 
 
 “O bem conhecido nesta cidade, cozinheiro Bernardo Crespo, abriu o seu novo hotel na praça de Carlos Alberto, 105, desde o dia 15 de março.”
In Jornal o “Comércio do Porto” de 15 de Março de 1865, cit. Guido de Monterey, “O Porto 2”, p. 582
 
 
 

Vista actual de foto anterior – Fonte: Google maps
 
 
 
 
As malas-postas ou diligências que faziam a ligação a Viana do Castelo tinham a estação no edifício da casa de pasto “Caldos de Galinha”, bem como as estafetas e recoveiros, para Viana do Castelo, Caminha, Valença e Tui, que chegavam às Segundas, Quartas e Sábados e partiam nesses mesmos dias.
A casa de pasto “Caldos de Galinha”, segundo informação de Horácio Marçal situava-se no nº de polícia 85-87-89, morada que ainda se mantem.
No final do século XIX, bem próximo daquele local seria aberta uma ligação entre a Praça Carlos Alberto e o Largo do Moinho de Vento, que já se chamou Travessa de Sá de Noronha e hoje, é a Rua Actor João Guedes.


 

Foto do prédio do Café Luso, anterior aos anos 80 – Ed. AHMP; Foto de Marco Gelehrter Ricca Gonçalves

 
 
Na foto, acima, é possível ver o Café Luso (prédio central com azulejos azuis) e, ao lado, o Restaurante Carlos Alberto.
Foi da varanda do Café Luso que, Humberto Delgado, em 14 de Maio de 1958, durante a campanha para as eleições presidenciais, disse à multidão: "O meu coração ficará no Porto ".
 
 
 
 

Humberto Delgado na varanda do Café Luso

 
 
O icónico Café Luso, inaugurado em 1935, fechou para sempre as suas portas em 2022.


 
 

Vista actual de parte do lado Nascente da Praça de Carlos Alberto – Ed. J Portojo
 
 
 
Na foto acima, no edifício, à direita, esteve instalado até 2022 o Café Luso e, ainda no século XIX, no edifício mais central esteve a casa de pasto “Caldos de Galinha”.
 

 



À esquerda, a sede da Companhia União de Crédito Popular, no lado norte/nascente da Praça de Carlos Alberto

 
 
 

Casa Pereira, na Praça Carlos Alberto, n.ºs 72-73, em 1970, no término da Praça de Carlos Alberto, já junto à Rua das Oliveiras
 
 
 
 
Lado Poente
 
 
O lado poente da Praça Carlos Alberto é dominado pelo hospital dos Terceiros do Carmo.
 
 
 

Fachada lateral da igreja dos Terceiros do Carmo e Hospital do Carmo – Ed. J Portojo
 
 
 
Tendo-se formado em 1736, a Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, passado vinte anos, começaria a construir a sua própria igreja numa parcela de terreno comprado aos padres carmelitas.
Em 29 de Agosto de 1756, a primeira pedra seria lançada por D. João da Silva Ferreira, bispo de Tânger, deão da capela de Vila Viçosa e prior da Ordem Carmelita.
Do lado poente da Praça Carlos Alberto, quanto à ocupação ao longo dos anos, importa referir o Hospital da Ordem Terceira do Carmo, e uma série de estabelecimento comerciais arrendados àquela Ordem, de que se destacam a antiquíssima Farmácia Lemos e as lojas “Lopo Xavier” e “Casa Damas”.
A loja "Lopo Xavier" de malhas e miudezas tem no seu interior uns baixos-relevos de Henrique Moreira.
 
 
 

Lopo Xavier (ainda existe) na Praça Carlos Alberto
 
 
 
 
 
A Casa Damas, por sua vez, tem uma história que merece ser contada.
A “Casa Damas”, de Manuel José Ferreira & Filhos, estava sedeada na Praça Carlos Alberto, tendo começado em 1833, por ser a “Mercearia Damas”.
Foi fundada por um antigo caixeiro da mercearia Dâmaso, situada na Porta do Olival.
Aquele caixeiro aproveitou a corruptela, Damas, por supressão da vogal final, do muito conhecido Dâmaso – o seu ex-patrão.
Manuel José Ferreira, assim se chamava aquele caixeiro, herdou do seu patrão Dâmaso, toda a fortuna, em virtude de este não ter herdeiros.
Acrescentou à mercearia, uma cervejaria e próximo do estabelecimento que tinha sido do seu ex-patrão, abriu um próprio, do mesmo ramo de negócio, nos chamados Passeios da Graça.
Fruto das obras realizadas, à data, no actual edifício da Reitoria, o estabelecimento foi obrigado a mudar-se e a instalar-se num prédio do Campo dos Mártires da Pátria, esquina da Rua da Restauração, onde permaneceu poucos anos, pois, em 1908, já ocupava a morada da Praça Carlos Alberto, nº 1-4, pegado à igreja do Carmo, de sociedade com os seus três filhos, António, Ernesto e Armando.
 
 
 

À esquerda, a igreja da Graça e, ao lado direito da sua torre sineira, no prédio alto, do qual se observam as suas traseiras, a meio da foto obtida a partir do Largo do Viriato, esteve a mercearia Damas, vinda dos Passeios da Graça


 
 

A “Casa Damas” ocupou o espaço onde na foto estão os “Armazéns Branco” – Fonte: Google maps

 
 
Pela cave do prédio da foto acima, observou, em visita efectuada ao local, Horácio Marçal, a existência de uma ramal de água que vinha da “Arca de Sá de Noronha”, como é dado conta no texto abaixo:


 
 
Revista “O Tripeiro”, Ano IX, Vª Série, Setembro de 1953

 
 
Para além desta loja de retalho, a sociedade tinha armazéns de exportação nas ruas do Barão do Corvo e antiga de Veloso da Cruz, em V. N. de Gaia; de retém, na Rua da Restauração, no regimento de infantaria 18 e na cadeia da Relação. Estes dois últimos eram privativos e destinavam-se apenas ao fornecimento da tropa e dos reclusos.
Na Rua de Sá de Noronha, tinha a Casa Damas, uma fábrica de confeitaria, para abastecimento dos seus estabelecimentos e muitos outros da província.
Esta rua ligava a Praça da Universidade e o Largo do Moinho de Vento, tendo sido atribuído aquele topónimo, em 1889, por referência ao músico, compositor e maestro, nascido em Viana do Castelo e que por aqui viveu, durante alguns anos.
Com o falecimento de Manuel José Ferreira, os filhos sem capacidade para gerir ao mesmo nível do pai, os negócios, trespassaram a firma a Manuel Joaquim Queiroz, de Guimarães que a manteve durante cerca de vinte anos.

 
 

Publicidade à “Casa Damas” na Praça Carlos Alberto
 
 
 
Junto da Casa Damas esteve, na Praça Carlos Alberto, 7-16, a casa de modas “Barros & Cia” que, em 22 de Outubro de 1931, reabriria após receber obras de vulto.
A poente da praça e contígua à Farmácia Lemos, em 1940, estava a casa de meias e miudezas de Mário Andrade.
 

 

Casa de meias e miudezas de Mário Andrade
 
 
 

Vista actual, aproximada, da foto anterior – Fonte: Google maps
 
 

 
Lado Norte
 
 
 

Edificado a Norte da Praça de Carlos Alberto – Ed. J Portojo

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

25.287 Almeida Garrett e o Arco de Sant’Ana

 
 
O Arco de Sant’Anna estava localizado na rua que teve o mesmo nome, a partir do século XVIII e, antes, durante a idade média, tinha sido Rua das Aldas e, depois da construção do colégio de S. Lourenço (Grilos), Rua do Colégio, embora amputada de uma porção, na sua extensão.
O Arco de Sant'Ana das Aldas era o que restava de uma das quatro portas da velha cidade do Porto, talvez mesmo um postigo aberto no extremo da muralha do lado norte, que nesse ponto quebrava em direcção ao sul, correndo em seguida pelas traseiras da antiga Rua dos Mercadores, paralela à de Sant'Ana.
 
 
 

Arco de Sant’Ana, In revista” O Tripeiro”


 
 

Arco de Sant'Ana e oratório - Reconstituição de Gouvêa Portuense
 
 
 
Sant’Ana, a avó materna de Jesus Cristo, foi adorada todos os dias num oratório, implantado num arco da Rua das Aldas.





Imagem de Sant’Ana, da Virgem e do Menino, que era adorada no Arco de Sant’Ana
 
 
 
Aí, correndo em busca de auxílio, as parturientes, em dificuldades, tinham a devida assistência, numa casa contígua ao oratório que lhes disponibilizavam, quer durante o dia ou à noite, as Cadeiras de Sant’Ana, nas quais se recostavam e adquiriam a fé que necessitavam, em troca da oferta de um pouco de azeite (a lâmpada do Arco mantinha-se permanentemente acesa) ou de uma pequena dádiva em dinheiro.



Cadeira de Sant’Ana para parturientes



A 26 de Julho, dia da festa anual da padroeira, o Arco onde assentava o oratório com a imagem da Santa era ricamente decorado com panos (alguns deles bordados a ouro e prata) e flores, dando ao Arco o aspecto de uma capela-mor.
Quando o Arco de Sant’Ana foi demolido, em 1821, a imagem da Santa e as Cadeiras de Sant’Ana passaram para a capela de S. Crispim, junto da Rua da Biquinha, continuando a servir do mesmo modo que anteriormente.
Em 2 de Junho de 1821, começava a ser demolido, por ordem da Câmara, o velho “Arco de Sant’Ana”, junto à Sé, resultante de um pedido de Manuel Luiz da Silva Leça e António Joaquim de Carvalho.
Entre muitas outras personalidades, Almeida Garrett foi a voz que mais se fez ouvir, criticando a demolição do Arco de Sant’Ana, manifestando-se nos seguintes termos:

 
 
“Cahiste pois tu, ó arco de Sant’Anna, como em nossos tristes e minguados dias, vae cahindo quanto ha nobre e antigo ás mãos de innovadores plebeus, para quem nobiliarchias são chimeras, e os veneráveis caracteres heráldicos de rei d’armas Portugal lingua morta, e esquecida que nossa ignorância despreza, hieroglyphicos da terra dos Pharaós antes de descoberta a inscripção de Damieta!
Assentaram os miseráveis reformadores que uma pouca de luz mais e uma pouca de immundicie menos, em rua já de si tam escura e mal enchuta, era preferível á conservação d'aquelle monumento em todos os sentidos respeitável!
Com que desapontamento deste meu coração, depois de tantos annos de ausência, não andei procurando, em vão!... Na rua de Sant’Anna, uma das primeiras que a minha infancia conheceu, as gothicas feições d’aquellé arco? e a alampada que lhe ardia continua, e os milagres de cera que lhe pendiam á roda, e toda aquella associação de cousas, que me trazia á memória os felizes dias de minha descuidada meninice!”
Almeida Garrett


Aquele elemento arquitectónico, pela pena de Almeida Garrett, haveria de dar, ainda, o nome a um conhecido romance de cariz histórico - O Arco de Sant'Ana.
Então, na tarde de 29 de Junho de 1821, a imagem alvo de veneração foi, sob o estandarte da irmandade dos sapateiros, curtidores, surradores e correeiros, conduzida, em procissão e em magnífico andor, pelos mestres que nesse ano eram juízes ou tinham assento na Casa dos Vinte e Quatro (em que estes ofícios gozavam do direito de banco), para a capela de S. Crispim e, aí, colocada em altar especial.
A gravura, abaixo, foi publicada, também, em 24 de Agosto de 1901, na revista semanal Gazeta Ilustrada, de Coimbra. Nela se pode observar a Rua de Sant’Ana e, no seu início, à esquerda, um nicho com uma imagem – o antigo local do Arco de Sant’Ana.
Trata-se de um trabalho de litografia de um conceituado litógrafo espanhol que, à data, assinava como “Pastor”, se chamava Francisco Pastor Muntó (1852-1922) e montou oficina, em Lisboa, a partir de 1873.
A gravura referida baseava-se num desenho do ilustrador, cenógrafo, pintor e escritor Manuel Maria de Macedo (1839-1915) que, a partir de 1878, se fixou em Lisboa, mas que viveu dois anos no Porto.
De realçar, o pormenor das sacadas, de madeira ou de ferro, apoiadas nos respectivos cachorros, uma característica inconfundível das antigas moradias da cidade velha.
Esta gravura foi capa da revista “O Tripeiro”, Série Nova, Ano I, Número 0, de 1 de Outubro de 1981.


 
 


 
 
 
Do velho Arco de Sant'Ana, actualmente, apenas sobrevive a porta que permitia o acesso ao nicho onde estava a imagem de Sant’Ana com a Virgem e o Menino, apesar de, em 13 de Maio de 1943, a Câmara Municipal ter aprovado um projecto para o reconstituir e reimplantar, no seu local primitivo, o que não se concretizaria.
Hoje, a imagem original de Sant’Ana está esquecida na Capela de S. Crispim, entretanto, deslocada, nos finais do século XIX, para a actual Rua de Santos Pousada.
 
 
 

Local actual do Arco de Sant’Ana – Ed. Graça Correia

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

25.286 Os monges Beneditinos instalaram-se no Olival há mais de 400 anos

 
Implantação das estruturas
 
 
O Mosteiro de S. Bento da Vitória foi erguido no Morro do Olival, na actual Rua de S. Bento da Vitória, que já foi Rua de S. Bento dos Frades e Rua de S. Bento, tendo sido, ainda, Rua de S. Miguel, quando esta tinha a configuração de um L.
Hoje, dessa Rua de S. Miguel, só resta o troço do braço pequeno do L.
Situava-se no interior das muralhas e junto da Porta do Olival.
O mosteiro e a sua igreja de S. Bento da Vitória serviam à Ordem Beneditina, fundada por S. Bento (480-547), tendo a sua construção ocorrido em finais do século XVI, no local anteriormente ocupado pela Judiaria do Olival.
Aqueles monges obedeciam à Regra de S. Bento que consagrava os princípios da humildade, pobreza e obediência.
Em função do que tinha sido decidido no Mosteiro de Tibães, os beneditinos entraram no Porto com o intuito de construírem um mosteiro na cidade, o que veio a acontecer depois de resolvidos alguns entraves, embora, a construção, só tenha terminado cerca de um século depois.
Expulsos os judeus por D. Manuel I, em 1496, os bens que deixaram para trás foram distribuídas pelo Cabido e pela Câmara que, por vezes, se mostraram relutantes na transferência da posse das propriedades para os beneditinos. Por esta razão, alguns dos litígios tiveram, mesmo, de ser sanados em tribunal.
O Mosteiro de S. Bento da Vitória foi o único mosteiro beneditino masculino construído no Porto, tendo sido instituído em 1596, onde, antes, estavam os terrenos e casebres ocupados pelos judeus.
A sua construção terá, então, arrancado, mas, em Março de 1597, o rei Filipe II chamava à ordem a Câmara do Porto pelo facto da construção do mosteiro ter avançado sem a necessária autorização do monarca e, ao mesmo tempo, a Câmara era avisada que, de futuro, tal não deveria mais acontecer.
Talvez, por este facto, a construção só arrancaria, em pleno, em 1604, no local onde estavam as ruínas de uma antiga sinagoga.
 
 
 
“Convento maneirista com igreja cruciforme, de nave única precedida por galilé, capelas colaterais intercomunicantes e abóbada de berço em caixotões, e dois claustros. Capelas com retábulos de talha dourada de estilo nacional e joanino. O claustro principal tem motivo serliano. O cadeiral, de estilo nacional, com relevos narrativos da vida de São Bento de grande qualidade, é um dos melhores do estilo. O retábulo-mor constitui o mais grandioso exemplar do tipo de retábulo com tribuna de estilo nacional na variante em que as colunas alternam com pilastras. Retábulos de estilo joanino de vários andares e sanefa do arco triunfal também joanino, de forma tradicional”.
Fonte: monumentos.gov.pt
 
 
 
 

Em primeiro plano, a fachada do mosteiro voltada para a Rua de S. Bento da Vitória e cujas traseiras se debruçam sobre a Rua de Trás
 
 

O complexo monacal tinha dois claustros: o claustro dos carros e, o chamado claustro nobre que, mais tarde, seria coberto e tinha sido concluído em 1743, apresentando uma fonte no seu centro.
 
 
 
“O claustro contíguo à portaria, todo em cantaria, possui dois pisos separados por cornija e ritmados por duplas pilastras com vãos rectangulares entre elas. Em cada ala, abre-se no 1º piso três arcos plenos e no 2º janelas de sacada com bandeira, balustrada de cantaria e frontões triangulares e circular. Sobrepujando as coberturas, bolas sobre plintos no alinhamento das pilastras e cartelas com enrolamentos ao centro. O outro claustro, de três pisos separados por frisos, têm apenas duas alas com arcos plenos sobre pilares e janelas de guilhotina nos pisos superiores”.
Cortesia de Isabel Sereno e João Santos, 1994
 
 
 
 

Claustro dos carros do Mosteiro de S. Bento da Vitória
 



Mosteiro de S. Bento da Vitória e o claustro dos carros, em 1989, durante obras de restauro
 
 
 

Mosteiro de S. Bento da Vitória e o claustro nobre, actualmente
 
 
 
No que diz respeito à Igreja do Mosteiro de S. Bento da Vitória, o seu projecto é do arquitecto Diogo Marques Lucas, discípulo do italiano Filipe Terzio, em estilo clássico já deturpado pela Contra-Reforma, com uma harmonia, solidez e proporções equilibradas.
De notar os três nichos da fachada, nos quais estão representados São Bento, a Santa Escolástica, irmã gémea de São Bento e, ainda, Santa Gertrudes.
 
 
 

Fachada principal da igreja de S. Bento da Vitória, observando-se os três nichos

 
 
 

Gravura de Joaquim Villanova da igreja de S. Bento da Vitória, em 1833
 
 
 
Em 1693, a igreja, apresentando no seu exterior e interior as tipologias maneirista e barroca, estava concluída, embora tardasse até finais do século XVIII a conclusão do seu interior.
No coro alto da igreja, pode observar-se um belo cadeiral em talha, considerado um dos mais belos da Europa, obra concretizada entre 1716 e 1719 pelo entalhador bracarense Marceliano de Araújo, em parceria com Gabriel Rodrigues Álvares, de Landim. Nos seus espaldares estão colocados quadros policromados e que narram episódios da vida de S. Bento. 
Como curiosidade diga-se que a igreja possui um órgão imponente, alvo de várias intervenções e um outro como cópia em frente deste, apenas para dar uma ideia de simetria sem outra qualquer funcionalidade.
Por outro lado, o seu órgão, situado do lado do evangelho, possui 2022 tubos e, em tempos de rotina monástica, era tocado de 3 em 3 horas, alternando com o coro.
 
 
 

Interior da igreja de S. Bento da Vitória, actualmente – Fonte: oportoencanta.com
 
 

 
Ocupação das instalações do Mosteiro de S. Bento da Vitória após 1834
 
 
Durante a Guerra Peninsular, uma parte do mosteiro foi ocupada pelas tropas invasoras francesas e, posteriormente, pelas portuguesas, tendo servido como hospital militar.
Em 30 de Maio de 1834, na sequência da implantação da lei assinada por D. Pedro IV e proposta pelo seu ministro Joaquim António de Aguiar, ocorre a extinção das ordens religiosas, e o complexo monacal de S. Bento da Vitória foi confiscado pelo Estado.
Desocupados, o mosteiro e a sua igreja acabariam por passar para o Clero secular.
O Clero secular também referido, geralmente, na actualidade, como Clero diocesano, é a designação dada à parcela do clero da Igreja Católica Romana que desempenha actividades voltadas para o público em geral e que vive junto dos leigos, exercendo as mais variadas formas de apostolado e assegurando a administração da Igreja.
A igreja do Mosteiro de S. Bento da Vitória substituiria a Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Vitória  entre 1833 e 1852, durante as obras de reconstrução desta, que tinha sido alvo de um incêndio.
Depois, em 25 de Julho de 1853, a igreja do Mosteiro de S. Bento da Vitória torna-se sede da Arquiconfraria do Santíssimo e Imaculado Coração de Maria, a qual ficou detentora da Igreja por Alvará da Rainha D. Maria II.
Após 1834, as antigas instalações do mosteiro funcionaram como Tribunal, até 1864 e albergaram, ainda, várias unidades militares, onde estiveram aquarteladas, sucessivamente, tropas da Junta do Porto (1846-1847), o Regimento de Infantaria nº. 6, o Batalhão Nacional de Artilharia, o Batalhão de Caçadores nº 9, o Batalhão de Caçadores nº 1 e outros serviços militares, nomeadamente, a Reclusão Militar e o Tribunal Militar.
Na noite de 12 para 13 de Março de 1922, o imóvel foi atingido por um incêndio que destruiu a área ocupada pela Casa de Reclusão Militar, pelo Tribunal Militar e pelo quartel dos dois regimentos (Infantaria 31 e Engenharia).
Vinte anos volvidos sobre este episódio, em 1942, por decisão do Bispo D. Agostinho de Jesus e Sousa, a igreja e parte do edifício claustral foram confiados ao Mosteiro Beneditino de Singeverga.
Em 1977, o Mosteiro de S. Bento da Vitória é classificado como monumento nacional.
Nas décadas de oitenta e noventa do século XX, o mosteiro foi restaurado pelo IPPAR (1984-1990), sob orientação dos arquitectos Carlos Guimarães e Luís Soares Carneiro, o que permitiu a reinstalação de uma pequena comunidade de beneditinos e a instalação do Arquivo Distrital do Porto, na área do claustro dos carros e da Orquestra Sinfónica do Porto, na área do claustro nobre.
 
 
 

Antigo Refeitório dos Monges transformado num salão de exposições afecto ao Arquivo Distrital do Porto
 
 
 
Em 2007, dois anos após a orquestra ter ocupado a Casa da Música, foi cedida ao Teatro Nacional S. João a ala nascente e parte da ala sul e o claustro nobre, onde passaram a realizar-se espectáculos teatrais, musicais e outros eventos.
Os beneditinos ocupam a denominada “Cela dos Padres Beneditinos” na zona da igreja, a ala Norte e 3º piso da ala Oeste.
Cela, neste caso, refere-se ao local onde os monges se reúnem ou habitam.
 
 
 
 
Outros factos
 
 
Sobre o Mosteiro de S. Bento da Vitória, “O Arquivo Pitoresco”, de 1840, descreve uma cerimónia habitual que ocorria na sua igreja:
 
 
“No dia 5 de Março passava-se uma cerimónia assaz ridícula na Igreja de S. Bento da cidade do Porto. No altar colateral da direita, de hora a hora, estava um frade rezando os exorcismos e orações de levantamento de excomunhão; no fim das quais saía pela igreja abaixo batendo com umas varinhas de marmeleiro presas na extremidade de uma comprida cana, em as pessoas, que de joelhos queriam receber esta cerimónia. E como quase sempre os frades se desmandassem um pouco, deu isso lugar a algumas cenas incidentes, sendo por fim necessário ir uma guarda de polícia para a igreja, pois os frades não quiseram nunca quebrar por si, deixando de fazer a cerimónia”.
 
 
 
Por outro lado, em 1872, a igreja de S. Bento da Vitória celebrava o São Marçal substituindo, nesse ano, nessas festividades, a igreja dos Orfãos de Nossa Senhora da Graça que lhe ficava próxima.
 
 
 

In “Jornal do Porto” de 28 de Junho de 1872, pág. 2
 
 
 
 
 
Mais recentemente, sobre os azulejos da foto, abaixo, no Tripeiro I série, volume 2, nº 62 de 10 de Março de 1910, pág 412, o autor S.A., diz:
 
 “A bela sala da livraria de que roubaram os ricos azulejos, parte dos quais foram guarnecer uma propriedade pertencente ao vizinho João Pereira Vellado, era sumptuosa”.
 
 
 
 

Prédio na Rua S. Miguel, nº 4, antes de 2017
 
 
 
A  livraria referida, acima, era a do Convento de S. Bento da Vitória.
Em 2017, o painel de azulejos foi retirado e arrecadado pela Câmara do Porto.