quarta-feira, 14 de março de 2018

(Continuação 3)


Maria Coroada e o Cisma da Granja do Tedo


«Entre os anos de 1840 e 1847, não se sabe bem por que caminhos, a família dos Custódios (José Custódio, mestre escola, e Cristina Gaspar), pais de doze filhos, entregaram-se a um estranho culto para o qual arregimentaram numerosos adeptos. Presidia uma das filhas, Maria das Neves, que se intitulou Maria Coroada, espécie de sacerdotisa herética e devassa que reinventou uma torpe liturgia a partir de uma catequese antiga e cristã. Diz-se, para mais, que era mãe da Mulher-Homem de Granja do Tedo.
Finalmente o administrador do antigo concelho de S. Cosmado pôs fim, através de ameaças, àquelas práticas. Uma velha casa, no Povo de Baixo, voltada para o rio Tedo, é lembrada ainda como a Casa das Coroadas.»
Fonte: Site da Câmara Municipal de Tabuaço


 
Granja do Tedo
 
 
 
 
«Sendo este um culto popular, liderado por uma mística popular, em pleno século XIX, desde logo reflecte valores e opiniões, visões e expectativas, próprias do seu tempo e respectivo espaço sócio-cultural. E uma das mais marcantes é a sua concepção entrópica do mundo».
A Nova Eva era o catalisador de um Novo Mundo porque o velho estava esgotado, eivado de injustiça e corrupção. Maria das Neves representa a expressão de «uma ruralidade novecentista» além de «uma natureza prosaica e simplória embora expedita e confiante». Daí a sua ideia de que «os padres pouco fazem e muito comem», daí a «desconfiança face à Justiça» e a constatação do «poder discricionário e autoritário de reis e nobres». Este culto foi selvaticamente destruído em 1847 por ordem do administrador do concelho de São Cosmado tendo a sua «guerrinha» confiscado todos os livros, estandartes e alfaias cerimoniais. Trinta anos depois houve foguetes e vivas quando António das Neves, filha de Maria Coroada, veio do Porto em 1877 visitar a família na Granja do Tedo e chegou de comboio à Régua”.
Fonte: Editora “Apenas Livros”, Direcção de Ana Paula Guimarães e Revisão de Luís Filipe Coelho
 
 
 
“Ela descasou e casou, a si própria, a seus pais e a outros. Mudou o sexo a irmãs e filhas, batizou e rebatizou. Dizia-se o novo Messias, a terceira Eva, a Maria incumbida por Cristo de completar a obra de Deus na Terra. E celebrava cerimónias sentada num trono, vestida de branco, levando mais de uma centena de pessoas a acreditar que vinha aí o fim do mundo, mas antes apareceria o rei D. Sebastião.
Maria das Neves Custódio nasceu em 1816, na Granja do Tedo, filha do mestre-régio José Custódio, que nomeou Pai Eterno da seita, e de Cristina Gaspar, por si feita segunda Eva. Como Maria Coroada, reinou durante sete anos, transmitindo aos devotos a experiência da ida ao céu, à morada das almas e do Criador, de ver o fogo do purgatório ateado em sete camas e um cardeal de mitra na cabeça a lançar fogo pelas veias.
(…) A ideia terá vindo com um dos seus dez irmãos, o mais velho, militar regressado de Lisboa em 1840, ao fim de seis anos ao serviço do Regimento de Lanceiros. Não foi difícil, a Basílio, inspirar a família com o livro dos Mórmons e os folhetos sobre a maçonaria que trouxera na bagagem. Maria já desenvolvia a "arte" do curandeirismo, a partir dessa altura, sentou-se no trono, na Arca da Aliança, como batizara a casa dos pais, e começou a discursar sobre a sua viagem.”
Cortesia de Anabela Natário, semanário Expresso de 11 de Junho de 2018
 
 
 
“Freguesia do concelho de Tabuaço desde 1855, tendo pertencido anteriormente ao concelho de S. Cosmado integrado na comarca de Armamar, distrito de Viseu, bispado de Lamego, a Granja do Tedo que, segundo um recenseamento, de 1828, possuía 106 fogos e 380 indivíduos, gozou até 1836 das liberdades municipais inerentes ao estatuto de concelho.
O facto explicará porventura a relativa proeminência de que terá gozado e que parece poder deduzir-se da presença de um mestre-régio de primeiras letras no local, pelo menos desde os anos 30 do século passado.
Tal como a cosmogonia pregada pela profetiza, nos rituais do movimento conjugam-se influências cristãs e católicas com práticas de difícil identificação.
Mais do que na cosmogonia, essas práticas parecem ser muitas vezes uma paródia dos rituais católicos.
De notar primeiramente o papel central desempenhado pela casa da profetiza. Lugar privilegiado que é aliás visto como um cometimento divino. De facto, segundo Maria Coroada, a sua casa seria "a nova arca da Aliança" donde haveria de sair "a luz do novo mundo".
Espaço de representação da transformação do mundo, a casa tinha diferentes espaços atribuídos a este fim: a sala principal era o lugar onde decorriam todas as cerimónias religiosas e uma outra sala, onde estava pintado o rio Jordão, um local de iniciação onde os adeptos eram baptizados.
Na sala principal era oficiada a missa com os ouvintes voltados de costas para o oficiante e a comunhão ministrada sob a forma de gomos de laranja. Orações como o Pai-Nosso, a Avé-Maria e as ladainhas eram mantidas, mas o seu conteúdo transformado. No caso das ladainhas, por exemplo, a invocação dos nomes dos santos era substituída pela invocação de nomes de plantas.
A música e a dança acompanhavam todos os rituais do movimento. As autoridades que o reprimiram acusaram ainda os seus adeptos de se entregarem a práticas imorais, nomeadamente ao nudismo.
Maria Coroada chamou também a si o ministério de outros sacramentos. O casamento e o baptismo eram oficiados por ela e, tudo indica que, durante os anos que o movimento durou, ela tenha realmente destronado o padre da freguesia nas suas actividades paroquiais.
Uma das acusações que contra ela proferiram Pinho Leal e o Abade de Miragaia tem a ver com o facto de se ter permitido anular muitos casamentos canónicos celebrados, instituindo novas alianças matrimoniais. Esta "desordem nas famílias" teria atingido também a sua própria.
Descritos sinteticamente as crenças e rituais do movimento, resta-nos agora caracterizar o conteúdo da sua mensagem político-social. Se pensarmos nos numerosos exemplos de movimentos messiânicos medievais, modernos e contemporâneos, a existência duma mensagem deste tipo não constitui surpresa. De realçar, porém, porque parece ser menos habitual, pelo menos na época contemporânea, o facto de o movimento ter expressado uma mensagem político-social progressiva que nunca em nenhum momento se confunde com a defesa de referências tradicionais ou com qualquer forma de idealização do passado.
De facto, a crítica às hierarquias sociais tradicionais e à própria monarquia são contundentes.
A preconização do ensino feminino gratuito constitui um dos múltiplos aspectos em que no discurso do movimento se valoriza a imagem da mulher.
As pregações de Maria Coroada revelam ainda uma preocupação fundamental com os desvalidos da sociedade, os pobres, os inválidos, os velhos, os órfãos e as viúvas.
O relevo que é dado a esta questão parece indicar a crise de assistência pública resultante da extinção recente das ordens religiosas. À sua resolução se liga o essencial das propostas utópicas do movimento.
Neste sentido, preconiza-se a edificação duma espécie de asilos, primeiro custeados pelos membros de direito da Comunidade que são os lavradores e, mais tarde, auto-subsistentes. A fundação destes estabelecimentos iria permitir ainda aos lavradores expiarem o único crime que lhes era atribuível; o crime de "tirar marcos".
Fonte: Maria Fátima Sá e Melo Ferreira
 
 
Em 1847, o administrador do concelho de São Cosmado acabava com a seita.
Nascida em 1816, Maria Coroada viria a falecer em 1897.
 
 
 
Uma velha casa, no Povo de Baixo, voltada para o rio Tedo, é lembrada ainda como a Casa das Coroadas



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