Anexo ao Colégio de Nossa Senhora da Boavista, um pouco a
poente, existiu a Capela do Sagrado Coração de Jesus da Boavista mandada
construir por Cristina de Almeida Garrett e, cuja licença de obra, teve o n.º
218/1875, de 3 de Junho.
Aquele colégio
esteve instalado no edifício que foi a residência da família Almeida Garrett,
que o escritor costumava visitar e já por lá estaria em 1869.
Ficou para a
posteridade que numa dessas visitas, Almeida Garrett teve um acidente na
Carvalhosa, tendo caído do cavalo e sido arrastado vários metros, sofrendo
vários ferimentos.
O edifício em causa,
sito na Rua da Boavista, nº 168, continua a ostentar na sua fachada, um brasão
dos Silvas, Almeidas e Leitões e, hoje, aloja o Grande Colégio Universal.
No anúncio anterior
de 1876, pode observar-se que uma capela já fazia parte da oferta do colégio e
tinha, também, em funcionamento, o regime de internato.
Com o passar dos
anos, a frequência à capela era muita e, por isso, a Companhia de Jesus (Jesuítas)
que, entretanto, adquiriu a capela e uma casa (residência) anexa, viria a
erigir no lugar daquele templo, um outro, mais amplo e moderno, mas que pouco
tempo serviu.
A Companhia de
Jesus, após a expulsão do território nacional decretada pelo Marquês do Pombal,
tinha voltado a Portugal e recomeçado a sua actividade com a abertura, em 1858,
do Colégio de Campolide, em Lisboa. Na Rua da Boavista, já por aqui andava na
transicção de séculos, quando se viu envolvida no “Caso Calmon”.
Este caso, que
apaixonou os portuenses e o País, teve mesmo honras de subida ao Parlamento
para ser discutido.
Tudo começaria, em
termos públicos, quando no fim de uma missa dominical, ocorrida em 17 de
Fevereiro de 1901, Domingo Gordo, na igreja da Trindade, aconteceu uma cena de
gritaria, e empurrões.
Durante a algazarra,
contava certa imprensa, que José Calmon a exercer há uma década o cargo de
cônsul do Brasil no Porto, conseguiu fazer malograr uma tentativa de rapto de
sua filha, Rosa Calmon de 32 anos, à saída da missa.
Ao fundo da
escadaria de acesso àquele templo estacionara um veículo para o qual Rosa se
dirigiu com a conivência de algumas personalidades ligadas a importantes
famílias portuenses.
Para o impedir,
interveio o seu pai que, de bengala no ar, clamava que o acudissem.
Rosa, chorosa,
agarrada a um gradeamento, abraçada pela mãe em lágrimas, recusava-se a
acompanhar os pais.
Um jornalista do Diário
da Tarde, estando ali de passagem, foi em auxílio do amigo cônsul, tentando
despegar a filha das grades e encaminhá-la até à carruagem da família. Um
polícia à paisana deu também protecção, acabando por acompanhar a família
Calmon de regresso a casa.
Igreja da Trindade, em 1886 – Fonte: Revista “O Occidente”,
nº 9, pág. 252, segundo uma fotografia de Emílio Biel
A situação narrada vinha, no entanto, a ter os seus
antecedentes, há já aproximadamente um ano.
José Calmon, a fazer fé nos relatos da época, mantinha a
filha "numa espécie de cárcere privado", para contrariar, dizia-se,
as suas tendências "mórbidas".
Em Fevereiro de 1899, já Rosa Calmon tinha dirigido uma
carta ao ministro brasileiro (o embaixador) em Lisboa, Júlio de Melo e Alvim, na
qual expressava a sua vontade para dar seguimento à sua vocação religiosa com a
disponibilidade para entrar para um convento e, expondo-lhe ainda, a sua
dramática situação que, porém, o destinatário, simplesmente, ignorou.
Desesperada, e sem alguém que lhe valesse, poucos meses
depois, Rosa intentou uma fuga, mas acabou por ser apanhada na estação
ferroviária de Alfarelos, por agentes da polícia que a obrigaram a retornar a
casa. Daí em diante, a presença policial à porta da residência do cônsul tornou-se
permanente e Rosa decidiu interpelar publicamente o governador civil do Porto,
instando-o a tomar providências contra a ilegalidade da situação a que estava a
ser sujeita – sem sucesso.
Entretanto, o visado progenitor tentava impedir a entrada da
sua filha num convento de uma ordem religiosa e, por isso, temendo que Rosa
intentasse nova evasão, abriu um processo de interdição por demência da filha,
que correu na 4ª Vara Cível da Comarca do Porto e que teve a assistência ao
queixoso do advogado Bernardo Lucas.
Rosa pretendia
entrar para a congregação Irmãs de Santa Doroteia, depois, Associação de Santa
Doroteia e, mais tarde, Instituto das Irmãs de Santa Doroteia. A casa
provincial da congregação situava-se na Rua do Quelhas, em Lisboa, tendo anexa
uma Casa de Jesuítas, que não se intitulava como tal por ser proibido.
No Porto, a
congregação esteve, desde 1879, na Quinta do Sardão, onde abriram o Colégio do
Sagrado Coração de Jesus, por doacção de Maria de Almeida Garrett e, à data dos
factos, tinha também a gestão da Casa de Vilar, antiga Casa do Arcediago
Van-Zeller, na Rua do Vilar, que à sua frente tinha a madre Filomena Faria.
Dizia-se que na fuga
de Rosa estiveram envolvidas, também, as Doroteias nortenhas.
Sobre o assunto, que apaixonou os meios forenses e
psiquiátricos, nacionais e europeus, havia diversos pareceres, entre os quais o
do prestigiado psiquiatra Júlio de Matos (director do Hospital de Alienados
Conde de Ferreira) que contrariavam a entrada de Rosa Calmon para a vida
religiosa, para a qual ela dizia ser a sua vocação.
Por sua vez, Joaquim Urbano da Costa (subdelegado de saúde
do Porto) considerou que Rosa estava no funcionamento regular das suas
faculdades mentais.
O assunto, que fez manchete, não apenas nos jornais do
Porto, mas na Imprensa do país inteiro e também no Brasil, reavivou a velha
questão religiosa, tendo originado manifestações públicas e protestos contra a
influência e o poder das ordens religiosas então instaladas no País, mas também,
em contra-partida, muitas outras de apoio.
Mas, enquanto, juízes e médicos tentavam chegar a um acordo
sobre as faculdades mentais de Rosa e o cônsul brasileiro continuasse a manter
a filha sob vigilância policial, embora não tenha havido qualquer deliberação
judicial nesse sentido, alguns jornais católicos do Porto, como “O Norte” e “A
Palavra”, levantaram-se em indignação contra a violência e arbitrariedade do
cônsul e, promoveriam uma acção judicial contra José Calmon.
A lei portuguesa, à época, considerava a atitude do cônsul
como ilegal, mas ele afirmava que pelo cargo que desempenhava essas directivas
não se lhe aplicavam.
Curioso é, também, apresentar a leitura dos factos
acontecidos à saída daquela missa, de acordo com os interesses ideológicos
subjacentes dos narradores.
Assim, o “Correio
Nacional”, jornal liberal conservador, relata o seguinte cenário:
“À saída da Igreja da
Trindade, a senhora Rosa Calmon comunicou à sua mãe que não regressaria mais à
casa e que tencionava aceitar o alojamento de uma senhora amiga, D. Maria
Almeida Garrett, para, de seguida, cumprir a sua vontade de entrar para um
convento. Ao aperceber-se da declaração da filha, o cônsul brasileiro entrou em
descompensação irada, fazendo um grande alvoroço e ameaçando a filha a
bengaladas e de morte quem se aproximasse desta, ao mesmo tempo em que a puxava
para junto de si.”
Por sua vez, o mesmo
episódio contado por “O Século”, jornal republicano moderado, dizia:
“À saída da Igreja da Trindade, um grupo de
elementos reaccionários tentou raptar a filha do cônsul do Brasil para
enclausurá-la num convento. O pai cresceu em defesa da filha, defrontando-se
com um bando de clericais que lhe erguiam os punhos enquanto ele os afastava de
bengala em riste, ao mesmo tempo em que clamava pela ajuda do povo contra os
ladrões que lhe raptavam a menina. Nisso, um policial à paisana tentou tomar o
controle da situação e criar uma clareira para proteger a família Calmon dos
presumíveis raptores, deixando que o jornalista do Diário da Tarde se
aproximasse de Rosa, "brandamente" lhe desprendesse as mãos do
gradeamento onde ela se tinha agarrado e, rompendo "com serena
energia" o grupo que a rodeava, a encaminhasse, de braço dado, até à
carruagem dos pais”.
Um único ponto em comum
das duas visões do problema radicava no facto de que, Rosa Calmon, de maior
idade, há muito vivia contrariada na casa de seus pais, que a impediam
de seguir a sua vocação religiosa.
Importa alertar que, a referência acima feita e exarada na
notícia do Jornal “Correio Nacional”, identificava como cúmplice de Rosa, um
membro da família Almeida Garrett, que teria por certo bons contactos no
destino que Rosa pretendia atingir, pois aquela família tinha vendido a capela
anexa a um palacete onde moraram, à Companhia de Jesus.
À época, a capela anexa ao palacete bem como uma casa
próxima que funcionava como residência da Companhia de Jesus, já estavam na
posse dos Jesuítas, há algum tempo.
A entrada de Rosa Calmon na vida religiosa passaria, numa
primeira fase, pela Rua da Boavista, tudo levando a crer que, posteriormente,
transitaria para a sede daquela congregação para Campolide, em Lisboa.
O episódio que teve lugar na escadaria da igreja da
Trindade, naquela manhã de Fevereiro, desencadeou uma verdadeira fúria anticlerical
que, iniciando-se logo de imediato, na cidade do Porto, rapidamente se estendeu
a Lisboa e a outros pontos do país.
No dia seguinte
àquele em que houve a tentativa de rapto de Rosa Calmon, grupos de populares começaram
a fazer justiça pelas próprias mãos.
A madre Filomena
Faria não facilitou e requisitou logo no dia 17 de Fevereiro a protecção das autoridades
para a casa da Rua do Vilar.
As manifestações
ocorreram de forma violenta junto da redacção do jornal católico "A
Palavra", que ficava, nessa altura, nas imediações da Sé.
A 27 de Fevereiro,
foi apedrejada, após manifestações de violenta hostilidade, a casa e a capela
dos Pestanas, à Rua do Almada.
Esta família do
Porto era acusada de ter influenciado o rapto.
Na Sé, o mesmo local, sendo que na foto mais antiga, à
esquerda, se pode observar que o jornal “A Palavra” ocupou, até ao seu
encerramento em 1911, o prédio de rés-do-chão e 1º andar
Os protestos
estender-se-iam, ainda, à Rua da Boavista, às instalações ocupadas pelos
Jesuítas, pois, era pública a sua ligação às Doroteias e dizia-se que teriam escondido
a Rosa Calmon durante a primeira fuga.
Aqui, os apedrejamentos tiveram como alvos uma capela e uma
casa que servia de residência, sob jurisdição dos Jesuítas, onde agora está o
edifício em que funcionou uma repartição de fardamento do Exército e estava à
altura dos acontecimentos a sede da Companhia de Jesus (Jesuítas) com a sua
capela dedicada ao Coração de Jesus, adquirida à família Almeida Garrett, que teve
bem próximo a sua morada.
Em 1870, os Jesuítas tinham regressado à cidade, após a sua
expulsão fundamentada no articulado do decreto-real de 28 de Maio de 1834,
instalando-se, temporariamente, na Rua do Vilar, depois na Rua da Sovela (Rua dos
Mártires da Liberdade) e, finalmente, na Rua da Boavista, numas casas junto da
capela do Sagrado Coração de Jesus da família Garrett.
A dita Capela do Sagrado Coração de Jesus, que tinha sido
mandado erguer por Cristina Almeida Garrett, teve a licença de obra n.º 218 de
3 de Junho de 1875.
Fachada da Capela do Sagrado Coração de Jesus, na Rua da
Boavista – Cortesia do arquitecto Luís Bourbon Aguiar Branco
Da família Garrett, era suspeita de intervenção no caso, a
favor de Rosa, Maria Garrett Correia de Freitas.
Para culminar, a multidão dirigiu-se para casa do cônsul,
prestando-lhe o apoio e, ao mesmo tempo, manifestando publicamente o seu ódio
que, naqueles tempos, nutriam pelas ordens religiosas e que germinava desde as
lutas do Cerco do Porto e que iriam desaguar, em cachão, na implantação da
República.
Nos últimos dias de Fevereiro e início de Março, o assunto subiu
ao Parlamento.
O Partido Progressista não perdeu a oportunidade para
denunciar a prepotência e o despotismo das autoridades na resposta às
perturbações da ordem pública.
Mas, sobretudo, a oposição conseguiu fazer do caso uma arma
política eficaz para confrontar o governo com um dos pontos mais melindrosos da
questão religiosa nacional e que se prendia à situação de ilegalidade em que se
encontravam as corporações religiosas, oficialmente proibidas por lei desde
1834.
Em princípios de Março, o governo brasileiro face à sucessão
de acontecimentos achou por bem acabar com o alvo da polémica, ordenando ao
cônsul do Brasil a sua transferência para outro posto.
Não obstante a contrariedade, o cônsul brasileiro abandonou o
país levando consigo toda a família, incluindo, naturalmente, Rosa.
Os ressentimentos ainda pairaram na sociedade portuense
durante algum tempo.
Assim, no dia 14 de Maio de 1901, na Rua de Santa Catarina,
no Porto, ao cruzarem-se dois prestigiados jornalistas da cidade: João de
Meneses, do jornal republicano "O Norte" e Manuel Frutuoso da
Fonseca, do diário católico "A Palavra"…digladiaram-se argumentos e o
resultado foi uma cena de pancadaria à antiga portuguesa.
O caso Calmon acabaria por esmorecer, mas aquando da
implantação da República, alguns anos depois, a sanha dos portuenses contra os
Jesuítas havia de renascer.
O Sacré Couer e a Implantação da República
Com a chegada da
República, em Outubro de 1910, novamente os Jesuítas irão ser expulsos.
Desta vez, é
reanimada a anterior lei de 1834, mas estava já em vigor, também, a denominada “Lei
Hintze Ribeiro” de 1901, surgida após o caso de Rosa Calmon.
O Estado, em
sequência, toma posse das propriedades deixadas para trás.
À data, tinha sido
começada a construir, alguns meses antes, na Rua da Boavista, no lugar da
capela mandada construir, em 1875, por Cristina Almeida Garrett, uma outra
capela mais sumptuosa, que já era propriedade dos Jesuítas, bem como umas casas
anexas.
Desenho da fachada
da nova Capela do Sagrado Coração de Jesus, integrante do projecto submetido à
Câmara Municipal do Porto e que obteve a licença de obra nº 617, de 12 de Maio
de 1910 – Fonte: GISA – CMP
Recriação das
fachadas da Capela do Sagrado Coração de Jesus e da Casa da Companhia, que lhe
era anexa - Cortesia do arquitecto Luís Bourbon Aguiar Branco
Em Outubro de 1910, os
Jesuítas, no Porto, iriam, portanto, passar um mau bocado.
Era Superior da residência dos Jesuítas do Porto, o padre
José Joaquim de Magalhães.
Na noite de 5 para 6, a populaça juntou-se em grande
algazarra e com os gritos costumados, diante da residência, tendo sido
disparados alguns tiros.
Pela manhã, o padre Magalhães celebrou missa à porta
fechada, à qual assistiram os irmãos.
À noite, houve novo assalto, mais audacioso que o primeiro.
Os populares pelas 10 horas, penetraram em casa, valendo-se
duma escada das obras.
Os padres Magalhães e Joaquim dos Santos Abranches assistiam
com os irmãos Coadjutores a tais atentados, escondidos no prédio contíguo de
Ferreira Ramalho, tesoureiro da capela.
A seguir se exibe o texto da carta emitida pelo
Governador-Civil do Porto, Paulo Falcão, e dirigida ao juiz Diogo Tavares de
Mello Leotte.
No dia 11, o destinatário do ofício transcrito fez a
aposição dos selos nas portas da residência, assistindo o comissário da
polícia.
Entretanto, no Jornal de Notícias do dia 15, era dado conta
de novos desenvolvimentos sobre o caso, devendo notar-se que as escolas “Jesus
Maria José”, na realidade, não eram administradas por Jesuítas, como estava
explicitado na notícia, abaixo.
No dia 15 de Outubro, o padre Magalhães e o padre Sebastião
Sequeira seriam presos, numa quinta do Douro, para onde tinham fugido e chegado
na véspera.
Em 12 de Agosto de 1916, por decisão do então Ministro da Guerra, foi deliberado criar no Porto uma filial do Depósito Geral de Fardamentos e instalá-la, na
Rua da Boavista, onde, antes, tinham morado os Jesuítas. As instalações respectivas passariam para a posse do
Estado e a nova capela foi desafectada do culto e nela instalada a sucursal do
Depósito de Fardamentos, vulgo Casão Militar, que funcionou durante décadas do
século passado, e cujas instalações estão hoje ao abandono.
A capela e a
residência dos Jesuítas seriam avaliadas em 15 contos e uma biblioteca, aí
existente, em 900,000 reis.
É nuns documentos
afectos àquela transacção que aparecerá referido um conjunto de prédios que é
denominado de Sacré Couer, fazendo alusão, porventura, à capela existente que,
curiosamente, terá de largura de fachada 11, 20 metros.
Aspecto da fachada
do prédio que o Estado construiu no lugar da antiga Capela Sagrado Coração de
Jesus - Cortesia do arquitecto Luís Bourbon Aguiar Branco
Sobre o prédio onde
esteve, durante várias décadas, o Casão Militar, o arquitecto Luís Bourbon
Aguiar Branco, na revista "O Tripeiro", 7.ª Série de Junho de 2017, entende que a sua construção teve lugar entre 1929 e 1932, terá
tido a concepção de um arquitecto lisboeta e, curiosamente, a sua fachada
apresenta uma largura de 15,80 metros, o que terá determinado a demolição total
da fachada da capela existente.