sexta-feira, 28 de maio de 2021

25.124 O caso Calmon e a Capela do Sagrado Coração de Jesus da Boavista

 

Anexo ao Colégio de Nossa Senhora da Boavista, um pouco a poente, existiu a Capela do Sagrado Coração de Jesus da Boavista mandada construir por Cristina de Almeida Garrett e, cuja licença de obra, teve o n.º 218/1875, de 3 de Junho.
Aquele colégio esteve instalado no edifício que foi a residência da família Almeida Garrett, que o escritor costumava visitar e já por lá estaria em 1869.
Ficou para a posteridade que numa dessas visitas, Almeida Garrett teve um acidente na Carvalhosa, tendo caído do cavalo e sido arrastado vários metros, sofrendo vários ferimentos.
O edifício em causa, sito na Rua da Boavista, nº 168, continua a ostentar na sua fachada, um brasão dos Silvas, Almeidas e Leitões e, hoje, aloja o Grande Colégio Universal.
 
 

“Grande Colégio Universal” na Rua da Boavista, nº 168 (antiga casa nº 112)
 
 
 

Publicidade ao Colégio de Nossa Senhora da Boavista, no “Jornal do Porto” de 1 de Outubro de 1876
 
 
No anúncio anterior de 1876, pode observar-se que uma capela já fazia parte da oferta do colégio e tinha, também, em funcionamento, o regime de internato.
Com o passar dos anos, a frequência à capela era muita e, por isso, a Companhia de Jesus (Jesuítas) que, entretanto, adquiriu a capela e uma casa (residência) anexa, viria a erigir no lugar daquele templo, um outro, mais amplo e moderno, mas que pouco tempo serviu.
A Companhia de Jesus, após a expulsão do território nacional decretada pelo Marquês do Pombal, tinha voltado a Portugal e recomeçado a sua actividade com a abertura, em 1858, do Colégio de Campolide, em Lisboa. Na Rua da Boavista, já por aqui andava na transicção de séculos, quando se viu envolvida no “Caso Calmon”.
Este caso, que apaixonou os portuenses e o País, teve mesmo honras de subida ao Parlamento para ser discutido.
Tudo começaria, em termos públicos, quando no fim de uma missa dominical, ocorrida no mês de Fevereiro de 1901, na igreja da Trindade, aconteceu uma cena de gritaria, e empurrões.
Durante a algazarra, contava certa imprensa, que José Calmon a exercer há uma década o cargo de cônsul do Brasil no Porto, conseguiu fazer malograr uma tentativa de rapto de sua filha, Rosa Calmon de 32 anos, à saída da missa.
Ao fundo da escadaria de acesso àquele templo estacionara um veículo para o qual Rosa se dirigiu com a conivência de algumas personalidades ligadas a importantes famílias portuenses.
Para o impedir, interveio o seu pai que, de bengala no ar, clamava que o acudissem.
Rosa, chorosa, agarrada a um gradeamento, abraçada pela mãe em lágrimas, recusava-se a acompanhar os pais.
Um jornalista do Diário da Tarde, estando ali de passagem, foi em auxílio do amigo cônsul, tentando despegar a filha das grades e encaminhá-la até à carruagem da família. Um polícia à paisana deu também protecção, acabando por acompanhar a família Calmon de regresso a casa.
 
 

Igreja da Trindade, em 1886 – Fonte: Revista “O Occidente”, nº 9, pág. 252, segundo uma fotografia de Emílio Biel
 
 
 
A situação narrada vinha, no entanto, a ter os seus antecedentes, há já aproximadamente um ano.
José Calmon, a fazer fé nos relatos da época, mantinha a filha "numa espécie de cárcere privado", para contrariar, dizia-se, as suas tendências "mórbidas".
Em Fevereiro de 1899, já Rosa Calmon tinha dirigido uma carta ao ministro brasileiro (o embaixador) em Lisboa, Júlio de Melo e Alvim, na qual expressava a sua vontade para dar seguimento à sua vocação religiosa com a disponibilidade para entrar para um convento e, expondo-lhe ainda, a sua dramática situação que, porém, o destinatário, simplesmente, ignorou.
Desesperada, e sem alguém que lhe valesse, poucos meses depois, Rosa intentou uma fuga, mas acabou por ser apanhada na estação ferroviária de Alfarelos, por agentes da polícia que a obrigaram a retornar a casa. Daí em diante, a presença policial à porta da residência do cônsul tornou-se permanente e Rosa decidiu interpelar publicamente o governador civil do Porto, instando-o a tomar providências contra a ilegalidade da situação a que estava a ser sujeita – sem sucesso.
Entretanto, o visado progenitor tentava impedir a entrada da sua filha num convento de uma ordem religiosa e, por isso, temendo que Rosa intentasse nova evasão, abriu um processo de interdição por demência da filha, que correu na 4ª Vara Cível da Comarca do Porto e que teve a assistência ao queixoso do advogado Bernardo Lucas.
Sobre o assunto, que apaixonou os meios forenses e psiquiátricos, nacionais e europeus, havia diversos pareceres, entre os quais o do prestigiado psiquiatra Júlio de Matos (director do Hospital de Alienados Conde de Ferreira) que contrariavam a entrada de Rosa Calmon para a vida religiosa, para a qual ela dizia ser a sua vocação.
Por sua vez, Joaquim Urbano da Costa (subdelegado de saúde do Porto) considerou que Rosa estava no funcionamento regular das suas faculdades mentais.
O assunto, que fez manchete, não apenas nos jornais do Porto, mas na Imprensa do país inteiro e também no Brasil, reavivou a velha questão religiosa, tendo originado manifestações públicas e protestos contra a influência e o poder das ordens religiosas então instaladas no País, mas também, em contra-partida, muitas outras de apoio.
Mas, enquanto, juízes e médicos tentavam chegar a um acordo sobre as faculdades mentais de Rosa e o cônsul brasileiro continuasse a manter a filha sob vigilância policial, embora não tenha havido qualquer deliberação judicial nesse sentido, alguns jornais católicos do Porto, como “O Norte” e “A Palavra”, levantaram-se em indignação contra a violência e arbitrariedade do cônsul e, promoveriam uma acção judicial contra José Calmon.
A lei portuguesa, à época, considerava a atitude do cônsul como ilegal, mas ele afirmava que pelo cargo que desempenhava essas directivas não se lhe aplicavam.
Curioso é, também, apresentar a leitura dos factos acontecidos à saída daquela missa, de acordo com os interesses ideológicos subjacentes dos narradores.
Assim, o “Correio Nacional”, jornal liberal conservador, relata o seguinte cenário:
 
“À saída da Igreja da Trindade, a senhora Rosa Calmon comunicou à sua mãe que não regressaria mais à casa e que tencionava aceitar o alojamento de uma senhora amiga, D. Maria Almeida Garrett, para, de seguida, cumprir a sua vontade de entrar para um convento. Ao aperceber-se da declaração da filha, o cônsul brasileiro entrou em descompensação irada, fazendo um grande alvoroço e ameaçando a filha a bengaladas e de morte quem se aproximasse desta, ao mesmo tempo em que a puxava para junto de si.”
 
Por sua vez, o mesmo episódio contado por “O Século”, jornal republicano moderado, dizia:
 
“À saída da Igreja da Trindade, um grupo de elementos reaccionários tentou raptar a filha do cônsul do Brasil para enclausurá-la num convento. O pai cresceu em defesa da filha, defrontando-se com um bando de clericais que lhe erguiam os punhos enquanto ele os afastava de bengala em riste, ao mesmo tempo em que clamava pela ajuda do povo contra os ladrões que lhe raptavam a menina. Nisso, um policial à paisana tentou tomar o controle da situação e criar uma clareira para proteger a família Calmon dos presumíveis raptores, deixando que o jornalista do Diário da Tarde se aproximasse de Rosa, "brandamente" lhe desprendesse as mãos do gradeamento onde ela se tinha agarrado e, rompendo "com serena energia" o grupo que a rodeava, a encaminhasse, de braço dado, até à carruagem dos pais”.
 
 
Um único ponto em comum das duas visões do problema radicava no facto de que, Rosa Calmon, de maior idade, há muito vivia contrariada na casa de seus pais, que a impediam de seguir a sua vocação religiosa.
Importa alertar que, a referência acima feita e exarada na notícia do Jornal “Correio Nacional”, identificava como cúmplice de Rosa, um membro da família Almeida Garrett, que teria por certo bons contactos no destino que Rosa pretendia atingir, pois aquela família tinha vendido a capela anexa a um palacete onde moraram, à Companhia de Jesus.
À época, a capela anexa ao palacete bem como uma casa próxima que funcionava como residência da Companhia de Jesus, já estavam na posse dos Jesuítas, há algum tempo.
A entrada de Rosa Calmon na vida religiosa passaria, numa primeira fase, pela Rua da Boavista, tudo levando a crer que, posteriormente, transitaria para a sede daquela congregação para Campolide, em Lisboa.
O episódio que teve lugar na escadaria da igreja da Trindade, naquela manhã de Fevereiro, desencadeou uma verdadeira fúria anticlerical que, iniciando-se logo de imediato, na cidade do Porto, rapidamente se estendeu a Lisboa e a outros pontos do país.
No dia seguinte àquele em que houve a tentativa de rapto de Rosa Calmon, grupos de populares apedrejaram, após manifestações de violenta hostilidade, a casa e a capela dos Pestanas à Rua do Almada.
Esta família do Porto era acusada de ter influenciado o rapto.
As manifestações ocorreram também e de forma violenta junto da redacção do jornal católico "A Palavra", que ficava, nessa altura, nas imediações da Sé.
 
 

Na Sé, o mesmo local, sendo que na foto mais antiga, à esquerda, se pode observar que o jornal “A Palavra” ocupou, até ao seu encerramento em 1911, o prédio de rés-do-chão e 1º andar
 
 
 
Os protestos estender-se-iam, ainda, à Rua da Boavista, às instalações ocupadas pelos Jesuítas.
Aqui, os apedrejamentos tiveram como alvos uma capela e uma casa que servia de residência, sob jurisdição dos Jesuítas, onde agora está o edifício em que funcionou uma repartição de fardamento do Exército e estava à altura dos acontecimentos a sede da Companhia de Jesus (Jesuítas) com a sua capela dedicada ao Coração de Jesus, adquirida à família Almeida Garrett, que teve bem próximo a sua morada.
Para culminar, a multidão dirigiu-se para casa do cônsul, prestando-lhe o apoio e, ao mesmo tempo, manifestando publicamente o seu ódio que, naqueles tempos, nutriam pelas ordens religiosas e que germinava desde as lutas do Cerco do Porto e que iriam desaguar, em cachão, na implantação da República.
Nos últimos dias de Fevereiro e início de Março, o assunto subiu ao Parlamento.
O Partido Progressista não perdeu a oportunidade para denunciar a prepotência e o despotismo das autoridades na resposta às perturbações da ordem pública.
Mas, sobretudo, a oposição conseguiu fazer do caso uma arma política eficaz para confrontar o governo com um dos pontos mais melindrosos da questão religiosa nacional e que se prendia à situação de ilegalidade em que se encontravam as corporações religiosas, oficialmente proibidas por lei desde 1834.
Em princípios de Março, o governo brasileiro face à sucessão de acontecimentos achou por bem acabar com o alvo da polémica, ordenando ao cônsul do Brasil a sua transferência para outro posto.
Não obstante a contrariedade, o cônsul brasileiro abandonou o país levando consigo toda a família, incluindo, naturalmente, Rosa.
Os ressentimentos ainda pairaram na sociedade portuense durante algum tempo.
Assim, no dia 14 de Maio de 1901, na Rua de Santa Catarina, no Porto, ao cruzarem-se dois prestigiados jornalistas da cidade: João de Meneses, do jornal republicano "O Norte" e Manuel Frutuoso da Fonseca, do diário católico "A Palavra"…digladiaram-se argumentos e o resultado foi uma cena de pancadaria à antiga portuguesa.
O caso Calmon acabaria por esmorecer, mas aquando da implantação da República, alguns anos depois, a sanha dos portuenses contra os Jesuítas havia de renascer.
Com a chegada da República, em Outubro de 1910, e a expulsão dos Jesuítas, o Estado tomou posse das propriedades deixadas para trás.
À capela mandada construir por Cristina Almeida Garrett e comprada pelos Jesuítas havia de suceder uma outra mais imponente que, à data da implantação da República, ainda não estava terminada.
 
 
 
 
Desenho da fachada da nova Capela do Sagrado Coração de Jesus, integrante do projecto submetido à Câmara Municipal do Porto e que obteve a licença de obra nº 617, de 12 de Maio de 1910 – Fonte: GISA – CMP


 

Pedido de licenciamento de construção de capela Sagrado Coração de Jesus, no qual o requerente era um conhecido mestre-de-obras da cidade – Fonte: GISA - CMP
 
 
 
 

Por aqui, já estiveram, em sucessão, duas capelas consagradas ao Sagrado Coração de Jesus – Fonte: Google maps
 
 

À esquerda, aquela que foi, na Rua da Boavista, a residência dos Jesuítas - Fonte: Google maps
 
 
 
Em Outubro de 1910, os Jesuítas, no Porto, iriam passar um mau bocado.
Era Superior da residência dos Jesuítas do Porto, o padre José Joaquim de Magalhães.
Na noite de 5 para 6, a populaça juntou-se em grande algazarra e com os gritos costumados, diante da residência, tendo sido disparados alguns tiros.
Pela manhã, o padre Magalhães celebrou missa à porta fechada, à qual assistiram os irmãos.
À noite, houve novo assalto, mais audacioso que o primeiro.
Os populares pelas 10 horas, penetraram em casa, valendo-se duma escada das obras.
Os padres Magalhães e Joaquim dos Santos Abranches assistiam com os irmãos Coadjutores a tais atentados, escondidos no prédio contíguo de Ferreira Ramalho, tesoureiro da capela.
A seguir se exibe o texto da carta emitida pelo Governador-Civil do Porto, Paulo Falcão, e dirigida ao juiz Diogo Tavares de Mello Leotte.
 
 
 
 

In Jornal “A Palavra” de 12 de Outubro de 1910
 
 
 
No dia 11, o destinatário do ofício transcrito fez a aposição dos selos nas portas da residência, assistindo o comissário da polícia.
Entretanto, no Jornal de Notícias do dia 15, era dado conta de novos desenvolvimentos sobre o caso, devendo notar-se que as escolas “Jesus Maria José”, na realidade, não eram administradas por Jesuítas, como estava explicitado na notícia, abaixo.
 
 
 


 
 
No dia 15 de Outubro, o padre Magalhães e o padre Sebastião Sequeira seriam presos, numa quinta do Douro, para onde tinham fugido e chegado na véspera.
As instalações na Rua da Boavista, antes ocupadas pelos Jesuítas, passariam para a posse do Estado e a nova capela desafectada do culto e nela instalada a sucursal do Depósito de Fardamentos, vulgo Casão Militar, que funcionou durante décadas do século passado, e cujas instalações estão hoje ao abandono.
A capela e a residência dos Jesuítas seriam avaliadas em 15 contos e uma biblioteca, aí existente, em 900,000 reis.

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