Em 10 de Julho de 1372, na igreja medieval de São Salvador
de Tagilde, Vizela, encontrava-se D. Fernando (1367-1383) com os emissários de
João de Gante, duque de Lencastre, o quarto filho do rei Eduardo III de
Inglaterra.
João de Gante foi casado, em segundas núpcias, com a
princesa Constança, filha do falecido rei Pedro I de Castela, o Cruel.
Então, seria assinado o Tratado
de Tagilde, o primeiro tratado Luso-Britânico que, após algumas outras
contribuições perdurará, na sua essência, até aos dias de hoje. Um obelisco
junto daquela igreja recorda a efeméride, sendo que ela aparece como sede de paróquia
nas inquirições de 1258.
Pela letra daquele tratado, o rei português ajudaria João de
Gante nas pretensões de conquista do trono de Leão e Castela e na deposição de
Henrique II.
Em contra partida, através dos conflitos inerentes à
disputa, os territórios conquistados por D. Fernando, em Aragão, passariam a
fazer parte de Portugal.
Os tempos que se seguiram foram de conflitos constantes e, apenas seriam estancados, pela assinatura do Tratado de Salvaterra de Magos e, em
sequência, pelo casamento duma filha de D. Fernando, D. Beatriz, com D. João I
de Castela, que sucederia a Henrique II, entretanto falecido.
Falecido, também, D. Fernando, em 1383, é D. João I de
Castela, que passa a reclamar o trono de Portugal.
Após as lutas pela independência e da vitória que os
portugueses tinham obtido a 14 de Agosto de 1385, nos campos de São Jorge, na
batalha de Aljubarrota, os conflitos não cessariam.
Para o alcance daquela vitória contribuiu, decisivamente, a
contratação pelos portugueses, de arqueiros ingleses, cujo aboletamento ficou a
cargo dos burgueses do Porto.
Naquele momento, o duque de Lencastre viu aí a oportunidade
de tentar, novamente, fazer valer os seus direitos sobre o reino de Castela. Em
sequência, organizou uma armada e, vindo da Inglaterra, desembarcou na Corunha
com cerca de cinco mil homens.
Em 1 de Novembro de 1386, na Ponte do Mouro, sobre o rio Mouro, em Monção, o rei D. João I e o
Duque de Lencastre, de Inglaterra, encontraram-se pessoalmente e assinaram o
chamado Tratado de Monção.
A gravura anterior é uma reprodução de Gouveia Portuense, a
partir de uma iluminura que se encontra no Museu Britânico de Londres, ilustrando
um banquete medieval entre o Duque de Lencastre e o Rei D. João I, com
convivas, civis e religiosos, a serem servidos por criados.
Os termos do Tratado de Monção definia as condições de
cooperação militar entre os dois países e estabelecia os pormenores do
casamento entre o monarca português e D. Filipa de Lencastre, filha do Duque,
que consta era loura, de olhos azuis, recatada, austera e uma crente muito
fervorosa.
De imediato, D. Filipa de Lencastre e a sua comitiva
encetaria a viagem para a cidade do Porto
“A família do duque
estava aos cuidados dos beneditinos, no mosteiro de São Salvador de Cela Nova,
na Galiza, a curta distância do Alto Minho. No entanto, D. João I não
manifestou especial interesse em conhecer nenhuma das infantas, concordando em
contrair matrimónio com a mais velha, Filipa, de 27 anos. O que, pelos padrões
da época, era já uma idade um pouco avançada para um primeiro casamento.
O duque ordenou que
Filipa fosse prontamente conduzida ao Porto, onde o casamento se haveria de
celebrar. Para não se sentir sozinha, D. Filipa fez-se acompanhar da sua irmã
mais nova, Joana, e de várias damas de companhia... E ainda de um bispo, um
condestável, um almirante, um marechal e várias altas personalidade da corte
inglesa... E ainda de cem lanceiros e mais duzentos arqueiros a cavalo!
A numerosa caravana
entrou no Porto pela porta do Olival (Cordoaria) "onde foi recebida com
grã festa e prazer" – nas palavras do cronista Fernão Lopes. À
sua espera estava já o bispo do Porto, o condestável Nuno Álvares Pereira, o
alcaide-mor da cidade João Rodrigues de Sá (o Sá das Galés) e outras
individualidades locais, para além de muito povo. D. Filipa recolheu ao paço
episcopal – que não era o edifício atual, mas um anterior, sensivelmente
no mesmo local, junto à Sé. O resto do séquito ter-se-á hospedado por diversos
pontos da cidade.
Enquanto isso e sem
grande pressa em conhecer a noiva, D. João I partiu para o Alentejo e depois
foi até Lisboa – eventualmente visitando Inês Pires, com quem já
tinha dois filhos, apesar do voto de castidade a que estava vinculado por ser
mestre da Ordem de Avis. Mas, após algumas semanas, D. João I veio ao Porto e
os noivos acabaram finalmente por se conhecer. Falaram na presença do bispo e
trocaram presentes, após o que D. João partiu para Guimarães, deixando os dias
fluir...
Cortesia de “portodhonra.com/”
Pelo sul do País,
andou D. João I nos seu afazeres reais durante umas poucas de semanas. Depois,
partiu para o norte e na passagem pelo Porto, a caminho de Guimarães, vai pela
primeira vez conhecer Filipa de Lencastre.
É Fernão Lopes quem
nos descreve, na “Chronica DelRey D.
Joam I de Boa Memoria e dos Reys de Portugal o Decimo”, a ocorrência:
“El-rei partio de
Évora, e o Condestabre com ele: e quando chegou ao Porto achou hí a Infante
Dona Felipa, sua molher que havia de ser, e pousou em S. Francisco, e em outro
dia foi ver a Infante, que ainda não vira, e falou com ela, presente aquele
bispo, per um bom espaço, e espedio-se, e foi jantar, e depois que el-rei
comeo, mandou à Infante suas jóias, e ela a ele, (...) : e el-rei esteve ali
poucos dias, e foi-se caminho de Guimarães.”
Agora em Guimarães,
cerca de três meses se tinham passado sobre a assinatura do Tratado de Monção e
D. João continuava sem dar mostra de pretender realizar o casamento, mas
pressionado pelo duque de Gant e pelos seus conselheiros de que se aproximava a
Quaresma e casar, nessa quadra, trazia má sorte, acabou por se decidir.
Não podendo adiar
mais o casamento, em 1 de Fevereiro de 1387, uma 6ª Feira, D. João I
parte de Guimarães, cavalga toda a noite e pela manhã estava no Porto.
O bispo João III rapidamente conduziu D. Filipa à Sé e a
cerimónia religiosa do casamento aconteceu nesse Sábado.
Definidos os
acontecimentos que conduziram ao real casamento, interessa observar os termos
em que tais actos ocorreram.
Como era tradição nesses tempos, após a cerimónia religiosa,
os noivos separaram-se: D. Filipa regressou ao paço episcopal, onde tinha
estado nos últimos três meses, enquanto D. João recolhia ao convento de São
Francisco – o local que costumava escolher, quando se encontrava de permanência
na cidade.
Casamento, a 2 de Fevereiro de 1387, na Sé do Porto, de D.
João I e D. Filipa de Lencastre – Fonte: AHMP
A gravura anterior é um óleo sobre madeira (1960), de
Alberto Sousa, reprodução de uma iluminura que se encontra no Museu Britânico
de Londres, ilustrando a cerimónia do casamento entre o rei D. João I e a filha
do Duque de Lencastre, D. Filipa.
Na época, um casamento real constava de três partes: as
bênçãos, a boda e a consumação. O que aconteceu na Sé, naquele dia, foram
apenas as bênçãos. No dia 5 de Fevereiro de 1387, chegou ao Porto a esperada
bula papal que libertava D. João I do voto de castidade. Podia, assim, casar-se
e gerar herdeiros ao trono.
D. João I era Mestre de Aviz, tinha voto de castidade e necessitava para casar-se daquele documento que o papa Bonifácio IX acabaria por emitir.
A esta decisão não era estranha a influência de João
Rodrigues de Sá (Sá das Galés) que, tendo sido nomeado por D. João I, em
1386, seu camareiro-mor, cargo que passaria aos seus descendentes, foi seu
Embaixador em Roma, nos Estados Pontifícios e conduziria as negociações para
obtenção da referida bula.
Assim, a consumação da união iria ter lugar a 14 de
Fevereiro.
“Na manhã do dia 14,
uma quinta-feira, el-rei e a rainha – cada um montado no seu cavalo
branco – saíram lado-a-lado do paço episcopal para uma curtíssima
viagem até à Sé. Aí ouviram missa, pregação e "aquelas palavras que a
Santa Igreja manda que se digam em tal sacramento", como nos contou Fernão
Lopes. Daí, os noivos regressaram ao palácio do bispo, para o grande banquete
real. Os burgueses do Porto sentaram-se ao lado de importantes figuras das
cortes portuguesa e inglesa, pois D. João I estava bem ciente de como o Porto
tinha sido importante para o triunfo da sua causa. "As mesas estavam já
muito guarnecidas de tudo o que lhe cumpria. O mestre-sala da boda era
Nun'Álvares Pereira, o condestável de Portugal; servidores de toalha e copa, e
de outros ofícios, eram grandes fidalgos e cavaleiros". Houve, ainda,
música e exibição de acrobatas, após o que todos os convivas cantaram e
bailaram até à hora da ceia”.
Cortesia de “portodhonra.com/”
Sobre a consumação do casamento, D. Pedro da Costa de Sousa de Macedo (1821-1901), conde de Vila
Franca do Campo, faz a sua descrição na obra publicada originalmente, em 1884, “D.
João I e a aliança inglesa - investigações
histórico sociais”.
"O arcebispo de Braga, empunhando o báculo, e
acompanhado pelos bispos e demais prelados, dirigiu-se processionalmente em
toda a pompa do culto católico aos aposentos régios, a fim de benzerem o leito
nupcial. Precedia-os, com tochas acesas, toda a comitiva de senhores e
cavaleiros, ingleses e portugueses e todos entraram na câmara (i.e.,
no quarto). No entanto, seguindo praxe medieval, as senhoras casadas haviam
seguido e colocado no leito a nova esposa. Também o noivo, a quem até à porta
acompanhara folgazã a turba de cavaleiros velhos e moços, soltando as
desregradas expressões e trocadilhos consoantes do dia, se achava já deitado. O
arcebispo e os demais prelados, entrando então gravemente no aposento, rezaram
sobre os noivos e os benzeram segundo costume de Inglaterra."
Casamento de D. João
I – Fresco do mestre Martins Barata
O fresco acima, de
Martins Barata foi, juntamente com um outro, cujo tema era a partida da armada
portuguesa para a conquista de Ceuta, uma encomenda do governo de então para
ornamentar as paredes da Sala de Audiências do Palácio de Justiça do Porto, à
Cordoaria.
Durante a execução das
obras, o artista teve direito a visita ministerial, como dava conta o “Diário
de Notícias”.
Após cerca de dois
anos e alguns meses, sobre este casamento, em 29 de Novembro de 1389, um
segundo Tratado de Monção celebrou tréguas, por três anos, entre João I
de Castela e João I de Portugal com restituições mútuas de várias praças
militares.
Entretanto, D. João
I ficaria eternamente grato pelo apoio que recebeu dos burgueses do Porto na
ajuda decisiva na implantação da independência do reino.
Por isso, o termo do
Porto seria estendido aos julgados de Bouças, da Maia, de Penafiel e Vila Nova;
fundaria o convento de Santa Clara (aos Carvalhos do Monte) para onde foram
transferidas as religiosas de Entre-Ambos-os-Rios; mandou construir a nova Rua
de S. Nicolau, depois Rua Formosa (actual Rua do Infante D. Henrique).
No entanto, o facto de maior nota na relação de D. João I com a cidade
aconteceria quando, em 13 de Abril de 1406, o longo braço-de-ferro entre o
clero e a burguesia portuense chegou ao fim por intervenção do monarca.
Entraria, então, em vigor o acordo assinado em Fevereiro de 1405, em
Montemor-o-Novo, e que estabeleceu a autonomia administrativa do Porto.
Assim, por exemplo, os alcaides-mores do Porto passaram a ser indicados pelo rei.
Na verdade, em termos práticos, tal já vinha a verificar-se, pois João Rodrigues de Sá (1355-1425) já tinha sido nomeado por D. João I, em 1392 e, mesmo o seu antecessor, Pedro Rodrigues, também tinha tido uma nomeação real.
Segundo aquele acordo, a cidade do Porto deixou de estar sujeita a um
regime senhorial e passou a ser um concelho sob jurisdição da Coroa
portuguesa.
Para que tal fosse possível, a troco do abandono, à data, por parte do
bispo Gil Alma e do cabido, dos direitos administrativos sobre a cidade, o rei
pagaria uma renda de acordo com o texto que se segue.
“Ao abrigo do
Estormento feito antre ellrey e o obispo do Porto sobre ajuridiçom, o rei D.
João I e o bispo de então, D. Gil Alma, acordaram que o cabido cedia os
direitos administrativos que exercia sobre a cidade, cabendo ao rei pagar, a
título compensatório, três mil libras anuais ao bispo. Para assegurar o
pagamento, logo D. João I assinalou todallas rrendas e penssõoes de todallas
casas queo dito Senhor Rey ha na dita cidade do Porto. No caso de estas verbas
não serem suficientes, o rei podia ainda recorrer às rendas da Alfândega,
devendo o pagamento manter-se até à conclusão da actual Rua do Infante D.
Henrique.”
In jornal “Público” – 9/4/2006
De notar que a Coroa
nunca chegou a cumprir integralmente o acordo de Montemor-o-Novo, por causa das
sucessivas desvalorizações da moeda e, assim, parte dos impostos continuaram a
ser cobrados para sustentar o bispo, o cabido e a fábrica das igrejas, situação
a que só Mouzinho da Silveira pôs cobro, em 1832.
A titularidade da
jurisdição do território tinha ficado, porém, resolvida.
Sem comentários:
Enviar um comentário