segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

25.147 O Pão

 
Antigamente, o pão e a broa que eram confeccionados nas padarias do Porto não tinham a qualidade mínima, sendo consumidos, apenas, pelas classes mais pobres.
De boa qualidade, o pão de trigo chegava de Valongo e, o de milho, a broa, vinha de Avintes, suplantando, em qualidade, a de milho-comum confeccionada nas padarias da cidade.
Assim, perante a má qualidade do pão fornecido pelas padarias da cidade, os mesários da Santa Casa da Misericórdia do Porto decidiram já, em 1700, que o fornecimento do pão do Hospital D. Lopo de Almeida, situado no gaveto da Rua das Flores com a Rua dos Caldeireiros, passasse a ter origem em Valongo, o que nos leva a concluir que a fama da qualidade do pão fabricado naquelas bandas, já vinha de longe.
 
 
«Como era muito grande a despesaque se fazia com o pão das padeiras da cidade, que os doentes não comiam por ser mal amaçado, sendo tão preto que parecia se lhe não tirava o rollão, trazendo-o muitas vezes quente, assim como saía do forno para logo se gastar, e se não ver depois de frio a ruindade dele", decidiu-se, "dar aos doentes pão das Padeiras de Valongo, e vindo uma delas com várias formas dele respeitando ao valor de seiscentos réis que inda tinha trigo, se achou convinha dar-se a cada doente, em cada dia, dois pães, de preço ambos de 25 réis e com efeito, por ordem da Mesa, se ajustou com a padeira a trazer todos os dias o pão que fosse necessário"».
Fonte: Livro de Lembranças (registo regular) da Mesa da Misericórdia do Porto, do dia 16 de Fevereiro de 1700
 
 
Em tempos que já lá vão, a qualidade do pão que se fabricava no Porto deixava, então, muito a desejar. Por isso, os cidadãos que tinham algumas posses recorriam a outras fontes, como nos narra o texto que se segue:
 
 
 

Padre Agostinho Rebelo da Costa (Descripção topografica, e historica da cidade do Porto - 1778)
 
 
Durante muitos e muitos anos, Valongo forneceu pão para muitas outras terras à sua volta. Os campos de cultivo eram férteis e os moinhos dos rios Ferreira e Leça, com a força das águas, moíam o grão e faziam a farinha.
Nesses tempos, o transporte do pão de Valongo para a cidade era feito pelas padeiras ou padeiros em jumentos carregados e conduzidos à arreata. Saíam de manhã, de madrugada, e percorriam as estradas de ligação ao Porto, via Rio Tinto, S. Roque da Lameira e Bonfim, na chamada Estrada do Pão, ou pela Estrada de Guimarães, vindos da Areosa até à Cruz das Regateiras (local onde seria edificado, na década de 1880, o Hospital do Conde de Ferreira) onde se juntavam e se dirigiam às feiras fazendo, por vezes, pequenas paragens às portas das casas de família ou mercearias locais, vendendo o pão mais típico e apreciado - a regueifa.
Após a venda, ao fim do dia, tratavam de se juntar todos para o regresso, em grupo, de forma a defenderem-se de possíveis assaltos, pois já chegavam de noite ao destino e era obrigatório atravessar a serra de Valongo.
As padeiras regressavam no dorso do animal, regaladamente instaladas adormecendo, por isso, no trajecto e só acordavam à porta de casa. Os jumentos já sabiam o caminho e não se enganavam, como resultado da repetição do ritual diário.
 
 
 

Padeiros de Valongo – Ed. Emílio Biel

 
 

Padeira de Valongo
 
 
“As padeiras de Valongo envergavam, consoante as estações, saias de pano de lã ou de riscado, uma espécie de jaqueta curta e, sobre os ombros, capa de fazenda. Chapéu pequeno e redondo na cabeça, chinelos nos pés (com ou sem meias) e, no pescoço, invariavelmente, ostentavam grossos cordões de ouro, com medalhas, figas, corações ou cruzes pendentes. Nas orelhas, era essa a moda, seguravam volumosas arrecadas.
Os padeiros da mesma região vestiam calça, colete e jaqueta. De Verão, faziam uso da calça branca de sarjão ou de linho e, durante a venda, habitualmente, despiam a jaqueta, ficando em mangas de camisa. Na cabeça, usavam chapéu preto de abas largas, redondo e baixo e, nos pés, chinelas de couro grosso, com ou sem peúgas”.
Horácio Marçal, In revista O Tripeiro, VIª série, ANO VII, página 140
 
 
 

Manuel Pedro, In revista O Tripeiro”, Vª série, ANO VI, página 85

 
 

Padeiras de Valongo, em 1950 – Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Valongo

 
 
 
Escultura inaugurada em 8 de Abril de 2005, no centro de uma rotunda de Valongo, de homenagem aos seus padeiros e padeiras

 
 
No século XVIII, a moagem dos cereais, operação prévia à confecção da broa, era a principal ocupação em Avintes, tornando-se o seu ex-libris de excelência.
Em 1747, segundo algumas crónicas, coziam-se, por semana, na freguesia, 96 carros de pão. Em 1758, as águas do rio Febros faziam girar cinquenta rodas de moinhos.
De acordo com algumas opiniões, esta actividade deve ter surgido no reinado de D. Dinis (1261-1325). Este monarca, receoso dos incêndios, terá restringido a cozedura do pão na cidade do Porto.
Estavam, então, abertas as portas da oportunidade para Avintes. A produção aumentava.
O especial paladar da sua broa abriu-lhe fronteiras e trouxe-lhe a fama.
No dealbar do século XIX, contavam-se na freguesia mais de 50 padeiros e de 300 carros de pão, por semana.
Sobre a broa de Avintes, nos dá conta o texto seguinte:
 
“É um pão castanho-escuro e muito denso, com um sabor distinto e intenso, agridoce, feito com farinha de milho e centeio. Tem um processo de produção particularmente lento: coze cerca de cinco a seis horas no forno. Depois de cozido, é polvilhado de farinha. Tem, geralmente, o formato de uma torre sineira.”
Fonte: “pt.wikipedia.org/”
 
 
 

Manuel Pedro, In revista O Tripeiro, Vª série, ANO VI, página 85
 
 
 

Padeira de Avintes
 
 
 
“As padeiras de Avintes vestiam saia e colete de pano de lã azul-escuro e, de Inverno, um género de jaqueta larga e comprida, feita da mesma fazenda.
Por baixo do colete, sobressaía uma camisa branca de mangas compridas abotoadas no pulso (durante o Inverno) ou arregaçada até ao cotovelo (em período estival).
Não prescindiam do chapéu preto, redondo, de abas largas e cpoa baixa, no interior do qual, para amortecimento do peso das canastras, metiam a respectiva rodilha. Nos pés, era a chinelinha.
(…) As padeiras vinham em barcos por elas, mesmas, tripulados (ora timonando ora remando), desciam o Rio Douro e vinham abicar na margem direita, ao desembarcadouro, então existente na Ribeira, um pouco abaixo da ponte pênsil. Cestos à cabeça, lá partiam elas, Rua de S. João acima, por Belomonte e Taipas, em direcção à Praça de Santa Teresa, onde se desajoujavam da pesada, mas saborosa mercadoria, ante um prolongado suspiro de alívio”.
Horácio Marçal, In revista O Tripeiro, VIª série, ANO VII, página 140
 
 

Chegada à Ribeira das padeiras de Avintes, em 1900 – Ed. Emílio Biel




Escadas das Padeiras (ainda existem, após trabalhos de recuperação)
 
 
 

Homenagem à padeira de Avintes, no Largo escultor Henrique Moreira, em Avintes
 
 
 
Feiras do Pão
 

A venda de pão, em feiras, na cidade do Porto, tem tradição muito antiga.
 
 
«A tradição, no Porto, da venda de pão em feiras é muito antiga e não se sabe bem quando começou. Mas sabe-se, por exemplo, que em 14 de Março de 1584 era publicado um acórdão municipal, se assim se lhe pode chamar, em que se determinava que as "as medideiras da feira do Pão, messão em gamellas fora das casas no meio da praça, quando não chover, sob pena de multa..." 
(Esta lei, se assim pode dizer-se, que obrigava as "medideiras" a trabalhar na praça e que tinha por finalidade impedir roubos ou outras falcatruas, ainda estava em uso quando, nos meados do séc. XIX, ainda se fazia a feira do pão no antigo Largo de Santa Teresa e a da farinha, na Praça dos Voluntários da Rainha, actual Praça de Gomes Teixeira). 
No ano seguinte (1585), foi publicada nova legislação, desta vez contra "as pessoas que misturarem o pão trigo de fora com o da terra e que quem vender hum não possa vender o outro...»
Cortesia de Germano Silva
 
 
 
Sabe-se, também que, no século XVIII, mais precisamente, em 29 de Agosto de 1733, foi feito um contra­to entre o cabido portucalense e a Câmara, para a criação, na Praça Nova (actual Praça da Liberdade), de um espaço para a venda de pão. O contrato foi celebra­do na capela de S. Roque que, ao tempo, fi­cava junto da Sé.
No entanto, durante muitos anos, o local de eleição para a venda do pão foi a Praça do Pão, hoje, a Praça Guilherme Gomes Fernandes.
Embora a Terça-Feira e o Sábado fossem os dias de maior afluência de vendedores, havia quem marcasse presença todos os dias.

 
 
«O produto mais procurado eram os célebres "pães de Valongo" que pesavam cerca de meio quilo e eram vendidos, nos finais do século XIX, a 75 réis cada um. Mas a variedade era imensa e para todos os gostos. Vendiam-se também, e em abundância, o nosso muito conhecido "pão molete", regueifas, tosta (doce e azeda), boroa, pão podre, pão coado, biscoitos de várias qualidades e feitios como o de argola, que eram muito procurados por moços e moças dos arrabaldes».
Cortesia de Germano Silva
 
 
O pão molete, referido no texto anterior, terá a sua génese ligada às invasões francesas, mais concretamente, à 2ª invasão.
Assim, conta-se que, em 1809, o exército francês ocupou o colégio da Formiga, na Santa Rita, em Ermesinde, no concelho de Valongo e o general Moulet terá dado ordens para as padarias servirem ao exército um pão individual, mais pequeno, como ração da sua tropa.
O pão molete, que por nós ainda hoje é assim chamado, terá a sua origem naquele facto, por alusão ao nome do general.
Na Praça do Pão, a disposição dos lugares de venda era a seguinte: a todo o comprimento do lado poente, em duas carreiras, ficavam as padeiras de Valongo.
Contudo, às Terças, Quintas e Sábados, essas mesmas padeiras (e padeiros), como a afluência era maior, distribuíam-se, também, pelo lado norte.
As padeiras de Valongo vendiam o pão da terra confeccionado com farinha que era moída nos moinhos a água da região de Valongo, com as suas canastras presas aos burros, funcionando como prateleiras, presas ao dorso dos animais e cobertas por alvas toalhas; as padeiras de Avintes ocupavam, então, todo o espaço sobrante, em duas fileiras, uma de cada lado da rua e o negócio acontecia com as canastras pousadas no chão.
Durante boa parte do século XIX, as vendedeiras estavam protegidas do sol por 32 árvores.
 
 
 

A Praça do Pão com as suas árvores
 
 
 
 
A Praça do Pão que antecedeu nesse mesmo local a Praça de Santa Teresa e que, a partir de 1915, passou a ser a Praça Guilherme Gomes Fernandes dos nossos dias era, como hoje, um pouco inclinada.
Para evitar o desnível, foi construído um socalco (sustido por uma parede do género da levantada no Jardim de S. Lázaro), que era vencido através de uma escada com seis degraus, fronteira à actual Rua de Santa Teresa.
No período da transição de séculos, a venda de pão passou a ocorrer em barracas de madeira, montadas no centro do largo.

 
 

Praça do Pão, em 1890. Ao fundo, à esquerda, observa-se a parte cimeira do espaldar do chafariz da Praça Santa Teresa

 
 

Praça do Pão com as suas barracas madeira


 
Em 26 de Maio de 1909, são retiradas da Praça Santa Teresa as barracas que no sítio há longos anos existiam para a venda do pão, sendo que algumas delas foram transferidas para o lado sul do mercado do Anjo, iniciando-se a construção, no lugar por elas ocupado, duma placa central ajardinada. 



«O rápido desenvolvimento urbanístico da cidade e, em especial, do chamado Bairro das Carmelitas ditou o fim da pitoresca feira do pão. Nos começos do século XX, os abarracamentos começaram a ser demolidos e as ladinas padeiras de Valongo instalaram-se na ala sul do Mercado do Anjo, entretanto já desaparecido. Coisas da vida de uma cidade..."».
Cortesia de Germano Silva
 
Tendo encerrado de vez a feira do pão, na Praça Santa Teresa, os mercados do Anjo e do Bolhão passaram, ao longo do tempo, a ser os locais de eleição para a transacção daquele bem de primeira necessidade.
Hoje, as padarias da cidade asseguram o abastecimento da população e a regueifa de Valongo é produzida, de modo generalizado.


 

Desfile do corpo de bombeiros na nomeada, desde 1915, Praça Guilherme Gomes Fernandes (antiga Praça do Pão e Praça Santa Teresa)


 
Durante grande parte do século XX, a distribuição do pão era também realizada pelas padeiras que, com as suas canastras sobre a cabeça, calcorreavam as ruas do Porto, servindo a sua clientela porta a porta.
 
 
 
 

Padeira da “Favorita de Vilar”, na Ribeira 


 
Biscoitos de Valongo
 
 
Para além da afamada regueifa de Valongo, os biscoitos, aí confeccionados, ganharam fama na cidade do Porto.
Durante muitos anos, até mesmo para além de meados do século XX, vendedeiras oriundas de Valongo, corriam o Porto, chegando mesmo à Foz, oferecendo os seus biscoitos de milho, os fidalguinhos, de limão, digestivos, torcidos e outros biscoitos deliciosos.
Há registos de narrativas que dão conta que, antigamente, a mercadoria era carregada em alforges, por um burrito, e a visita era feita porta-a-porta, todas as semanas, junto de clientes habituais.
Mais recentemente, as vendedeiras chegavam nas camionetas da carreira e deambulavam pela cidade de cesto à cabeça, com a mercadoria envolvida em impecáveis lençóis de linho branco.
Neste artigo mais minucioso (biscoito) destacou-se, desde longa data, a valonguense marca “Paupério”.
 
 
“António de Sousa Malta Paupério e Joaquim Carlos Figueira criaram, em 1874, a fábrica de biscoitos “Paupério & Companhia”. Dois anos depois, em 1876, a “Paupério & Companhia” recebe um prémio na Exposição Internacional de Filadélfia, feito que haveria de repetir nas exposições internacionais do Palácio de Cristal, em 1877, e na do Rio de Janeiro, em 1879.
Em 1974, o país celebrava a Liberdade e a Paupério o seu primeiro centenário. Atualmente, a Paupério é gerida pela 6ª geração da família Figueira, que mantém uma linha de biscoitos tradicionais com as mesmas receitas utilizadas desde a sua criação”.
Fonte: “pauperio.pt/”
 
 
Após a morte de António Sousa Paupério, em 1907, os seus herdeiros venderam a sua parte a Joaquim Carlos Figueira, o outro sócio fundador.
Em 28 de Junho de 1935, a firma Paupério & Cª Sucessores, pediu o registo do nome «Fábrica Paupério, Biscoitos e Bolachas», obtendo despacho em 27 de Abril de 1936.
Em 1938, estavam registadas as seguintes variedades: Roscas Inglesas, Bolacha Comum, Biscoitos de Viseu, Morgadinhos e Provincianos.
Alguns meses depois, registaram as bolachas «Mocidade», de feitio quadrado e tendo imprimidas as cinco quinas.
No ano de 1941, foi registada a marca «Bolo Rei Paupério», que continua a produzir. Em 1946, foi feito o registo da marca «Paupério» para compotas, conservas e geleias de frutos e marmelada. 
 
 
 

Fábrica Paupério, na zona histórica de Valongo – Cortesia “garfadasonline.blogspot.com/”

 
 

Produção de biscoitos na Paupério - Fonte: “pauperio.pt/”

 
 

Sortido da Paupério
 
 

Tosta Rainha da Paupério
 
 
 
 
Presentemente, a Paupério produz cerca de 32 variedades de bolachas e biscoitos, para além do Pão-de-Ló Paupério e do Bolo-rei Paupério produzidos nas épocas festivas.
Algumas das receitas mantêm-se inalteradas, como é o caso da «Tosta Rainha» fabricada em 1889, em homenagem à rainha D. Amélia.

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