terça-feira, 23 de abril de 2024

25.238 História fantástica


Esta é uma história das muitas ocorridas na cidade do Porto e que muitos portuenses desconhecem. A narrativa começa no cemitério do Prado do Repouso.
 

“E, depois, há as lendas, como a que ouvi pela primeira vez numa visita que ali fiz com o jornalista e investigador da história da cidade Germano Silva e em que acabámos a observar, ao longe, o túmulo de Teresa Maria de Jesus, com a sua escultura de São Francisco. Ele contou-me, então, como Teresa fora amada por uma “excêntrica” portuense, que, no dia do enterro, roubou a cabeça da morta, acabando por ser julgada e ilibada por isso — o juiz, benévolo, encarou o roubo de Henriqueta Emília da Conceição como um acto de amor. 
A história tão excêntrica como a sua personagem podia acabar aqui, mas, no túmulo que Henriqueta mandou construir em 1868, continuam a aparecer flores frescas colocadas não se sabe por quem”.
Cortesia de Patrícia Carvalho
 
 
 

Foi no hospital da “Ordem de Nossa Senhora do Terço e Caridade”, à Praça da Batalha, que faleceu vítima de tísica, a 28 de Outubro de 1867, uma rapariga solteira chamada Teresa Maria, de 22 anos, residente na Rua de Entreparedes.
O cadáver desceu à terra numa campa da Ordem do Terço, no cemitério do Prado do Repouso, pois Henriqueta Emília da Conceição e Sousa (1845-1874) era irmã daquela instituição.
Passados alguns meses, Henriqueta Emília comprou um talhão naquele cemitério e, nele, mandou edificar uma nova morada para a sua querida "Etelvina". Aproveitando a transladação do cadáver, Henriqueta teve artes para se apropriar da cabeça da defunta.
O caso acabou por se tornar conhecido na sequência de uma denúncia.
O crânio, em causa, entretanto, tinha passado a ser exibido numa vitrina na casa de Henriqueta moradora, à data, no Largo da Trindade.
Estando em causa o crime de profanação de cadáver, Henriqueta foi alvo de ordem de prisão e remetida para o juízo criminal do 1.º distrito, a 8 de Março de 1869.




In “Jornal do Porto” de 9 de Março de 1869
 



Henriqueta, aos 16 anos, conforme a lei, ter-se-á matriculado no “Livro Geral de Matrícula das Toleradas”, avocando o estatuto de «mulher submissa» e a estabelecer-se por sua conta e risco com a conveniência dos «amantes de letra».
O exercício da prostituição tinha passado, desde 1853, a ser regulamentado pelo Governo Civil do Porto, depois revisto e ampliado no tempo do visconde de Gouveia em 1860.
Henriqueta começou a exercer o seu métier de meretriz, na zona da Sé, sendo vizinha da “Ordem de Nossa Senhora do Terço e Caridade”, sito na antiga porta de Cima de Vila, da qual se fez associada a troco do pagamento de uma quota para beneficiar de cuidados médicos, de assistência pública e dos rituais fúnebres com enterramento no seu cemitério privativo.

 
 
“Evidentemente, em nome dos bons costumes e do pudor, o quotidiano destas mulheres-públicas no espaço portuense era rigorosamente vigiado e controlado, sobretudo no respeito pelos regulamentos sanitários que as obrigava a um certo confinamento. Por exemplo, para poderem frequentar os jardins públicos e os teatros ou fixarem residência em determinados locais da urbe, viam-se constrangidas a assinar um termo de fiança comprometendo-se a manter a modéstia no vestir e a discrição no comportamento fora de portas”.
Cortesia de Francisco Araújo e Cidália Dinis
 
 
 
Apesar do escândalo, a opinião pública acabou por aceitar tal paixão.
Assim, cumpridos os autos e todas as diligências formais, o caso não terá chegado a ser julgado em tribunal e acabaria arquivado, a crer numa singular nota camarária:

 
“Deo se n’esta transferencia o desacato de Henriqueta levar para sua caza a caveira de Thereza, facto que não foi por profanação mas sim por dedicação por aquella familiar.”
 
 
Curiosamente, por detrás da decisão poderá ter estado a interferência superior de alguns conhecidos e amigos, já que logo no dia a seguir ao escândalo da sua prisão, ela fora também intimada a restituir um cão de raça terra-nova à família do visconde de Gouveia, que alguns periódicos dizem que o mesmo pertencia ao seu filho, mas outros, ao próprio visconde e, poderá este, na qualidade de juiz do Tribunal da Relação do Porto, ter movido influências para que o processo fosse considerado inócuo por motivos de compaixão.
 
 
 
“Excluído de todo seria anunciar a eventual relação amorosa entre as duas mulheres como justificação do crime, não só porque a homossexualidade era punida pelo código civil em vigor, como era uma afronta aos padrões mentais tanto do ponto de vista religioso como social. Inclusive, até no seio da classe das prostitutas: «nas casas de tolerância as companheiras abominam-nas e as patroas despedem-nas logo que d’isso tenham conhecimento.”
Cortesia de Francisco Araújo e Cidália Dinis
 
 
 
 
A 2 de Novembro de 1874 morre, de desgosto, Henriqueta Emília da Conceição, nascida em 1845, mas que tinha envelhecido precocemente após a morte da sua amada Etelvina (ou Teresa Maria de Jesus), em 1868.
Henriqueta foi sepultada, no Prado do Repouso, no talhão da Irmandade do Terço (de que era devota e antes vizinha).
Uma nota de imprensa sobre o seu falecimento narrava:
 
 
“Acaba de fallecer victima d’uma phytisica a tristemente celebre Henriqueta, mui conhecida aqui e em Lisboa por suas façanhas na estrada da perdição e do roubo. Era hermaphrodita e foi durante muitos annos o terror das familias, no seio d’algumas das quaes se introduzia, em trajos masculinos, com uma habilidade e astucia extrema. Commetteu varios roubos graças á arte d’empalmação, em que era mestra consummada. Era destemida e intrepida. Chegou a capitanear uma pequena quadrilha de salteadores que infestaram por algum tempo os arredores da cidade. Atravessava muitas vezes as ruas do Porto, a cavallo, vestida d’homem, em pleno dia, sem que o olho mais fino d’um policemen a reconhecesse. Era, finalmente, uma mulher terrivel, cheia de crimes, mas de que se salvava sempre mysteriosamente”.
 
 
 

Henriqueta Emília da Conceição e Sousa – Desenho de Manuel Macedo para o romance de A. J. Duarte Júnior, 1877
 
 
 
No cemitério do Prado do Repouso, uma estátua de S. Francisco, vela pelo jazigo com o n.º 177, na 33.ª secção, onde Teresa foi enterrada.

 
 

Jazigo de “Etelvina”- Cortesia de André Rolo
 
 
 
 
No seu romance “Os Mistérios do Porto” (1890), o jornalista, teatrólogo e escritor Gervásio Lobato faz renascer o episódio atrás narrado, no Vº e último volume, daquela obra.
Assim, a megera Julieta, Gran-Mestra de uma sociedade secreta que se dedicava à prostituição e, no limite, à prática de relações sexuais não consentidas, na área da cidade do Porto, na noite seguinte, após o enterro da sua amante, uma cantora italiana de seu nome, Fragiolani, há algum tempo vivendo no Porto, com a conivência de um coveiro do cemitério do Prado do Repouso, degola o cadáver, passando a respectiva cabeça a ser exibida numa vitrina do seu quarto, numa casa lá para os lados de Germalde (Lapa).
A italiana Fragiolani morre de tísica, tal e qual “Etelvina”, assim como Julieta na mesma senda que Henriqueta.
Julieta, a exemplo de Henriqueta, no romance de Gervásio Lobato, também se faz passear a cavalo pelas ruas do Porto, vestida de homem.
A ficção a plagiar a realidade.

2 comentários:

  1. História Fantástica, é o termo. Parabéns pela divulgação. Em miúdo lembro haver na Quinta da minha Avó - Folhadela - Vila Real, vários livros de Gervásio Lobato. Não me lembro de ter lido um único!

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  2. O conto em apreço é uma obra em 5 volumes que comprei num alfarrabista - Os Mistérios do Porto.

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