Esta é uma história
das muitas ocorridas na cidade do Porto e que muitos portuenses desconhecem. A
narrativa começa no cemitério do Prado do Repouso.
“E, depois, há as lendas, como a que ouvi pela primeira
vez numa visita que ali fiz com o jornalista e investigador da história da
cidade Germano Silva e em que acabámos a observar, ao longe, o túmulo de Teresa
Maria de Jesus, com a sua escultura de São Francisco. Ele contou-me, então,
como Teresa fora amada por uma “excêntrica” portuense, que, no dia do enterro,
roubou a cabeça da morta, acabando por ser julgada e ilibada por isso — o juiz,
benévolo, encarou o roubo de Henriqueta Emília da Conceição como um acto de
amor.
A história tão excêntrica como a sua personagem podia
acabar aqui, mas, no túmulo que Henriqueta mandou construir em 1868, continuam
a aparecer flores frescas colocadas não se sabe por quem”.
Cortesia de Patrícia Carvalho
Foi no hospital da “Ordem de Nossa Senhora do Terço e
Caridade”, à Praça da Batalha, que faleceu vítima de tísica, a 28 de Outubro de
1867, uma rapariga solteira chamada Teresa Maria, de 22 anos, residente na Rua
de Entreparedes.
O cadáver desceu à terra numa campa da Ordem do Terço, no cemitério do Prado do Repouso, pois Henriqueta Emília da Conceição e Sousa (1845-1874) era irmã daquela instituição.
Passados alguns meses, Henriqueta Emília comprou um talhão naquele cemitério e, nele, mandou edificar uma nova morada para a sua querida "Etelvina". Aproveitando a transladação do cadáver, Henriqueta teve artes para se apropriar da cabeça da defunta.
O caso acabou por se tornar conhecido na sequência de uma denúncia.
O crânio, em causa, entretanto, tinha passado a ser exibido numa vitrina na casa de Henriqueta moradora, à data, no Largo da Trindade.
Estando em causa o crime de profanação de cadáver,
Henriqueta foi alvo de ordem de prisão e remetida para o juízo criminal do 1.º
distrito, a 8 de Março de 1869.
Henriqueta, aos 16 anos, conforme a lei, ter-se-á
matriculado no “Livro Geral de Matrícula das Toleradas”, avocando o estatuto de
«mulher submissa» e a estabelecer-se por sua conta e risco com a conveniência
dos «amantes de letra».
O exercício da prostituição tinha passado, desde 1853, a ser
regulamentado pelo Governo Civil do Porto, depois revisto e ampliado no tempo
do visconde de Gouveia em 1860.
Henriqueta começou a exercer o seu métier de meretriz, na
zona da Sé, sendo vizinha da “Ordem de Nossa Senhora do Terço e Caridade”, sito
na antiga porta de Cima de Vila, da qual se fez associada a troco do pagamento de uma quota para
beneficiar de cuidados médicos, de assistência pública e dos rituais fúnebres
com enterramento no seu cemitério privativo.
“Evidentemente, em
nome dos bons costumes e do pudor, o quotidiano destas mulheres-públicas no
espaço portuense era rigorosamente vigiado e controlado, sobretudo no respeito
pelos regulamentos sanitários que as obrigava a um certo confinamento. Por
exemplo, para poderem frequentar os jardins públicos e os teatros ou fixarem
residência em determinados locais da urbe, viam-se constrangidas a assinar um
termo de fiança comprometendo-se a manter a modéstia no vestir e a discrição no
comportamento fora de portas”.
Cortesia de Francisco Araújo e Cidália Dinis
Apesar do escândalo, a opinião pública acabou por aceitar
tal paixão.
Assim, cumpridos os autos e todas as diligências formais, o
caso não terá chegado a ser julgado em tribunal e acabaria arquivado, a crer
numa singular nota camarária:
“Deo se n’esta
transferencia o desacato de Henriqueta levar para sua caza a caveira de
Thereza, facto que não foi por profanação mas sim por dedicação por aquella
familiar.”
Curiosamente, por detrás da decisão poderá ter estado a
interferência superior de alguns conhecidos e amigos, já que logo no dia a
seguir ao escândalo da sua prisão, ela fora também intimada a restituir um cão
de raça terra-nova à família do visconde de Gouveia, que alguns periódicos
dizem que o mesmo pertencia ao seu filho, mas outros, ao próprio visconde e, poderá este, na qualidade de juiz do Tribunal da Relação do Porto, ter movido
influências para que o processo fosse considerado inócuo por motivos de
compaixão.
“Excluído de todo
seria anunciar a eventual relação amorosa entre as duas mulheres como
justificação do crime, não só porque a homossexualidade era punida pelo código
civil em vigor, como era uma afronta aos padrões mentais tanto do ponto de
vista religioso como social. Inclusive, até no seio da classe das prostitutas:
«nas casas de tolerância as companheiras abominam-nas e as patroas despedem-nas
logo que d’isso tenham conhecimento.”
Cortesia de Francisco Araújo e Cidália Dinis
A 2 de Novembro de 1874 morre, de desgosto, Henriqueta
Emília da Conceição, nascida em 1845, mas que tinha envelhecido precocemente
após a morte da sua amada Etelvina (ou Teresa Maria de Jesus), em 1868.
Henriqueta foi sepultada, no Prado do Repouso, no talhão da
Irmandade do Terço (de que era devota e antes vizinha).
Uma nota de imprensa sobre o seu falecimento narrava:
“Acaba de fallecer
victima d’uma phytisica a tristemente celebre Henriqueta, mui conhecida aqui e
em Lisboa por suas façanhas na estrada da perdição e do roubo. Era
hermaphrodita e foi durante muitos annos o terror das familias, no seio
d’algumas das quaes se introduzia, em trajos masculinos, com uma habilidade e
astucia extrema. Commetteu varios roubos graças á arte d’empalmação, em que era
mestra consummada. Era destemida e intrepida. Chegou a capitanear uma pequena
quadrilha de salteadores que infestaram por algum tempo os arredores da cidade.
Atravessava muitas vezes as ruas do Porto, a cavallo, vestida d’homem, em pleno
dia, sem que o olho mais fino d’um policemen a reconhecesse. Era, finalmente,
uma mulher terrivel, cheia de crimes, mas de que se salvava sempre
mysteriosamente”.
Henriqueta Emília da Conceição e Sousa – Desenho de Manuel
Macedo para o romance de A. J. Duarte Júnior, 1877
No cemitério do Prado do Repouso, uma estátua de S.
Francisco, vela pelo jazigo com o n.º 177, na 33.ª secção, onde Teresa foi
enterrada.
No seu romance “Os Mistérios do Porto” (1890), o jornalista,
teatrólogo e escritor Gervásio Lobato faz renascer o episódio atrás narrado, no
Vº e último volume, daquela obra.
Assim, a megera Julieta, Gran-Mestra de uma sociedade
secreta que se dedicava à prostituição e, no limite, à prática de relações sexuais não consentidas, na área da cidade do Porto, na noite seguinte,
após o enterro da sua amante, uma cantora italiana de seu nome, Fragiolani, há
algum tempo vivendo no Porto, com a conivência de um coveiro do cemitério do
Prado do Repouso, degola o cadáver, passando a respectiva cabeça a ser exibida
numa vitrina do seu quarto, numa casa lá para os lados de Germalde (Lapa).
A italiana Fragiolani morre de tísica, tal e qual
“Etelvina”, assim como Julieta na mesma senda que Henriqueta.
Julieta, a exemplo de Henriqueta, no romance de Gervásio
Lobato, também se faz passear a cavalo pelas ruas do Porto, vestida de homem.
A ficção a plagiar a realidade.
História Fantástica, é o termo. Parabéns pela divulgação. Em miúdo lembro haver na Quinta da minha Avó - Folhadela - Vila Real, vários livros de Gervásio Lobato. Não me lembro de ter lido um único!
ResponderEliminarO conto em apreço é uma obra em 5 volumes que comprei num alfarrabista - Os Mistérios do Porto.
ResponderEliminar