terça-feira, 16 de dezembro de 2025

25.294 “Autópsia” de uma fotografia

 
Prólogo
 
No Verão de 2025, Miguel Carneiro, que compartilha com Susana Fernandes a gestão de “Moreira da Costa, alfarrabistas”, na Rua de Avis, n.º 36, deu-nos a conhecer uma foto antiga, inédita, que lhe tinha sido apresentada por um cliente, possivelmente, da rua onde a sua loja está instalada, desde há muitos anos.
Inicialmente, uma livraria foi fundada no local antes ocupado pelo antigo alfarrabista conhecido como “Casa do Lopes”, situada na Rua da Fábrica, n.º 48, passando, em 1909, para a Travessa da Fábrica, n.º 50.
Hoje, ocupa um espaço no edifício do Hotel Infante Sagres, construído em meados do século XX. É a “Moreira da Costa, alfarrabistas”.
A citada foto carecia de ser estudada e, por isso, quando decidimos fazê-lo, cerca de seis meses após ter tomado conhecimento dela, apercebemo-nos, que o tal cliente da "Moreira da Costa, alfarrabistas", era Nuno Cruz, um estudioso da história da cidade do Porto, que a dá a conhecer em diversas publicações.
Diz, Nuno Cruz, numa delas, a propósito do tema:
 
 
“Pouco antes da Biblioteca Pública Municipal do Porto fechar portas para a sua total remodelação, que a obrigará a estar por mais de cinco anos encerrada, era o meu passatempo preferido ali me deslocar, aos sábados de manhã, na procura de velharias, antiguidades, "ineditidades" nos jornais antigos do Porto. Numa dessas rusgas acabei por encontrar, num pouco conhecido - e de curta vida -- periódico do início do século XX chamado O Porto, uma ou outra imagem surpreendente. A imagem que aqui apresento, levou-me pouco tempo a identificar com acuidade, embora já a tivesse desde 2022. A verdade é que só na última semana "me virei" para ela, com mais atenção”.
Cortesia de Nuno Cruz (9 de Junho de 2025)
 
“…jornal O Porto e tem como título A Carestia da Vida. Triste título... mas falar sobre esses tempos de desespero deixarei para outrem, que o fará de certeza bem melhor do que eu! A legenda da imagem é Venda do azeite na CASA FAVORITA (Castanheira e Fonseca)”.
Cortesia de Nuno Cruz (9 de Junho de 2025)
 
 
 
 

In jornal “O Porto” de 22 de Setembro de 1911 – Cortesia de Nuno Cruz
 
 
 
Estudo
 
 
Sobre a foto em causa e a identificação do lugar em que aconteceu a recolha da foto original, que vai ser dissecada, Nuno Cruz apresenta factos irrefutáveis.
Assim, não parece haver dúvidas de que, à direita, está a chamada “Casa da Fábrica”, durante muitos anos, o edifício mais emblemático da Rua da Fábrica, fazendo esquina com a Travessa da Fábrica, que fazia a ligação à Rua da Picaria e que, em meados do século XX, deu o seu espaço ao Hotel Infante de Sagres.
 
 
 

Casa da Fábrica – Cortesia de Nuno Cruz

 
 
Tendo a Travessa da Fábrica a orientação Sul/Norte, do lado nascente do arruamento, como se pode observar, os elementos arquitectónicos da Casa da Fábrica, assinalados (com a oval), na foto acima, têm a sua correspondência, quando comparados com a foto original.


 
 

Travessa da Fábrica, em 1892 – Planta de Telles Ferreira
 
 
 
Na planta anterior, com X está marcada a morada (Travessa da Fábrica, n.º 50), a partir de 1909, da Livraria Moreira da Costa.
Como se pode observar, aquela morada já se encontrava em prédio muito próximo da Travessa da Picaria, pelo que podemos concluir, que ele foi demolido para abertura da Praça D. Filipa de Lencastre.

 
 

Perspectiva da Travessa da Fábrica obtida a partir do fundo da Rua da Picaria. Todos os prédios, à esquerda, onde também se encontrava a Moreira da Costa, foram demolidos para abertura da Praça D. Filipa de Lencastre

 
 
 
Desconhece-se o percurso da Livraria Moreira da Costa até encontrar a sua morada final.
Na mesma planta, observa-se ainda a Casa da Fábrica e, na esquina (norte/poente) oposta da travessa, a casa de Manuel José Gomes do Vale, por si remodelada, em 1823, para sua habitação, cujo chão e grande parte da área adjacente era pertença da Real Fábrica de Tabaco.
Para lá da casa de Manuel José Gomes do Vale, apresentava-se um logradouro interior (Travessa da Fábrica, n.º 17), onde tinha a sua residência e, aí, vivia com seu filho David Castro e a sua nora, a baronesa de Nevogilde, após ter vendido, em 1861, o Palácio das Carrancas à Coroa portuguesa, na pessoa de D. Pedro V.
Junto da residência da baronesa, o seu filho, um reconhecido ilusionista, administrava o Teatro Minerva.
Na foto original, parece que o acesso ao logradouro já foi ocupado por um prédio.
Em 1911, o edifício da esquina (norte/poente), formada pela Rua da Fábrica e da Travessa da Fábrica, já estava ocupado pela firma de comércio de cereais, com razão social, “Castanheira & Fonseca”.
Nesse lado poente do arruamento, o estudo da planta de Telles Ferreira de 1892 e os pedidos de licença de obras para um prédio, que se provará que é o representado na foto original, leva-nos a conclusões definitivas.
Assim, em 18 de Janeiro de 1911, Castanheira e Fonseca solicitava à Câmara do Porto execução de obras para montar uma devanture numa montra e abrir um portal, que obteve a licença n,º 67/1911.
O processo era constituído por um projecto, do qual fazia parte um desenho, com as fachadas voltadas para a Rua da Fábrica e para a Travessa da Fábrica.
 
 
 

À esquerda desenho da fachada voltada para a Rua da Fábrica e, à direita, a fachada voltada para a Travessa da Fábrica do prédio ocupado por Castanheira e Fonseca
 
 
 
 
O desenho da fachada voltada para a Travessa da Fábrica pode ser comparado com a foto original…parece não deixar dúvidas.
Entretanto, quanto à fachada voltada para a Rua da Fábrica, a foto seguinte confirma tudo.
 
 
 

Rua da Fábrica
 
 
 
Na foto acima, as três casas, à direita, apresentam as suas fachadas fora do alinhamento restante, como se pode comparar com a planta de Telles Ferreira e uma foto mais abaixo. Faziam as três moradas parte da antiga casa de Manuel José Gomes do Vale.
Na foto acima, a casa, mais à direita, apresenta, já, de acordo com o projecto atrás mencionado, a devanture solicitada em 18 de Janeiro de 1911.
Na segunda casa, a partir da esquerda, esteve, a Tipografia Ocidental, na Rua da Fábrica, n.º 80, desde 1891 e, depois da morte de Costa Carregal, o seu proprietário, uma outra tipografia, que lhe sucederia até 1913, quando as suas instalações foram então ocupadas pelo jornal diário republicano “O Norte”.
Antes, aquando da ocupação inicial daquela morada pela Tipografia Ocidental, a fachada do prédio já estava recuada do alinhamento da rua, como se pode observar na foto abaixo.
Aliás, aquele desalinhamento das fachadas, como já se referiu, era comum às três moradas, fazendo todas elas, parte da casa de Manuel José Gomes do Vale, como se pode apreciar na planta de Telles Ferreira atrás exibida. 
 

 

Entrada, em 1891, para a Tipografia Ocidental, na Rua da Fábrica, n.º 80, com a sua fachada recuada
 
 

Conclusão
 
 
Parece não haver dúvidas que, a foto original é de 1911, da Travessa da Fábrica que, hoje, é a Rua de Avis.
Importa ainda referir, que sobre aquele local, na Rua da Fábrica, a paisagem urbanística se alterou, como é óbvio ao longo dos anos.

 
 

Rua da Fábrica, próximo da esquina (norte/poente) com a Rua de Avis – Fonte: Google maps

 
 
Na foto acima, observa-se a Livraria Bertrand, que já foi Porto Editora e que aí começou por se instalar em 1944.

 
 

Porto Editora, na Rua da Fábrica, em 1944
 
 
 
 
Na esquina (norte/poente), entre as ruas da Fábrica e de Avis esteve, desde 1951, a Livraria e Papelaria ASA.


 
 

Livraria ASA
 
 
 

Rua de Avis, em perspectiva actual, aproximada, à da fotografia original  – Fonte: Google maps


 
A Rua de Avis, acima na foto, vai terminar na Praça D. Filipa de Lencastre que foi começada a implantar a partir da década de 1940 e determinou a demolição de um importante aglomerado habitacional.

 
 
 

Levantamento da Praça D. Filipa de Lencastre

1 comentário:

  1. Excelente. "andei por ali nos anos 60" - quem é este Nuno Cruz, tem publicações? Abraço

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