domingo, 14 de maio de 2017

(Continuação 8) - Actualização em 01/11/2017, 31/05/2018



As Ruas Comerciais


“Na «cidade industrial» de finais do século, certas áreas, praças ou ruas, apresentam um elevado número de estabelecimentos que oferecem um determinado bem ou prestam um mesmo serviço, «procurando atrair o consumidor e facilitando o reconhecimento dos locais onde este pode encontrar determinado bem ou serviço».
Assim, a Praça Guilherme Gomes Fernandes (ex Praça dos Voluntários da Rainha, local da antiga Feira do Pão), «...distinguiu-se, outrora, pela abundância ali patente, de cereais e farinhas. A Rua do Bonjardim, pelo grande número de casas de comes e bebes. A Rua dos Clérigos, pela venda, em larga escala, de panos abretanhados. A Rua do Loureiro, pela predilecção marcada dos sirgueiros. A Rua das Flores, pela profusão de arrecadas e trancelins de oiro. A Rua de Cima do Muro, por ser empório de bacalhau, numa cidade em que esse peixe excepcionalmente se consome. A Rua Chã, pelos múltiplos barbeiros que lá houve. A Rua de Santo António, por ser o local predilecto dos luveiros citadinos. A Rua da Assunção, pela fertilidade de cordoeiros e louceiros. A Rua das Hortas, hoje do Almada por nela particularmente se enfardar linho e empilhar ferro».
A Rua das Flores era, comercialmente, a rua mais importante dentro do núcleo antigo da cidade, havendo desempenhado um papel de manifesta importância, enquanto eixo propiciador da migração funcional ocorrida ao longo do século XIX, entre o núcleo funcional a cota baixa e o novo que se foi afirmando ao longo do século. Para aqui terão vindo, por exemplo, «...os fanqueiros que comerciavam na Rua dos Mercadores, e que ano após ano, foram ocupando as casas da Rua de Santo António, da Rua dos Clérigos (lado esquerdo da subida), das Carmelitas e da Praça da Universidade».
Terá sido porventura «a rua mais comercial que teve (...) esta nossa cidade do Porto», onde tinham lugar «...os estabelecimentos elegantes e confortáveis da cidade, quer de bijuterias, quer de modas, [que] fazem [dela] um ponto de reunião agradável para os ociosos». Esta artéria que assegurava a ligação mais fácil entre a proximidade do Douro e a «nova Baixa», «prolonga-se» comercialmente para a Feira de S. Bento (Praça de Almeida Garrett) e, posteriormente, para a Rua D. Maria II (actual de Trindade Coelho) e para o Largo dos Lóios, até ao moderno centro da cidade.
A Rua das Flores era antes de tudo «a rua do ouro», onde, com um pouco de exagero, se podia dizer que «os ourives eram tantos [41] (...) desde a Igreja da Misericórdia até à volta para a Feira de S. Bento [Praça de Almeida Garrett], que raras lojas faziam excepção à ourivesaria». Já em meados do século era clara esta importância e, «...com as suas trinta e nove lojas de ourives, a Rua das Flores, do lado direito de quem a desce vindo de S. Bento, era quase uma sequência ininterrupta de ourivesarias...».
Contudo, a Rua das Flores constituía já um caso anómalo no tecido antigo onde se inscreve, pois que, em 1882, a ocupação funcional deste espaço marca-se já por uma menor importância quantitativa e qualitativa (salvaguardada a significativa importância do sector financeiro). E mesmo as artérias mais intensamente preenchidas comercialmente do antigo núcleo medieval, apresentam uma ocupação onde o elevado número de mercearias e a fraca especialização são aspectos comuns.
Entre estas, a Rua de Belomonte demarca-se pelo número de advogados que alberga (o que se explica naturalmente pela proximidade do tribunal); a Rua de S. João, no prolongamento da Praça da Ribeira (onde as mercearias, em número de 11, constituem os únicos estabelecimentos comerciais que aí existem), pela quantidade extraordinária de mercearias (32); a Rua Chã pelo elevado número de casas de móveis (7) e de algibebes (6), enquanto na Rua do Loureiro são mais numerosos ainda os algibebes (18), ressaltando também as ourivesarias (7) e as casas de artigos religiosos (3).
No núcleo antigo, contudo, é sobretudo o sector financeiro que marca a importância da área; no contexto da ocupação funcional de finais do século. Aí, «...próximo dos navios, no cais, onde há os escritórios, nas ruas adjacentes, e sobretudo na Rua Nova dos Ingleses [actual Rua do Infante, existe uma] espécie de bolsa aberta ao ar livre, [onde] cada um invade o passeio ou a rua, indo, quando chove, até aos portais e escadas das casas».
Abundam sobretudo os bancos: na Rua de Ferreira Borges existem 7 e no Largo de S. Domingos 5, entre os quais se conta a filial no Porto do Banco de Portugal.
Na ligação da Rua das Flores com A «Baixa» pelo lado Nascente da Praça, na rua D. Maria II, a ocupação é diversificada, avultando apenas as miudezas (4), enquanto o Largo dos Lóios denota uma ocupação muito intensa (44 estabelecimentos), uma clara dominância do conjunto Equipamento Pessoa (designadamente das lojas de tecidos e vestuário) e a ele se associam alguns nomes famosos na cidade, como os de José Bernardo Birra (farmácia), Magalhães e Moniz (livreiros) e Joaquim Pinto Leite (agente bancário e proprietário de um importante estabelecimento de tecidos).
Também no seguimento da Rua das Flores, o Largo da Feira de S. Bento, marcado comercialmente pela antiga feira que lhe deu o nome, pauta-se por uma ocupação feita sobretudo à custa de mercearias, mas onde existem também dois estabelecimentos bancários partilhando o mesmo edifício (Banco do Minho e do Alentejo) e uma casa de câmbios.
Fora de portas, na «Baixa», o eixo Clérigos - Passeio da Cardosa - 31 de Janeiro constitui o eixo comercial por excelência e, como deve ter visualizado João de Almada, actuava como uma via perpendicular à malha radial dominante, permitindo, como antes a Rua do Infante, acolher um tráfego importante e fixar as actividades mais significantes.
A Rua dos Clérigos constituindo fora de dúvidas uma das ruas principais do centro de comércio da cidade, apresentava uma significativa dualidade de características formais, funcionais e, logo, fisionómicas e vocacionais.
Assim, quem subia esta artéria central do burgo, vislumbrava, à sua direita uma vincada imagem citadina: — «...bazares pródigos de brinquedos; casas de modas de aspecto parisiense; montras de flores e de frutos, apetitosos como pomares minhotos; reclamos luminosos, elegância, urbanismo. À sua esquerda, vislumbrava uma nítida fisionomia provinciana: julgar-se-ia passeando numa rua de grande vila, em dia de feira. Do alto das pesadas portas dos estabelecimentos, inesteticamente escuras, banalmente burguesas, pendiam com desgraciosa prodigalidade, chailes de malha, pelúcia ou lã; cobertores matizados; faixas berrantes, carapuças, sombrinhas. Marçanozitos importunos e de ar tímido arreliavam quem passava, oferecendo com insistência os objectos vários do seu vário comércio».
Também os dois passeios da artéria participavam de uma ocupação diversa. Deste modo, «enquanto o da direita era preferido pelos habitantes da cidade que desejavam salvaguardar a sua sensibilidade de
civilizados, a gente de fora, que só visita o Porto de longe a longe, optava pelo da esquerda, onde se sentia mais à vontade, mais integrada no meio próprio».
Na Praça de D. Pedro (da Liberdade) a ocupação funcional marca-se por uma certa importância das actividades ligadas às finanças e às profissões liberais, mas são sobretudo os botequins que fazem desta área o principal palco da vida social de então.
Aqui existem, em 1882, diversos estabelecimentos que eram um misto de café, cervejaria e restaurante.
Do lado poente, onde hoje está o Banco de Portugal, a velha cervejaria Sá Reis e a Casa Navarro, estávamos então em presença sobretudo de casas de pasto e modestos restaurantes, de entre os quais sobressaía apenas o Cascata. De resto, «...na Praça de D. Pedro (praça nova do Porto), que é inquestionavelmente a melhor da cidade, [ao seu] lado ocidental [iam passando] desapercebidos os melhoramentos municipais».
Em contrapartida, do lado oposto, situavam-se algumas das casas do género de maior renome: o Porto-Club que tinha um ambiente requintado e um óptimo serviço de restaurante; o Portuense (que mais tarde mudou de nome para Suiço) que era considerado o mais «fino» da cidade e o Camanho, o estabelecimento mais marcante na vida desta área na cidade de finais do século, frequentado por muitos dos nomes famosos do Porto de então.
Mas também o comércio especializado e a banca tinham aqui o seu lugar. Entre os estabelecimentos comerciais, destacavam-se as casas de fazendas (em número de 10), as de miudezas, as ourivesarias, as célebres relojoarias de Pierre Girod, Germano Courrège e Azevedo & Cardoso e a famosa Livraria Moré, «...a melhor do Porto, não só pela sua armação de madeira polida e estantes envidraçadas, como pela variedade e bom critério do seu fornecimento de livros», onde eram clientes Camilo Castelo Branco e Augusto Luso e, mais tarde, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro e Ramalho Ortigão. Quanto à banca, se bem que o centro financeiro permanecesse ligado à proximidade do porto, procurando as imediações da Rua do Infante ou do Largo de S. Domingos, existiam já «na praça» algumas casas bancárias, como as de Joaquim Pinto da Fonseca, João Evangelista da Silva Matos e a filial no Porto do Banco de Vila Real.
A Rua de Santo António (hoje de 31 de Janeiro) era porventura a rua mais elegante do Porto de finais do século e, com as anteriores (das Hortas, dos Clérigos, das Flores) e «a praça», constituía o coração da «Baixa», ou mais especificamente do centro de comércio. O requinte das montras, a qualidade dos artigos e o bom nome de muitos dos proprietários, fazia com que, aliado a uma localização central (na articulação entre a principal praça e a Batalha), esta rua, que se mantém hoje como uma das principais do centro comercial, fosse já uma das de maior reputação na cidade.
Aqui existiam quase todas as luvarias da cidade, muitas chapelarias, ourivesarias, relojoarias, grande parte dos mais requintados estabelecimentos e um número elevado de proprietários estrangeiros que favorecia a identificação da artéria com a inovação e a qualidade (entre os quais se contavam Leon Prud'homme, as Mademoiselles Bouharde, Baquet, Stuven e Loubière).
Na estrutura radial da cidade, as velhas estradas de saída desde cedo que atraíram a fixação de actividades económicas e, com o processo de cres-cimento da cidade e o extraordinário desenvolvimento do comércio, passaram a sediar um número de estabelecimentos significativo. Directamente ligadas ao novo centro urbano, as velhas estradas melhoradas pelos Almadas, ou as novas que estes conceberam, marcaram-se por uma elevada intensidade da ocupação funcional, por regra tanto mais importante, quanto maior a proximidade do centro.
A Rua do Almada, por exemplo, tinha duas feições distintas: «até à Picaria era toda colmeia activa e daí para cima a residencialidade desacompanhava-se de lojas...».
Predominavam os «... ferrageiros que, o dia inteiro, de guarda-pó, a caneta colada à orelha, comandavam caixeiros e moços entre o antro dos armazéns e o passeio, junto ao qual, com fragor, carros de bois estacionavam a descarregar».
A rua tinha também algo de oriental, «...com os seus toldos de linhagem, as suas matilhas de galgos e de podengos estirados ao sol, [que] parecia aos sábados uma pequena feira de gado, tantos eram os burros dos ferreiros sertanejos, que chegavam ajoujados de ceiras de pregos, e partiam carregados de verguinha de ferro, em feixes ao longo da albarda, levados pela Rua do Almada acima num trotezinho miúdo e diligente, que batia os grandes lajedos sonoros da calçada com um ruído festival de castanholas».
Todavia, nela existiam também 13 livrarias (entre as quais as de Cruz Coutinho e a de José Pinto de Sousa Lello), várias ourivesarias, mercearias, drogarias, 5 casas bancárias, as casas de fotografia de Emílio Biel e dos irmãos Peixoto e um número assinalável de advogados e médicos (entre os quais se contava Ricardo Jorge).
Mais a ocidente, num conjunto de praças importantes na estrutura comercial do Porto e que haviam constituído recintos de diversas feiras, a Praça de Carlos Alberto assume um papel de destaque, enquanto local de chegada de parte significativa do tráfego que se faz de e para Matosinhos e Viana do Castelo (pela Rua de Cedofeita) e Braga (pela Rua de Mártires da Liberdade, antiga da Sovela). Carlos Alberto, términus da malaposta e velho local de tantas feiras, possui 3 hotéis, 4 confeitarias e vários cafés, constituindo um espaço comercialmente importante, sobretudo para o conjunto de estabelecimentos de Equipamento da Pessoa. Na saída desta praça, Cedofeita e Mártires da Liberdade, contando em conjunto com cerca de uma centena de estabelecimentos, pautam-se por uma ocupação fortemente diversificada, onde o vestuário alterna com a padaria, o banco, a mercearia, o consultório médico, a confeitaria, a casa de miudezas ou de tecidos.
No lado oposto, a Praça da Batalha assume papel idêntico à de Carlos Alberto, possibilitando ligações regionais a leste, por Santo Ildefonso (ou Entreparedes), e a norte, por Santa Catarina.
Do Águia d'Ouro, da estátua de D. Pedro V e do Palácio dos Guedes também, a Batalha é contudo, antes de mais, a praça dos hotéis. A este facto não será por certo estranho o posicionamento junto ao centro, mas no caminho para a Estação do Pinheiro (de Campanhã). E aos hotéis Estrela, Oriental, Universal, Portuense e Águia d'Ouro (por cima do café), somam-se, no caminho para a estação, o Bragança e o Mindelo, em Entreparedes, e os Novo Universal, Grande Hotel Central e América, em S. Lázaro.
Santo Ildefonso e Santa Catarina, ruas de saída de importância desigual, apresentam perfil ocupacional igualmente diverso, com esta a assumir melhor a inserção na «Baixa», enquanto na primeira uma grande diversidade não disfarça o predomínio do conjunto Alimentação e a escassez de profissionais liberais e de comércios de maior especialização (como as luvarias, chapelarias, livrarias ou relojoarias). Em contraponto, das 58 unidades localizadas ao longo da Rua de Santa Catarina, avulta o elevado número de profissionais liberais (14 advogados, 7 solicitadores e 1 arquitecto) e uma maior especialização funcional.
Mas, se por Santa Catarina se podia fazer parte do tráfego, que do Largo do Marquês de Pombal seguia para a Rua de Costa Cabral pela estrada de Guimarães, o certo é que a velha Rua do Bonjardim conservaria ainda durante décadas um papel importante (que havia assegurado em exclusivo durante séculos), enquanto artéria propiciadora da mais fácil ligação entre o centro da cidade e a cidade de Guimarães. Sinuosa, estreita e extraordinariamente longa, Bonjardim estava polvilhada de 144 estabelecimentos comerciais os mais diversos, mas onde o conjunto Horeca assumia especial representatividade.
Sá da Bandeira, (cujo tramo mais meridional era então parte de Bonjardim, mas incluía o que hoje é designado por Rua de Sampaio Bruno), estava já parcialmente aberta. Como via radial, era também parcialmente aproveitada como alternativa às do Bonjardim e de Santa Catarina. Comercialmente, sobressai o Equipamento da Pessoa e também o conjunto Horeca, merecendo destaque o número de cafés e confeitarias, assim como o dos hotéis (4), entre os quais se contam o Cisne (que hospedou Camilo e Ana Plácido) e o Aliança (onde viria a estar Barry Parker, o arquitecto da Avenida dos Aliados).
Como Santa Catarina, a Rua de Sá da Bandeira revela uma ocupação mais facilmente associável com o centro de comércio da cidade, que outras radiais como Bonjardim ou Santo Ildefonso, com as suas casas de vestuário, tecidos e artigos musicais e um grande número de livrarias e papelarias, estando quase ausentes as mercearias, os talhos e as padarias.
Na periferia, a ocupação funcional era manifestamente rarefeita, constituindo excepção as ruas de Costa Cabral (com notável diversidade no âmbito dos conjuntos Alimentação e Equipamento da Pessoa) e do Freixo (quase só com mercearias).
Neste cenário, em que a periferia se marca por um muito deficiente aparelho comercial, a Foz, como se disse, constituía um caso excepcional. Este núcleo populacional que, aparte o que era então identificável com a cidade Porto, era o principal agrupamento habitacional no que é hoje o território municipal, possuía em finais do século passado 3777 habitantes, aos quais se somavam, nos meses de Verão (entre Julho e Outubro), os muitos que vinham da cidade ou do interior do país, a banhos, em busca da amenidade conferida pela proximidade do mar, ou simplesmente para acompanhar as exigências da moda.
A Rua Central (do Padre Luís Cabral), a de Senhora da Luz e a Esplanada do Castelo, concentravam a maioria dos estabelecimentos que aqui existiam. A diversidade funcional é assinalável, merecendo destaque as unidades que o Verão, o mar, os banhos ou a moda justificavam, numa Foz que, de pequena povoação «...  agrupada à ilharga do Castelo, habitada (...) quase só por humildes pescadores...», se havia tornado  cosmopolita, dotada de bons hotéis (o da Boa-Vista e a antiga «pension-house» de Mary de Castro ainda se  mantém), cafés, confeitarias e restaurantes e servida por médicos, casas de banhos e numerosas sociedades de recreio”.
Fonte: José Alberto Rio Fernandes, In “O Tripeiro” - 7ª Série (Série Nova) Ano X/Nº12, 1991



Em muitos casos, no século XIX, na cidade do Porto, um comerciante exercia vários ofícios no seu estabelecimento.



Fonte: José Alberto Rio Fernandes, In “O Tripeiro” - 7ª Série (Série Nova) Ano X/Nº12, 1991

 
 
Entretanto, os empregados do comércio começavam, na última década do século XIX, uma luta, que seria longa, para o fecho das lojas aos Domingos.
Assim, o descanso semanal só seria instituído, oficialmente, pelo Decreto n.º 24 402, de 1934.
 

 

In “Jornal do Porto”, 26 Agosto 1890, p. 2






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