No dia 11 de Setembro de 1993 (um Sábado cinzento e triste),
passava um pouco das 21 horas, quando o
último Eléctrico da linha 19, com o nº 223, começou a percorrer a Rua
Brito Capelo (ou a Rua dos Eléctricos, como era também conhecida), conduzido
por José de Sousa, tendo como revisor, António Mendes Gonçalves.
O eléctrico
referido, com o nº de renumeração 223, era um Brill 28, com plataforma
salão.
Nos últimos anos em
circulação, os eléctricos daquela série, eram os veículos em maior número.
Esta linha fazia o serviço entre a Boavista e Matosinhos.
Eléctrico da linha nº “19” junto ao Mercado de Matosinhos
O Eléctrico da foto anterior, do qual não se divisa o nº de
renumeração, deverá ser um Brill 28, com plataforma salão, da mesma série do que efectuou o último
percurso em Matosinhos.
Também naquele dia, terminou a linha nº “1”, entre Matosinhos (Mercado) e o Infante. Aliás, nem
sequer chegou a circular todo o dia, naquele 11 de Setembro.
Eléctrico (“Belga”) na linha nº 1
deslizando c.1970 na Rua Brito Capelo e passando junto da Rua Tomaz Ribeiro -
Cortesia Vítor Monteiro (FB)
Eléctrico na linha nº 1 (“Belga”) deslizando em 1979 na Rua
Brito Capelo
Acontece que, devido à ampliação do porto de Leixões, os eléctricos
já tinham deixado de circular, entre Matosinhos e Leça da Palmeira, em Março de
1960, quando tinham chegado àquelas localidades, em 1897 e 1898,
respectivamente.
Este último trajecto começou por ser feito através da Ponte do Eléctrico que se situava no
local onde hoje está a Ponte Móvel.
Aquela ponte foi levantada em 1887 e por ela passaram,
primeiro, os carros “americanos”.
Ponte do Eléctrico entre Matosinhos e Leça da Palmeira
A Doca nº 1 (inaugurada em Julho de 1940) com o Mercado de
Matosinhos já construído
Na foto anterior, à esquerda, já é visível o Mercado de
Matosinhos, inaugurado em 1952, pelo que a foto será posterior a esta data.
A partir do levantamento da Doca nº 1, a ligação entre as
margens do rio Leça por “Eléctrico”, passou a acontecer por terreno firme,
adjacente ao limite a nascente da referida doca, o que levou à demolição da
velha Ponte do Eléctrico.
O “Eléctrico” pôde, assim, continuar a servir Leça da
Palmeira.
Doca nº 1 já construída onde ainda não é visível o Mercado
de Matosinhos que seria levantado à direita (próximo términos da doca)
Perspectiva da praia de Leça da Palmeira, captada no local
do término das linhas do elétrico, em 1952 – Cortesia de Vítor Monteiro (FB - "Imagens
Antigas do Concelho de Matosinhos")
Término das linhas do elétrico com perspectiva inversa da
foto anterior c. 1960
Na foto acima é possível observar o local onde terminava a
viagem dos eléctricos que demandavam Leça da Palmeira. À esquerda, o prédio do
“Hotel Golfinho” que ardeu e já não existe, e a meio vê-se o prédio que seria
ocupado alguns poucos anos depois pelo restaurante “Garrafão”.
Perspectiva actual da foto anterior com o prédio que foi
ocupado pelo restaurante novamente devolvido apenas a residência – Fonte:
Google maps
Restaurante Garrafão - Fonte: Américo
de Castro Freitas
Restaurante Garrafão
Foi o “Garrafão” um dos mais icónicos restaurantes de Leça
da Palmeira, instalado num prédio do século XIX e que ficou célebre pelos seus
linguadinhos fritos, panados com ovo e pão ralado, acompanhados por açorda de
marisco.
No início da década de 60 do século XX o restaurante ocupou
instalações perto da “Capela do Ruas”, ou Capela do Sagrado Coração de Jesus”
funcionando ainda como mercearia, com João Rufino Pinto e esposa, Maria Amélia
Pinto, ao leme do negócio.
Capela do Sagrado Coração de Jesus ou Capela do Ruas na Rua
António Nobre em Leça da Palmeira
Depois, as instalações, em Novembro de 1963, passaram para
as que são apresentadas nas fotos vertentes, com vista para a praia e adjacente
à Avenida da Liberdade – um prédio de r/c e 1º andar.
No r/c funcionava a cozinha, a despensa, a garrafeira e o
restaurante.
O 1º andar servia de habitação.
Entre 1978/80 ostentou a estrela Michelin, tendo encerrado
definitivamente após o falecimento da proprietária há cerca de dez anos.
Voltando ao tema que vínhamos desenvolvendo, diga-se que, a
partir de Março de 1960, para possibilitar a construção da Doca nº 2, os
eléctricos deixaram, para sempre, de chegar a Leça da Palmeira e, a partir
daquele dia 11 de Setembro de 1993, abandonariam o Concelho de Matosinhos para
sempre, ao fim de mais de um século de relevantes serviços prestados às
populações, depois do “Americano” e da “Máquina” o terem também feito.
No caso do “Eléctrico”, ele foi o substituto, de facto, do
transporte conhecido por “Americano” que tinha chegado a Matosinhos, em 1873.
Ambos deslizavam em carris e percorriam o mesmo trajecto ao
longo da Rua Brito Capelo.
Carro americano no Porto na Praça D. Pedro – Ed. Aurélio da
Paz dos Reis
Sobre o transporte conhecido por “Americano” é o texto que
se segue, com alguns excertos de «A Formosa Lusitânia», da autoria de Lady
Jackson, obra que seria traduzida por Camilo Castelo Branco e no qual a
escritora dá conta das peripécias vividas numa viagem de “americano” a
Matosinhos.
“Em 1873 veio ao Porto
Lady Jackson, uma inglesa bastante atenta a tudo, e que não deixa de
experimentar os carros “americanos”: «São extremamente cómodos; percorrem as
duas milhas que medeiam entre o Porto e este Arrabalde (a Foz) quase no terço
do tempo que leva ordinariamente uma carruagem de aluguer. O preço da passagem
é seis vinténs. Os carros são espaçosos e arejados, sem sol nem poeira: toda a
gente os frequenta. Começaram a circular no ano passado, segundo me dizem, e
têm tido grande êxito.
Alguns destes
americanos param na Rua dos Ingleses (actual Infante D. Henrique), na parte
mais baixa da cidade, enquanto que outros levam os passageiros «acima», ao topo
do monte, perto da Misericórdia.
Vale bastante a pena
de seguir para este último ponto; a rampa é tão forte que duas ou três vezes vi
senhoras apearem e preferirem caminhar ao sol e ao pó, com medo de que os
carros se despenhassem. Mas tal acidente nunca se deu» …
Lady Jackson refere-se à Rua da Restauração, por
onde subia o “americano” desde o cruzamento de Massarelos até ao Jardim da
Cordoaria, “onde uma nuvem de poeira” avisa que o «americano» está a chegar.
A jornada de
Matosinhos até à parte superior da cidade termina à entrada deste jardim.
Espera-o muita gente.
Vem completamente cheio, mas tão depressa descarrega a sua carregação de
banhistas da Foz, que se enche de imediato e parte» …
… «A estrada da Foz
segue junto ao rio e na maior parte à sombra de altas e frondosas árvores».
«É uma estrada cheia
de vida; assim tivesse menos pó, que forma sobre ela uma nuvem contínua, em
consequência do trânsito constante dos carros de bois, passando e repassando,
de cavalgaduras, de pequenos carros de cortinas com gente da província, ou
banhistas que não chegaram a tempo ou não acharam lugar nos «americanos».
De dez em dez
minutos, ou de quarto em quarto de hora, passa um destes “americanos” com
grande rapidez, correndo docemente pelos rails».
Não se esquece de nos
dizer que em Massarelos se juntam «mais duas guias» para os carros que vão
“acima ”- refere-se ao reforço de mais uma parelha de mulas – eram os «sotas»
usados em todas as ruas inclinadas.
Depois da Foz, «o
americano que conduz a primeira carrada de banhistas, segue depois para aquela formosa
vila, ou povoações gémeas (Matosinhos e Leça) que distam da Foz milha e meia»
… É de uma beleza
contínua quanto se avista em todo o comprimento da estrada» …
… O estrídulo tinir da
campainha avisa os habitantes de Leça e Matosinhos que o «americano» vai
largar. Regresso no mesmo à Foz, sigo até à Cordoaria e retrocedo; deste modo
passeio todas as manhãs oito ou nove milhas, que se andam em hora e meia, por
dois shillings-de um cabo a outro, percorrendo o cenário sempre novo e sempre
encantador do Majestoso Douro e das alpestres ribas para além da Foz» …
… Algumas
vezes cheguei ao carro no momento em que partia, já todo ocupado.
O condutor abria a
porta e dizia: «uma senhora quer entrar» -imediatamente,
erguiam-se 3 ou 4 cavalheiros, e eu sentava-me no lugar do sujeito mais
próximo, o qual, cortejando-me, saía para fora. Um inglês decerto não se
levantaria para que uma mulher se sentasse no seu lugar; e provavelmente,
quando as portuguesas, lá no futuro, se emanciparem…»”
Fonte: leca-palmeira.com
Por sua vez, a “Máquina”, era um transporte que usava a
energia do vapor (era um pequeno comboio) que circulava pela Rua de Roberto
Ivens e partia da Boavista, passando por Cadouços e que chegou a Matosinhos em
1882.
Rua Juncal de Baixo (Rua Roberto Ivens) em 1905 com os
trilhos da “Máquina” bem visíveis – Ed. Alberto Ferreira – Praça da Batalha
Perspectiva actual da foto anterior - Fonte: Google maps
Bilhete de 10 cêntimos de ida e volta na “Máquina” da
Boavista a Matosinhos – Fonte: Os Velhos Eléctricos do Porto
Fora ter sido servida pelos eléctricos, Leça da Palmeira
haveria de ser servida também por um outro comboio, que não aquela “Máquina”.
Comboio e “Eléctrico” cruzando-se em Leça da Palmeira - Fonte:
Os Velhos Elétricos do Porto
A foto anterior é de um local que dista cerca de 50 metros
do Forte de Nossa Senhora das Neves que ficará para a esquerda do
enquadramento.
A ligação ferroviária a Leça da Palmeira seria, assim,
resultante de um aproveitamento duma via de um outro transporte ferroviário,
que tinha sido usado antes, para a movimentação da pedra para construção dos
molhes do porto de Leixões.
Para isso, foi feita a chamada Ponte de Pedra ou Ponte do
Comboio, mesmo na foz do antigo rio Leça.
Ponte do Comboio e venda de sardinha em Matosinhos
Acabada a construção do Porto de Abrigo, a via daria então
lugar ao Ramal de Matosinhos ou Linha de S. Gens, servindo o transporte de
pessoas que no seu trajecto, em Matosinhos, a partir do Senhor do Padrão,
percorria o que é hoje a Rua de Heróis de França, que antes da construção dos molhes, era uma
frente de mar.
Como curiosidade, aponta-se que o “Eléctrico” e a “Máquina”
no seus percursos para Matosinhos se cruzavam para os lados do Castelo do
Queijo.
A situação é explicada mais abaixo, na planta da área em
causa.
Trajectos da “Máquina” e do “Eléctrico”
Legenda:
- O percurso a azul era executado pela Máquina rolando em
Matosinhos pela Rua Roberto Ivens, e o assinalado a preto pelo Eléctrico e,
antes deste, pelo “americano”, servindo-se da Rua Brito Capelo.
- Entre os pontos 5 e 1 a máquina rolava na Rua de Gondarém
e a partir daí (aproximadamente entre o chalet do Andresen, situado na estrada
de Carreiros e o chalet do engenheiro António da Silva, situado na Rua de
Gondarém) até ao Castelo do Queijo, inflectia na direcção do mar, cruzando-se
com a linha do eléctrico um pouco depois de passar à porta do chalet de José
Augusto Dias.
- Por sua vez o “Eléctrico” ou o “americano” fazia o
percurso na estrada de Carreiros (Avenida Brasil) aproximando-se do Castelo do
Queijo pela Rua do Castelo (Avenida de Montevideu).
- O ponto 3 dá a localização aproximada da Capela de Santo
Amaro
Cruzamento da linha a vapor (à esquerda) com a do eléctrico
(à direita) ao fundo estará o Castelo do Queijo
Deve referir-se que o traçado da Rua de Gondarém, à época, não
confluía ainda com a Avenida da Boavista, pois, esta só seria aberta, entre a
fonte da Moura e a frente de mar, no início do século XX.
O “Eléctrico”, nº 35, vindo de Matosinhos, passando c. 1900,
junto do palacete Andresen na Estrada de Carreiros
Os “Eléctricos” do modelo da foto acima foram dos primeiros
a aparecer em circulação.
Começaram como carros “Americanos” sendo posteriormente motorizados, em finais do século XIX.
Tinham 18 lugares sentados e bancos de ripas de madeira e os
passageiros viajavam de costas para as janelas devido à disposição longitudinal
dos bancos (Modelo “Risca ao meio”).
O veículo idêntico, do mesmo modelo da foto anterior, com o
nº 22, foi recuperado e hoje está no museu dos STCP.
No Porto restam apenas três linhas de eléctricos:
O “18”, entre o Carmo e Massarelos;
O “1” que liga o Infante ao Passeio Alegre;
E o “22” que parte do Carmo, terminando na Rua Augusto Rosa
(Batalha), junto da entrada para o Funicular dos Guindais.
Hoje em dia, muitos continuam a defender um regresso do
eléctrico a Matosinhos, tendo por destino final o Senhor do Padrão e passando a
servir, assim, o terminal de cruzeiros onde chegam anualmente c. 100.000
visitantes.
Aquela “Linha 18”, primitivamente, ligava a Praça da
Liberdade a Matosinhos.
Um primeiro troço desde a Praça da Liberdade à Boavista era
realizado por eléctrico e num segundo, da Boavista a Matosinhos entrava em
acção a “Máquina” com passagem por Cadouços. Encerrou em 1914, para sempre.
Importa dizer que quando foi introduzida a tracção a vapor
entre a Boavista e a Foz, em 1878, durante os primeiros anos, houve uma
operação mista com tracção a vapor durante o período de Verão e tracção animal
durante o período de Inverno e na noite durante o verão.
Em 1882 a linha foi estendida da Foz (Cadouços), via Rua de
Gondarém, para Mattosinhos, que passaria a escrever-se só com um “t” em 1909
mas, curiosamente, ganhou o “z” (Matozinhos).
Notável trabalho sobre a extinção da mais antiga rede de Eléctricos da Península. E as gentes do Porto a assistirem com total indiferença a tamanho esbulho.
ResponderEliminarA PORTO 2001 ainda tentou retomar algumas das linhas. Assim foram investidos milhões em infraestruturas para o efeito.
As linhas a reabrir seriam:
Linha circular Poveiros-Carmo;
Praça da Liberdade-Matosinhos Sul (junto ao Senhor do Padrão;
(Entre o Infante e a Praça o percurso seria feito pela Rua das Flores)
Com os destinos da cidade nas mãos de Rui Rio, foi dado o golpe final. A troco dumas efémeras corridas de carros, foram arrancados os Carris e a Catenária instalados pela PORTO2001.
Cumprimentos
Agradeço as suas amáveis palavras e concordo plenamente com o seu modo de ver a situação. Julgo que, pelo menos a linha do Infante ao Senhor do Padrão, seria de muito fácil implantação nas vertentes técnica e financeira.
ResponderEliminar