segunda-feira, 11 de março de 2019

25.37 Os linguadinhos do “Garrafão”


No dia 11 de Setembro de 1993 (um Sábado cinzento e triste), passava um pouco das 21 horas, quando o último Eléctrico da linha 19, com o nº 223, começou a percorrer a Rua Brito Capelo (ou a Rua dos Eléctricos, como era também conhecida), conduzido por José de Sousa, tendo como revisor, António Mendes Gonçalves.
O eléctrico referido, com o nº de renumeração 223, era um Brill 28, com plataforma salão.
Nos últimos anos em circulação, os eléctricos daquela série, eram os veículos em maior número.
Esta linha fazia o serviço entre a Boavista e Matosinhos.



Eléctrico da linha nº “19” junto ao Mercado de Matosinhos



O Eléctrico da foto anterior, do qual não se divisa o nº de renumeração, deverá ser um Brill 28, com plataforma salão, da mesma série do que efectuou o último percurso em Matosinhos.
Também naquele dia, terminou a linha nº “1”, entre Matosinhos (Mercado) e o Infante. Aliás, nem sequer chegou a circular todo o dia, naquele 11 de Setembro.


Eléctrico (“Belga”) na linha nº 1 deslizando c.1970 na Rua Brito Capelo e passando junto da Rua Tomaz Ribeiro - Cortesia Vítor Monteiro (FB)


Eléctrico na linha nº 1 (“Belga”) deslizando em 1979 na Rua Brito Capelo


Acontece que, devido à ampliação do porto de Leixões, os eléctricos já tinham deixado de circular, entre Matosinhos e Leça da Palmeira, em Março de 1960, quando tinham chegado àquelas localidades, em 1897 e 1898, respectivamente.
Este último trajecto começou por ser feito através da Ponte do Eléctrico que se situava no local onde hoje está a Ponte Móvel.
Aquela ponte foi levantada em 1887 e por ela passaram, primeiro, os carros “americanos”.


Ponte do Eléctrico entre Matosinhos e Leça da Palmeira


A Doca nº 1 (inaugurada em Julho de 1940) com o Mercado de Matosinhos já construído


Na foto anterior, à esquerda, já é visível o Mercado de Matosinhos, inaugurado em 1952, pelo que a foto será posterior a esta data.
A partir do levantamento da Doca nº 1, a ligação entre as margens do rio Leça por “Eléctrico”, passou a acontecer por terreno firme, adjacente ao limite a nascente da referida doca, o que levou à demolição da velha Ponte do Eléctrico.
O “Eléctrico” pôde, assim, continuar a servir Leça da Palmeira.


Doca nº 1 já construída onde ainda não é visível o Mercado de Matosinhos que seria levantado à direita (próximo términos da doca)


Perspectiva da praia de Leça da Palmeira, captada no local do término das linhas do elétrico, em 1952 – Cortesia de Vítor Monteiro (FB - "Imagens Antigas do Concelho de Matosinhos")


Término das linhas do elétrico com perspectiva inversa da foto anterior c. 1960


Na foto acima é possível observar o local onde terminava a viagem dos eléctricos que demandavam Leça da Palmeira. À esquerda, o prédio do “Hotel Golfinho” que ardeu e já não existe, e a meio vê-se o prédio que seria ocupado alguns poucos anos depois pelo restaurante “Garrafão”.


Perspectiva actual da foto anterior com o prédio que foi ocupado pelo restaurante novamente devolvido apenas a residência – Fonte: Google maps


Restaurante Garrafão - Fonte: Américo de Castro Freitas


Restaurante Garrafão


Foi o “Garrafão” um dos mais icónicos restaurantes de Leça da Palmeira, instalado num prédio do século XIX e que ficou célebre pelos seus linguadinhos fritos, panados com ovo e pão ralado, acompanhados por açorda de marisco.
No início da década de 60 do século XX o restaurante ocupou instalações perto da “Capela do Ruas”, ou Capela do Sagrado Coração de Jesus” funcionando ainda como mercearia, com João Rufino Pinto e esposa, Maria Amélia Pinto, ao leme do negócio.


Capela do Sagrado Coração de Jesus ou Capela do Ruas na Rua António Nobre em Leça da Palmeira


Depois, as instalações, em Novembro de 1963, passaram para as que são apresentadas nas fotos vertentes, com vista para a praia e adjacente à Avenida da Liberdade – um prédio de r/c e 1º andar.
No r/c funcionava a cozinha, a despensa, a garrafeira e o restaurante.
O 1º andar servia de habitação.
Entre 1978/80 ostentou a estrela Michelin, tendo encerrado definitivamente após o falecimento da proprietária há cerca de dez anos.
Voltando ao tema que vínhamos desenvolvendo, diga-se que, a partir de Março de 1960, para possibilitar a construção da Doca nº 2, os eléctricos deixaram, para sempre, de chegar a Leça da Palmeira e, a partir daquele dia 11 de Setembro de 1993, abandonariam o Concelho de Matosinhos para sempre, ao fim de mais de um século de relevantes serviços prestados às populações, depois do “Americano” e da “Máquina” o terem também feito.
No caso do “Eléctrico”, ele foi o substituto, de facto, do transporte conhecido por “Americano” que tinha chegado a Matosinhos, em 1873.
Ambos deslizavam em carris e percorriam o mesmo trajecto ao longo da Rua Brito Capelo.


Carro americano no Porto na Praça D. Pedro – Ed. Aurélio da Paz dos Reis


Sobre o transporte conhecido por “Americano” é o texto que se segue, com alguns excertos de «A Formosa Lusitânia», da autoria de Lady Jackson, obra que seria traduzida por Camilo Castelo Branco e no qual a escritora dá conta das peripécias vividas numa viagem de “americano” a Matosinhos.

“Em 1873 veio ao Porto Lady Jackson, uma inglesa bastante atenta a tudo, e que não deixa de experimentar os carros “americanos”: «São extremamente cómodos; percorrem as duas milhas que medeiam entre o Porto e este Arrabalde (a Foz) quase no terço do tempo que leva ordinariamente uma carruagem de aluguer. O preço da passagem é seis vinténs. Os carros são espaçosos e arejados, sem sol nem poeira: toda a gente os frequenta. Começaram a circular no ano passado, segundo me dizem, e têm tido grande êxito.
Alguns destes americanos param na Rua dos Ingleses (actual Infante D. Henrique), na parte mais baixa da cidade, enquanto que outros levam os passageiros «acima», ao topo do monte, perto da Misericórdia.
Vale bastante a pena de seguir para este último ponto; a rampa é tão forte que duas ou três vezes vi senhoras apearem e preferirem caminhar ao sol e ao pó, com medo de que os carros se despenhassem. Mas tal acidente nunca se deu» …
Lady Jackson refere-se à Rua da Restauração, por onde subia o “americano” desde o cruzamento de Massarelos até ao Jardim da Cordoaria, “onde uma nuvem de poeira” avisa que o «americano» está a chegar.
A jornada de Matosinhos até à parte superior da cidade termina à entrada deste jardim.
Espera-o muita gente. Vem completamente cheio, mas tão depressa descarrega a sua carregação de banhistas da Foz, que se enche de imediato e parte» …
… «A estrada da Foz segue junto ao rio e na maior parte à sombra de altas e frondosas árvores».
«É uma estrada cheia de vida; assim tivesse menos pó, que forma sobre ela uma nuvem contínua, em consequência do trânsito constante dos carros de bois, passando e repassando, de cavalgaduras, de pequenos carros de cortinas com gente da província, ou banhistas que não chegaram a tempo ou não acharam lugar nos «americanos».
De dez em dez minutos, ou de quarto em quarto de hora, passa um destes “americanos” com grande rapidez, correndo docemente pelos rails».
Não se esquece de nos dizer que em Massarelos se juntam «mais duas guias» para os carros que vão “acima ”- refere-se ao reforço de mais uma parelha de mulas – eram os «sotas» usados em todas as ruas inclinadas.
Depois da Foz, «o americano que conduz a primeira carrada de banhistas, segue depois para aquela formosa vila, ou povoações gémeas (Matosinhos e Leça) que distam da Foz milha e meia»
… É de uma beleza contínua quanto se avista em todo o comprimento da estrada» …
… O estrídulo tinir da campainha avisa os habitantes de Leça e Matosinhos que o «americano» vai largar. Regresso no mesmo à Foz, sigo até à Cordoaria e retrocedo; deste modo passeio todas as manhãs oito ou nove milhas, que se andam em hora e meia, por dois shillings-de um cabo a outro, percorrendo o cenário sempre novo e sempre encantador do Majestoso Douro e das alpestres ribas para além da Foz» …
… Algumas vezes cheguei ao carro no momento em que partia, já todo ocupado.
O condutor abria a porta e dizia: «uma senhora quer entrar» -imediatamente, erguiam-se 3 ou 4 cavalheiros, e eu sentava-me no lugar do sujeito mais próximo, o qual, cortejando-me, saía para fora. Um inglês decerto não se levantaria para que uma mulher se sentasse no seu lugar; e provavelmente, quando as portuguesas, lá no futuro, se emanciparem…»”
Fonte: leca-palmeira.com


Por sua vez, a “Máquina”, era um transporte que usava a energia do vapor (era um pequeno comboio) que circulava pela Rua de Roberto Ivens e partia da Boavista, passando por Cadouços e que chegou a Matosinhos em 1882.


Rua Juncal de Baixo (Rua Roberto Ivens) em 1905 com os trilhos da “Máquina” bem visíveis – Ed. Alberto Ferreira – Praça da Batalha


Perspectiva actual da foto anterior - Fonte: Google maps



Bilhete de 10 cêntimos de ida e volta na “Máquina” da Boavista a Matosinhos – Fonte: Os Velhos Eléctricos do Porto


Fora ter sido servida pelos eléctricos, Leça da Palmeira haveria de ser servida também por um outro comboio, que não aquela “Máquina”.


Comboio e “Eléctrico” cruzando-se em Leça da Palmeira - Fonte: Os Velhos Elétricos do Porto


A foto anterior é de um local que dista cerca de 50 metros do Forte de Nossa Senhora das Neves que ficará para a esquerda do enquadramento.
A ligação ferroviária a Leça da Palmeira seria, assim, resultante de um aproveitamento duma via de um outro transporte ferroviário, que tinha sido usado antes, para a movimentação da pedra para construção dos molhes do porto de Leixões.
Para isso, foi feita a chamada Ponte de Pedra ou Ponte do Comboio, mesmo na foz do antigo rio Leça.


Ponte do Comboio e venda de sardinha em Matosinhos


Acabada a construção do Porto de Abrigo, a via daria então lugar ao Ramal de Matosinhos ou Linha de S. Gens, servindo o transporte de pessoas que no seu trajecto, em Matosinhos, a partir do Senhor do Padrão, percorria o que é hoje a Rua de Heróis de França,  que antes da construção dos molhes, era uma frente de mar.
Como curiosidade, aponta-se que o “Eléctrico” e a “Máquina” no seus percursos para Matosinhos se cruzavam para os lados do Castelo do Queijo.
A situação é explicada mais abaixo, na planta da área em causa.


Trajectos da “Máquina” e do “Eléctrico”

Legenda:

- O percurso a azul era executado pela Máquina rolando em Matosinhos pela Rua Roberto Ivens, e o assinalado a preto pelo Eléctrico e, antes deste, pelo “americano”, servindo-se da Rua Brito Capelo.
- Entre os pontos 5 e 1 a máquina rolava na Rua de Gondarém e a partir daí (aproximadamente entre o chalet do Andresen, situado na estrada de Carreiros e o chalet do engenheiro António da Silva, situado na Rua de Gondarém) até ao Castelo do Queijo, inflectia na direcção do mar, cruzando-se com a linha do eléctrico um pouco depois de passar à porta do chalet de José Augusto Dias.
- Por sua vez o “Eléctrico” ou o “americano” fazia o percurso na estrada de Carreiros (Avenida Brasil) aproximando-se do Castelo do Queijo pela Rua do Castelo (Avenida de Montevideu).
- O ponto 3 dá a localização aproximada da Capela de Santo Amaro


Cruzamento da linha a vapor (à esquerda) com a do eléctrico (à direita) ao fundo estará o Castelo do Queijo


Deve referir-se que o traçado da Rua de Gondarém, à época, não confluía ainda com a Avenida da Boavista, pois, esta só seria aberta, entre a fonte da Moura e a frente de mar, no início do século XX.


O “Eléctrico”, nº 35, vindo de Matosinhos, passando c. 1900, junto do palacete Andresen na Estrada de Carreiros


Os “Eléctricos” do modelo da foto acima foram dos primeiros a aparecer em circulação.
Começaram como carros “Americanos” sendo posteriormente  motorizados, em finais do século XIX.
Tinham 18 lugares sentados e bancos de ripas de madeira e os passageiros viajavam de costas para as janelas devido à disposição longitudinal dos bancos (Modelo “Risca ao meio”).
O veículo idêntico, do mesmo modelo da foto anterior, com o nº 22, foi recuperado e hoje está no museu dos STCP.


No Porto restam apenas três linhas de eléctricos: 

O “18”, entre o Carmo e Massarelos;
O “1” que liga o Infante ao Passeio Alegre;
E o “22” que parte do Carmo, terminando na Rua Augusto Rosa (Batalha), junto da entrada para o Funicular dos Guindais.
Hoje em dia, muitos continuam a defender um regresso do eléctrico a Matosinhos, tendo por destino final o Senhor do Padrão e passando a servir, assim, o terminal de cruzeiros onde chegam anualmente c. 100.000 visitantes.
Aquela “Linha 18”, primitivamente, ligava a Praça da Liberdade a Matosinhos.
Um primeiro troço desde a Praça da Liberdade à Boavista era realizado por eléctrico e num segundo, da Boavista a Matosinhos entrava em acção a “Máquina” com passagem por Cadouços. Encerrou em 1914, para sempre.
Importa dizer que quando foi introduzida a tracção a vapor entre a Boavista e a Foz, em 1878, durante os primeiros anos, houve uma operação mista com tracção a vapor durante o período de Verão e tracção animal durante o período de Inverno e na noite durante o verão.
Em 1882 a linha foi estendida da Foz (Cadouços), via Rua de Gondarém, para Mattosinhos, que passaria a escrever-se só com um “t” em 1909 mas, curiosamente, ganhou o “z” (Matozinhos).

2 comentários:

  1. Notável trabalho sobre a extinção da mais antiga rede de Eléctricos da Península. E as gentes do Porto a assistirem com total indiferença a tamanho esbulho.
    A PORTO 2001 ainda tentou retomar algumas das linhas. Assim foram investidos milhões em infraestruturas para o efeito.
    As linhas a reabrir seriam:
    Linha circular Poveiros-Carmo;
    Praça da Liberdade-Matosinhos Sul (junto ao Senhor do Padrão;
    (Entre o Infante e a Praça o percurso seria feito pela Rua das Flores)
    Com os destinos da cidade nas mãos de Rui Rio, foi dado o golpe final. A troco dumas efémeras corridas de carros, foram arrancados os Carris e a Catenária instalados pela PORTO2001.
    Cumprimentos

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  2. Agradeço as suas amáveis palavras e concordo plenamente com o seu modo de ver a situação. Julgo que, pelo menos a linha do Infante ao Senhor do Padrão, seria de muito fácil implantação nas vertentes técnica e financeira.

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