Médico, Professor Universitário e Escritor, natural do
Porto, Ricardo Jorge (1858/1939) frequentou com brilhantismo a Escola
Médico-Cirúrgica do Porto de 1874 a 1879, tendo concluído, aos 21 anos de
idade, a licenciatura em Medicina com a dissertação, “Um Ensaio sobre o
Nervosismo”.
Após umas viagens de estudo ao estrangeiro, regressou a
Portugal e deu início a um curso de Anatomia dos Centros Nervosos e criou
o pioneiro Laboratório de Microscopia e Fisiologia do Porto. Dedicou-se à Saúde
Pública e também à Hidroterapia, tendo publicado vários estudos e,
especialmente, os que dedicou às Caldas do Gerês.
A 7 de Dezembro de 1888, o governo adjudicou por contrato
provisório, as águas medicinais do Gerês a uma empresa formada pelo Dr. Ricardo
de Almeida Jorge e Dr. Paulo Marcelino Dias Freitas, distintos médicos e
professores pelo prazo de 50 anos. O contrato definitivo é de 25 de Julho de
1889, mas, em Março de 1890, por escritura, a concessão foi vendida a uma
sociedade anónima, “A Companhia das Caldas do Gerês”, de que eram sócios o Dr.
Ricardo Jorge e o capitalista bracarense Manuel Joaquim Gomes, já que o Dr.
Paulo Marcelino se afastou.
Esta sociedade abriria falência em 1893 e, no tempo que
existiu, limitou-se praticamente a encanar as águas da Fonte, para o hotel
Universal.
A concessão iria, então, ser entregue à “Empresa das Águas
do Gerês”, que, em 1899, abriu os novos balneários.
Por convite da Câmara Municipal do Porto, em 1892, com quem
já tinha colaborado sobre questões de Higiene Pública, Ricardo Jorge dirigiu
os Serviços Municipais de Saúde e Higiene da Cidade do Porto e chefiou o
Laboratório Municipal de Bacteriologia. No âmbito destas actividades publicou a
série do respectivo Anuário e um Boletim Mensal de Estatística Sanitária do
Porto, que fizeram dele o introdutor da moderna estatística demográfica em
Portugal.
Abandonou a Cidade do Porto em 1899, aquando da Peste
Bubónica, descontente com a população, violenta e instigada por forças
políticas contra a sua orientação pelas medidas profiláticas que tentou
implementar.
“O Porto do final do
século XIX era uma cidade de contrastes. Gabava-se de ser pioneira da
iluminação a gás, da fotografia e do cinema e de ter introduzido na Península
Ibérica o carro elétrico, mas as condições de vida da segunda cidade portuguesa
eram deploráveis para as classes desfavorecidas. O sistema sanitário era
rudimentar. Anos depois, em 1905, apenas 30 por cento dos arruamentos tinham
esgotos. Perto de um terço da população vivia em “ilhas” de condições
higiénicas lamentáveis. A cidade detinha uma das piores taxas de mortalidade
das cidades europeias, com realce para a mortalidade infantil.
A crise deu a conhecer
um homem de qualidades invulgares: o médico municipal Ricardo Jorge. Em julho
de 1899, era o responsável dos Serviços de Saúde e Higiene da cidade e
professor da cadeira de Higiene e Medicina Legal da Escola Médico-Cirúrgica do
Porto. Acabaria quase crucificado na turbulência popular, jornalística e
política desencadeada pelas medidas tomadas pelo governo central para combater
a progressão da doença.
Houve autoridades
médicas que sugeriram que a peste não era recente. Tratar-se-ia de uma
exacerbação da endemia existente na cidade há mais de um ano, sem que o alarme
fosse desencadeado ou fossem tomadas previdências adequadas. Esta questão foi
usada como argumento contra a adequação do cerco sanitário”.
Cortesia do blogue “Historinhasdamedicina”
Alguns órgãos da comunicação social foram os que mais
reclamaram das medidas que foram sendo tomadas face ao avançar da epidemia.
Durante a instauração do cordão sanitário ao Porto, durante
a crise provocada pela peste bubónica em 1899, os
jornais “O Comércio do Porto”, “Jornal de Notícias (JN)” e “Voz
Pública” instigavam os portuenses a resistir ao cerco sanitário que tinha
sido montado em volta da cidade e alimentavam a polémica em artigos
jornalísticos de vitimização face à capital.
O governo de Lisboa considerou “urgente” a necessidade de
repressão daqueles “desmandos”. Aos processos juntou-se a suspensão.
Para ultrapassar a suspensão que foi então ordenada,
o JN mudou de nome duas vezes, para Notícias, primeiro,
e Diário da Manhã, depois e a sua tiragem passaria dos 16000 para 22000
exemplares, no fim de 1899.
“A 4-7-1899
recebia eu um bilhete d'um negociante da rua de S. João, chamando a minha
attenção para uns obitos que se tinham dado na rua da Fonte Taurina.
Mandei examinar á
regedoria as certidões d'obito respectivas, que só tarde me costumam ser
communicadas para o effeito estatistico; resavam ellas de molestias banaes.
Apesar d'esta nocencia nosographica, mandei tomar informações no lugar por um
empregado que voltou dizendo-me que tinham morrido pessoas e outras estavam
doentes d'uma especie de febre com nascidas debaixo dos braços. Não se tratava
pois da banalidade prevista, o que me resolveu a fazer uma visita pessoal á
Fonte Taurina, onde com as informações colhidas e os doentes ainda presentes me
convenci logo estar em frente d'um fóco epidemico de moléstia singular e nova.
Caso anormal e grave, dei immediatamente conta do succedido ao snr. commissario
geral de policia, como auctoridade sanitaria, ao snr. vereador do pelouro, como
representante da administração municipal, e ao snr. director clinico do
hospital para o internamento imediato e isolamento dos epidemiados.
Os serviços
dependentes ou ligados á repartição de hygiene, como o da desinfecção e limpeza
viaria, entraram sem demora em acção; e no dia seguinte acompanhava ao local o
snr. inspector de policia Feijó e o sub-delegado de saude Joaquim de Mattos,
sendo intimados os proprietarios e inquilinos ás beneficiações e limpezas das
suas descuradas e imundas habitações, operações a que, diga-se de passagem, só
procederam depois d'instancias repetidas.
A´ volta do fóco
brotavam pouco e pouco casos suspeitissimos que me mantinham receioso, e não
tardou o convencimento de que a peste avançava a passos lentos e espaçados, como
é de seu uso e costume á primeira arremettida.
A 31-7 faziamos
colheita fecunda, e dentro d'oito dias adquiria por mim a irrefragavel certeza
de que tinha nos tubos de cultura isolado o puro e legitimo bacillo de Yersin.
E d'essa convicção dei parte superiormente a 8-8. Submetti o achado ao meu
companheiro e amigo Camara Pestana; devia-o á sua competencia magistral e á sua
situação official á frente dos serviços bacteriologicos do paiz, A sua
confirmação foi immediata.
As missões
estrangeiras confirmaram totalmente, integralmente, tudo o que em materia de
diagnostico e prognostico fora aventado pelo seu descobridor”.
Ricardo Jorge em 20 de Setembro de 1899
Por outro lado, o governo central nomearia Câmara Pestana,
um higienista e professor universitário, que exercia a sua profissão em Lisboa,
que se destacava como um dos pioneiros da bacteriologia, em comissão de serviço
público para estudar com o director do posto de saúde municipal portuense e com
alguns médicos estrangeiros, o valor dos soros contra a peste.
Durante a sua estadia, no Porto, Câmara Pestana contrairia a
doença que investigava, tendo, sem saber que estava contaminado, partido para
Lisboa. Acabaria por falecer no dia 15 de Novembro de 1899, no Hospital de
Arroios, onde tinha sido isolado.
O nome de Câmara Pestana haveria de ser atribuído à rua que
dá acesso ao Hospital Joaquim Urbano, em sua homenagem póstuma.
A cidade do Porto acabaria por ser alvo de um cerco
sanitário.
“Pressionado pelos
governos espanhol e francês, o ministério de José Luciano, apoiando-se no
conselho da Junta Consultiva de Saúde Pública, decretou o cerco sanitário à
segunda maior cidade portuguesa. Note-se que Portugal havia adotado essa
medida, cinco anos antes, quando a cólera grassara em Espanha.
Cerca de 2.500
soldados de infantaria e cavalaria montaram o cordão. Dificilmente poderiam
impedir a passagem de ratos e pulgas.
O governo anunciou o
cerco, mas levou dez dias a concretizá-lo.
Muitos dos portuenses
que o podiam fazer abandonaram a cidade antes do bloqueio ser instaurado.
Deslocaram-se por estrada, ou tomaram o comboio em estações não fiscalizadas.
Não receavam apenas a peste: temiam a falta de alimentos e a agitação popular.
Os jornais falaram em 20 e até em 40 mil habitantes saídos, mas esses números
parecem exagerados.
Os jornais da cidade
consideraram o cordão sanitário desproporcionado e ineficaz. Acusaram a capital
de usar a peste como pretexto para combater a economia do Porto. Era a
diabolização de Lisboa. A capital do ócio e do vício oprimia a capital do
trabalho e da modéstia. Chegou a pedir-se a autonomia a norte do Mondego.
Tratava-se duma
agudização do complexo de segunda cidade do país. Edimburgo e Barcelona não
teriam feito melhor. Os portuenses teriam, contudo, razão ao considerarem que
as medidas governamentais procuravam mais conter a peste dentro da cidade do
que extingui-la.
Os estabelecimentos
comerciais do Porto encerraram, em sinal de luto. Muitas indústrias
interromperam o funcionamento e despediram pessoal. A seguir à peste, veio a
fome.
O cordão sanitário
acabaria por se manter quase até ao Natal, mas a peste persistiu no Porto, de
forma endémica, até 1915”.
Cortesia do blogue “Historinhasdamedicina”
É, então, montado um processo de desinfecção tendo por alvo
as “ilhas” da cidade.
Croquis do cordão sanitário montado para isolamento do Porto
– Fonte: jornal “O Comércio do Porto” de 26 de Agosto de 1899
Por sua vez, Ricardo Jorge, em Lisboa, haveria de
desenvolver intensa actividade criando organismos de estudo, presidindo a
instituições e representando Portugal em conferências no estrangeiro, sendo
nomeado Inspector-Geral de Saúde e, depois, professor de Higiene da Escola
Médico-Cirúrgica de Lisboa.
Em 1903, foi incumbido de organizar e dirigir o Instituto
Central de Higiene, que passaria a ter o seu nome a partir de 1929 e, hoje, é o
Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge.
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