domingo, 1 de setembro de 2024

25.249 Ricardo Jorge - Um médico em conflito com os portuenses

 
Médico, Professor Universitário e Escritor, natural do Porto, Ricardo Jorge (1858/1939)  frequentou com brilhantismo a Escola Médico-Cirúrgica do Porto de 1874 a 1879, tendo concluído, aos 21 anos de idade, a licenciatura em Medicina com a dissertação, “Um Ensaio sobre o Nervosismo”.

 
 

Casa onde nasceu Ricardo Jorge, na Rua Mártires da Liberdade, próximo da Rua dos Bragas
 
 
 
Após umas viagens de estudo ao estrangeiro, regressou a Portugal e deu início a um curso de Anatomia dos Centros Nervosos e criou o pioneiro Laboratório de Microscopia e Fisiologia do Porto. Dedicou-se à Saúde Pública e também à Hidroterapia, tendo publicado vários estudos e, especialmente, os que dedicou às Caldas do Gerês.
A 7 de Dezembro de 1888, o governo adjudicou por contrato provisório, as águas medicinais do Gerês a uma empresa formada pelo Dr. Ricardo de Almeida Jorge e Dr. Paulo Marcelino Dias Freitas, distintos médicos e professores pelo prazo de 50 anos. O contrato definitivo é de 25 de Julho de 1889, mas, em Março de 1890, por escritura, a concessão foi vendida a uma sociedade anónima, “A Companhia das Caldas do Gerês”, de que eram sócios o Dr. Ricardo Jorge e o capitalista bracarense Manuel Joaquim Gomes, já que o Dr. Paulo Marcelino se afastou.
Esta sociedade abriria falência em 1893 e, no tempo que existiu, limitou-se praticamente a encanar as águas da Fonte, para o hotel Universal.
A concessão iria, então, ser entregue à “Empresa das Águas do Gerês”, que, em 1899, abriu os novos balneários.

 
 

Publicidade às Caldas do Gerês em 1890

 
 

Bica e Poços das termas do Gerês demolidos em 1897

 
 
Por convite da Câmara Municipal do Porto, em 1892, com quem já tinha colaborado sobre questões de Higiene Pública, Ricardo Jorge dirigiu os Serviços Municipais de Saúde e Higiene da Cidade do Porto e chefiou o Laboratório Municipal de Bacteriologia. No âmbito destas actividades publicou a série do respectivo Anuário e um Boletim Mensal de Estatística Sanitária do Porto, que fizeram dele o introdutor da moderna estatística demográfica em Portugal.
 

 

Dr. Ricardo Jorge
 
 
 
Abandonou a Cidade do Porto em 1899, aquando da Peste Bubónica, descontente com a população, violenta e instigada por forças políticas contra a sua orientação pelas medidas profiláticas que tentou implementar.

 
 
“O Porto do final do século XIX era uma cidade de contrastes. Gabava-se de ser pioneira da iluminação a gás, da fotografia e do cinema e de ter introduzido na Península Ibérica o carro elétrico, mas as condições de vida da segunda cidade portuguesa eram deploráveis para as classes desfavorecidas. O sistema sanitário era rudimentar. Anos depois, em 1905, apenas 30 por cento dos arruamentos tinham esgotos. Perto de um terço da população vivia em “ilhas” de condições higiénicas lamentáveis. A cidade detinha uma das piores taxas de mortalidade das cidades europeias, com realce para a mortalidade infantil.
A crise deu a conhecer um homem de qualidades invulgares: o médico municipal Ricardo Jorge. Em julho de 1899, era o responsável dos Serviços de Saúde e Higiene da cidade e professor da cadeira de Higiene e Medicina Legal da Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Acabaria quase crucificado na turbulência popular, jornalística e política desencadeada pelas medidas tomadas pelo governo central para combater a progressão da doença.
Houve autoridades médicas que sugeriram que a peste não era recente. Tratar-se-ia de uma exacerbação da endemia existente na cidade há mais de um ano, sem que o alarme fosse desencadeado ou fossem tomadas previdências adequadas. Esta questão foi usada como argumento contra a adequação do cerco sanitário”.
Cortesia do blogue “Historinhasdamedicina”
 
 
 
 
Alguns órgãos da comunicação social foram os que mais reclamaram das medidas que foram sendo tomadas face ao avançar da epidemia.
Durante a instauração do cordão sanitário ao Porto, durante a crise provocada pela peste bubónica em 1899, os jornais  “O Comércio do Porto”, “Jornal de Notícias (JN)” e “Voz Pública” instigavam os portuenses a resistir ao cerco sanitário que tinha sido montado em volta da cidade e alimentavam a polémica em artigos jornalísticos de vitimização face à capital.
O governo de Lisboa considerou “urgente” a necessidade de repressão daqueles “desmandos”. Aos processos juntou-se a suspensão.
Para ultrapassar a suspensão que foi então ordenada, o JN mudou de nome duas vezes, para Notícias, primeiro, e Diário da Manhã, depois e a sua tiragem passaria dos 16000 para 22000 exemplares, no fim de 1899.
 
 
 
“A 4-7-1899 recebia eu um bilhete d'um negociante da rua de S. João, chamando a minha attenção para uns obitos que se tinham dado na rua da Fonte Taurina.
Mandei examinar á regedoria as certidões d'obito respectivas, que só tarde me costumam ser communicadas para o effeito estatistico; resavam ellas de molestias banaes. Apesar d'esta nocencia nosographica, mandei tomar informações no lugar por um empregado que voltou dizendo-me que tinham morrido pessoas e outras estavam doentes d'uma especie de febre com nascidas debaixo dos braços. Não se tratava pois da banalidade prevista, o que me resolveu a fazer uma visita pessoal á Fonte Taurina, onde com as informações colhidas e os doentes ainda presentes me convenci logo estar em frente d'um fóco epidemico de moléstia singular e nova. Caso anormal e grave, dei immediatamente conta do succedido ao snr. commissario geral de policia, como auctoridade sanitaria, ao snr. vereador do pelouro, como representante da administração municipal, e ao snr. director clinico do hospital para o internamento imediato e isolamento dos epidemiados.
Os serviços dependentes ou ligados á repartição de hygiene, como o da desinfecção e limpeza viaria, entraram sem demora em acção; e no dia seguinte acompanhava ao local o snr. inspector de policia Feijó e o sub-delegado de saude Joaquim de Mattos, sendo intimados os proprietarios e inquilinos ás beneficiações e limpezas das suas descuradas e imundas habitações, operações a que, diga-se de passagem, só procederam depois d'instancias repetidas.
A´ volta do fóco brotavam pouco e pouco casos suspeitissimos que me mantinham receioso, e não tardou o convencimento de que a peste avançava a passos lentos e espaçados, como é de seu uso e costume á primeira arremettida.
A 31-7 faziamos colheita fecunda, e dentro d'oito dias adquiria por mim a irrefragavel certeza de que tinha nos tubos de cultura isolado o puro e legitimo bacillo de Yersin. E d'essa convicção dei parte superiormente a 8-8. Submetti o achado ao meu companheiro e amigo Camara Pestana; devia-o á sua competencia magistral e á sua situação official á frente dos serviços bacteriologicos do paiz, A sua confirmação foi immediata.
As missões estrangeiras confirmaram totalmente, integralmente, tudo o que em materia de diagnostico e prognostico fora aventado pelo seu descobridor”.
Ricardo Jorge em 20 de Setembro de 1899

 
 
Por outro lado, o governo central nomearia Câmara Pestana, um higienista e professor universitário, que exercia a sua profissão em Lisboa, que se destacava como um dos pioneiros da bacteriologia, em comissão de serviço público para estudar com o director do posto de saúde municipal portuense e com alguns médicos estrangeiros, o valor dos soros contra a peste.
Durante a sua estadia, no Porto, Câmara Pestana contrairia a doença que investigava, tendo, sem saber que estava contaminado, partido para Lisboa. Acabaria por falecer no dia 15 de Novembro de 1899, no Hospital de Arroios, onde tinha sido isolado.
O nome de Câmara Pestana haveria de ser atribuído à rua que dá acesso ao Hospital Joaquim Urbano, em sua homenagem póstuma.
A cidade do Porto acabaria por ser alvo de um cerco sanitário.
 
 
 
“Pressionado pelos governos espanhol e francês, o ministério de José Luciano, apoiando-se no conselho da Junta Consultiva de Saúde Pública, decretou o cerco sanitário à segunda maior cidade portuguesa. Note-se que Portugal havia adotado essa medida, cinco anos antes, quando a cólera grassara em Espanha.
Cerca de 2.500 soldados de infantaria e cavalaria montaram o cordão. Dificilmente poderiam impedir a passagem de ratos e pulgas.
O governo anunciou o cerco, mas levou dez dias a concretizá-lo.
Muitos dos portuenses que o podiam fazer abandonaram a cidade antes do bloqueio ser instaurado. Deslocaram-se por estrada, ou tomaram o comboio em estações não fiscalizadas. Não receavam apenas a peste: temiam a falta de alimentos e a agitação popular. Os jornais falaram em 20 e até em 40 mil habitantes saídos, mas esses números parecem exagerados.
Os jornais da cidade consideraram o cordão sanitário desproporcionado e ineficaz. Acusaram a capital de usar a peste como pretexto para combater a economia do Porto. Era a diabolização de Lisboa. A capital do ócio e do vício oprimia a capital do trabalho e da modéstia. Chegou a pedir-se a autonomia a norte do Mondego.
Tratava-se duma agudização do complexo de segunda cidade do país. Edimburgo e Barcelona não teriam feito melhor. Os portuenses teriam, contudo, razão ao considerarem que as medidas governamentais procuravam mais conter a peste dentro da cidade do que extingui-la.
Os estabelecimentos comerciais do Porto encerraram, em sinal de luto. Muitas indústrias interromperam o funcionamento e despediram pessoal. A seguir à peste, veio a fome.
O cordão sanitário acabaria por se manter quase até ao Natal, mas a peste persistiu no Porto, de forma endémica, até 1915”. 
Cortesia do blogue “Historinhasdamedicina”
 
 
 
É, então, montado um processo de desinfecção tendo por alvo as “ilhas” da cidade.
 
 
 
 
Brigada de desinfecção preparando-se para entrar em acção – Ed. Aurélio da Paz dos Reis; Fonte:CPF

 
 

Croquis do cordão sanitário montado para isolamento do Porto – Fonte: jornal “O Comércio do Porto” de 26 de Agosto de 1899
 
 
 
 
Por sua vez, Ricardo Jorge, em Lisboa, haveria de desenvolver intensa actividade criando organismos de estudo, presidindo a instituições e representando Portugal em conferências no estrangeiro, sendo nomeado Inspector-Geral de Saúde e, depois, professor de Higiene da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa.
Em 1903, foi incumbido de organizar e dirigir o Instituto Central de Higiene, que passaria a ter o seu nome a partir de 1929 e, hoje, é o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge.

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