segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

25.107 O Crime da Rua das Flores

 
Urbino de Freitas era irmão do capitalista João António de Freitas Fortuna e amigo (e médico) de Camilo Castelo Branco e, apesar dos esforços denodados do escritor para o ajudar a provar a sua inocência, em tribunal, foi condenado, em 1893, a uma pena de prisão de oito anos (que cumpriria em Lisboa), seguida de 20 anos de degredo em Angola.
Indultado em 1898, de parte da pena, em 1904, recebe um indulto total, com a obrigação de se exilar em solo estrangeiro.
Urbino de Freitas exilou-se, então, no Brasil, a partir de onde tentou reabrir o seu processo e provar a sua inocência.
Não conseguiu fazê-lo; nem mesmo quando, em 1913, decidiu regressar ao Porto com o mesmo objectivo. Deu então uma longa entrevista ao Jornal da Tarde, mas acabaria por morrer menos de um mês depois, a 23 de Outubro.
 
 
João Freitas Fortuna vivia na Rua das Flores (no edifício onde, anos mais tarde, se instalaria a Papelaria Reis), onde tinha um estabelecimento de papelaria e livraria que fora do seu pai, o comerciante João Freitas Fortuna Júnior.
A loja de Freitas Fortuna, que também era muito dado ao tratamento das coisas do espírito, era visitada com frequência pelo seu amigo íntimo, Camilo Castelo Branco que retribuía com a abertura das portas de sua casa de S. Miguel de Seide.
Freitas Fortuna teve um irmão, Vicente Urbino de Freitas, nascido em 1849, que se formaria em Medicina e que ficou célebre no Porto.


 
Rua das Flores, em perspectiva obtida, c. 1860, a partir do Largo da Porta de Carros (Praça Almeida Garrett) – Calótipo de Frederick Flower
 
 
 
 
Assim, entre 30 de Março e 2 de Abril de 1890, aconteceram vários casos de envenenamento entre alguns membros de família Basto Sampaio, moradores na Rua das Flores, 72 a 76.
O patriarca da família e comerciante possuía uma das maiores fortunas da cidade.

 
 
O prédio da família Sampaio, na Rua das Flores, com o lampião público à sua porta



No prédio ao centro, de rés-do-chão e três andares, na Rua das Flores, 72-76, vivia a família Basto Sampaio – Fonte: Google maps
 
 
 
A família, em causa, era constituída por um comerciante de linhos, sua esposa, sua irmã, seus netos, duas criadas e os caixeiros da loja.
O referido casal teve três filhos.
O primeiro, Guilherme Sampaio, morreu pouco depois de casado, deixou dois filhos (Mário e Augusta), que ficaram ao cuidado dos avós.
O segundo, tendo casado, enviuvou e, pouco tempo depois, também se finou, deixando como descendência uma filha, Berta, que ficaria ao cuidado dos avós.
José António Sampaio Júnior, assim se chamava o falecido, morreu no Hotel Paris, durante uma visita ao Porto, para tratar de um novo casamento que tinha combinado com uma cidadã inglesa, caixeira num bazar do Chiado, em Lisboa. Na morte, com sintomas de envenenamento, tinha sido assistido pelo cunhado, Dr. Vicente Urbino.
O terceiro, uma filha, Maria das Dores, com 18 anos, casou em 1877, com o Dr. Vicente Urbino de Freitas, precisamente, no ano da formatura deste. O Dr. Vicente Urbino viria a ser catedrático da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, tendo ficado conhecido, no âmbito da profissão, como um entendido no tratamento da lepra, morando, à data dos trágicos acontecimentos, na Rua da Sovela, nº 160 (actual Rua dos Mártires da Liberdade).
 
 
 
À esquerda, em primeiro plano, morava Vicente Urbino de Freitas
 
 
No dia 29 de Março de 1890, véspera de Domingo de Ramos, chega à morada da Rua das Flores, uma encomenda postal endereçada a uma das meninas, expedida de Lisboa, que continha umas amêndoas e um bolo de coco e chocolate.
Por desconhecimento do remetente (Dom Lúcio Artins), a avó das crianças achou prudente não comerem os doces, mas como no Domingo seguinte as crianças e a cozinheira insistissem em provar as iguarias, a anciã acabou por concordar.
Comeram as amêndoas e não tocaram nos bolos.
Na 2ª Feira, como nada de especial tinha acontecido no dia anterior, a autorização estendeu-se aos bolos, que as três crianças deglutiram, bem como a avó e a cozinheira que foram instadas a fazer também uma prova.
Não tardou que todos se sentissem indispostos.
Havia que chamar um médico e lá, apareceria, o Dr. Urbino, que receitou às mulheres um vomitório e às crianças, que até já se sentiam um pouco melhor, uns clisteres. O estado dos adultos melhorou, o das meninas, também, mas o menino Mário continuava a sofrer.
São chamados outros médicos e o comissário geral da Polícia, Adriano Acácio de Morais Carvalho.
Apresenta-se o médico Adelino Leão da Costa.
Vicente Urbino informa-o de que os sobrinhos foram envenenados «por uma ingestão de doces, vindos de Lisboa». Não alude aos clisteres.
Depois aparece o médico José Godinho de Faria. Presta-lhe também esclarecimentos, mas é igualmente omisso na aplicação dos clisteres.
Quando, algumas horas depois, entra no quarto do menino Mário o médico Joaquim José Ferreira (o janota, o psiquiatra), exclama: o menino está morto.
Quando o afamado médico Joaquim Ferreira da Silva também chega à casa da família Sampaio, limita-se a verificar o óbito do menino Mário.
 
 
 
Mário e a irmã Augusta
 
 
O menino morre, em completa agonia, e as outras crianças acabam por sobreviver, pois tinham expelido o clister, mal o Dr. Urbino virou costas.
O médico Joaquim José Ferreira (o Janota) que assiste à morte do menino, suspeitando de um crime, pede a comparência urgente do comissário-geral da polícia, Adriano Acácio de Morais Carvalho.
À baila vem, então, o envenenamento do cunhado do Dr. Urbino, José António Sampaio Júnior, filho do comerciante de linhos, ocorrido num hotel da cidade, algum tempo atrás. Também por envenenamento. Neste caso, o Ministério Público, cujo delegado era Miguel Pestana da Silva, não conseguiu obter a prova do alegado crime.
Começam as investigações e as contradições nos depoimentos de Vicente Urbino.
Interrogado pela polícia, o médico conta que esteve em Lisboa, entre 5 e 8 de Março, tendo ficado em casa do professor de Letras Adolfo Coelho, a fim de seguir de perto a tradução de um trabalho seu. Revela também que, a 27 de Março, partira para Lisboa no “rápido”, com o mesmo propósito, mas perdera o comboio na estação de Coimbra, “por força de um acidente intestinal”, e regressara ao Porto na madrugada de 28.
A polícia descobre que tinha estado em Lisboa, mas hospedado no Hotel Central, surgem testemunhos de confeiteiros que identificam Vicente Urbino e certificam da compra, por ele, de amêndoas de Páscoa.
Sobre a mentira exposta pelas investigações da hospedagem em casa do colega Afonso Coelho, Vicente Urbino refaz o discurso dizendo ter estado em Lisboa, mas não em casa de Adolfo Coelho, e só faltou à verdade, no dever sagrado de salvaguardar o nome e a honra duma senhora casada que ali foi visitar.
Essa senhora viera ao Porto, acompanhado pelo marido, já velho, de propósito para o consultar na qualidade de médico. As relações criadas no seu consultório do Porto, com a cliente, converteram-se a breve trecho em relações amorosas, disse Vicente Urbino.
Ao comissário da polícia, à parte, ainda diz que a senhora mistério se chamava Berta e que dava o nome de Franco, ao marido.
Ninguém acredita nisto e recebe voz de prisão.
Cerca de duas semanas, após a tragédia acontecida, entra nos calabouços da Relação do Porto.
Entretanto, tinha sido colocada a hipótese, por Ana Plácido, de Urbino se recolher a S. Miguel de Seide, à casa de Camilo para, daí, dar o salto para Espanha, e de lá poder organizar com os seus advogados, a sua defesa, o que não veio a acontecer.
Tinha passado, então, praticamente dois anos, sobre a presença de Vicente Urbino, juntamente com o seu irmão Freitas Fortuna e outras personagens, no casamento de Camilo e Ana Plácido, acontecido no 2º andar de um prédio da Rua de Santa Catarina, no dia 9 de Março.
Em pleno período de averiguações dos crimes, em Abril de 1893, surge uma carta anónima dando conta da permanência, em Arcos de Valdevez, da pessoa que tinha expedido de Lisboa a caixa com as amêndoas envenenadas.
Descobre-se, entretanto, a identidade do denunciante, que é Bento Agostinho da Costa Guimarães, um ourives na Rua das Flores.
Explica que soube de tudo, por intermédio de Manuel Tinoco, um seu conhecido, irmão de um emigrante no Brasil.
O delegado do Ministério Público e o chefe da polícia Cardoso Lopes vão aos Arcos e ouvem a testemunha, em causa, que se encontrava enferma, na cama.
Afirma, essa personagem, que num comboio que fazia a viagem entre o Porto e Lisboa, em 27 de Março de 1890, para onde se deslocava para embarcar para o Brasil, lhe foi feito por um companheiro de viagem, de ocasião, que se identificou como sendo Eduardo Mota, o pedido para expedir de Lisboa para o Porto, uma caixa de chocolates, dirigida à noiva de um amigo, tarefa que prometera cumprir. Caso aceitasse, poupava-lhe a maçada da viagem. Para o efeito, foi-lhe entregue o pacote da encomenda e 300 réis para despesas postais.
Pretendia, o tal amigo, explicou, dar a entender à namorada, que estaria na capital, por aquelas datas. Coisa de namoricos.
O tal companheiro de viagem, que identificava ao fim de mais de três anos ser o Vicente Urbino, ausentou-se, dizendo que se juntaria a um amigo noutra carruagem e que sairia em Coimbra, onde aproveitaria para tratar de alguns assuntos.
A testemunha chegada do outro lado do Atlântico dava pelo nome de Brito e Cunha, e chegava do Brasil para que fosse feita justiça, dizia.
Foi a machadada fatal na defesa de Vicente Urbino, que teve a liderança de Alexandre Braga (pai), um “expert” nestes assuntos de tribunais, em colaboração com o Dr. Temudo Rangel.
Segue-se, ao fim de pouco mais de três anos, o julgamento, presidido por Ernesto Kopke da Fonseca e Gouveia.
Alexandre Braga consegue, apesar de tudo, dividir a opinião pública, face aos factos em evidência:
Vicente Urbino declarou os sobrinhos envenenados e aplicou-lhes clisteres, aplicação ocultada a médicos e autoridades; disse que estivera em Lisboa a tratar da tradução dum seu trabalho médico, e que se hospedou em casa de Adolfo Coelho, o que se provou ser falso; não fez a menor prova que tornasse verosímil a existência da dama misteriosa de Lisboa – a qual, por sua vez, não apareceu a salvá-lo, em circunstâncias tão afrontosas da sua honorabilidade de homem e da sua dignidade profissional; afirmou que, a 27 de Março, indo a Lisboa, ficou na Estação-Velha, tendo-se apurado que o comboio na Estação-Nova, em que foi à cidade estudantil, partiu antes de seguir o seu rumo, o de Lisboa – salientando-se, além disso, a coincidência da ida a Lisboa, de 27 para 28, sendo as amêndoas despachadas em Lisboa, precisamente a 28 de Março.
As dúvidas colocavam-se:
Quem despachou as amêndoas? Não foi Vicente Urbino, pois ficou em Coimbra; a morte do Mário foi a resultante de envenenamento pelos bolos ou pelos clisteres? Os peritos da acusação juram que foi envenenado – os peritos da defesa a jurarem que não, apoiados por sumidades estrangeiras em matéria toxicológica.
No final, Vicente Urbino foi condenado a uma pena de 8 anos de prisão, seguida de degredo por 20, ou, em alternativa, a 28 anos no degredo, 8 dos quais em prisão no mesmo país.
Móbil do crime: “Se os sobrinhos morressem, Maria das dores, a mulher de Vicente Urbino, herdaria a vasta fortuna do pai”.
A defesa recorre para a Relação e para o Supremo, mas sem resultados: a pena é agravada para 9 anos de prisão, seguida de degredo por 20 anos, os dois primeiros dos quais passados na prisão. Na manhã de 28 de Maio de 1894, Urbino de Freitas torna-se o presidiário nº 544 da Penitenciária de Lisboa.
Em 1898, é indultado da quinta parte da pena. Transita para o degredo em Angola, em 1901, já depois da morte do seu irmão, que tinha falecido em Agosto de 1899, gastando boa parte da sua fortuna na tentativa de provar a sua inocência.
A sogra Maria Carolina, de 70 anos, que enviuvara em 1891, entretanto, teria desposado um jovem estudante da Academia Politécnica de 25 anos.
Em 1904, D. Carlos indulta-o da pena restante com a cláusula de não pisar território português, pelo que, de África passou para o Brasil.
Em 1913, consegue, já em plena República, vir a Portugal, mas adoece e morre em Outubro desse ano e recebe sepultura no jazigo do cemitério da Lapa, onde já estavam os restos mortais do seu irmão.
Tem a companhia, até ao fim de Maria das Dores, que nunca o abandonaria.
Nos dias de hoje, este episódio da vida da cidade do Porto, que assumiu destaque nacional e rivalizou com a indignação patente, perante o Ultimato Inglês acontecido em Janeiro daquele ano, continua a dividir opiniões, pois há quem continue a acreditar na inocência de Vicente Urbino de Freitas e argumentam:
“Ele era, à data, um bem-sucedido médico e professor da Escola Politécnica e o herdeiro único da fortuna do seu irmão, que não tinha descendência”.
 
 
 
Rua das Flores no fim do século XIX
 
 
 
Prédio onde está, hoje, o “A.S. 1829 Hotel”, no início do século XX, tendo a fonte, que se vê, à esquerda, sido demolida em 1922
 
 
 
 
O drama de Clementina Sarmento
 
 
O Dr. Vicente Urbino teve cinco filhos. Um deles, Emílio Urbino, depois de ter andado pela Bélgica, onde se formou em engenharia, regressou a Portugal e veio encontrar no lugar de perceptora de suas irmãs, uma atraente jovem descendente de fidalgos alentejanos, entretanto, empobrecidos. Chamava-se Clementina Sarmento.
Juraram amarem-se para sempre. Estávamos em 1902.
A mãe do Urbino Emílio, Maria das Dores, não gostou do idílio e despediu a perceptora das filhas. Nesse tempo, Vicente Urbino de Freitas, ainda penava no degredo africano.
A mulher do catedrático, que tinha tomado sobre os seus ombros a educação dos filhos, fez saber ao Urbino Emílio que, para ele, tinha em vista um casamento social e economicamente vantajoso.
Ele é que não aceitou a imposição. Saiu de casa, viajou para Lisboa onde, num quarto de hotel, se suicidou com um tiro na cabeça.
O corpo do infeliz veio para o Porto e foi sepultado no jazigo de família no cemitério da Lapa.
Germano Silva conta a seguir o que se passou:
 
“Dias depois da chegada do corpo do infeliz rapaz, uma jovem rapariga vinda do Alentejo, hospedou-se no melhor hotel que naquele tempo havia na cidade: o Hotel de Francfort, entretanto demolido para a abertura da Avenida dois Aliados.
No dia seguinte, perguntou onde ficava o cemitério da Lapa. Saiu, regressou e não mais foi vista. Quando abriram a porta do quadro onde se hospedara encontraram-na morta com um tiro na cabeça. Era o cadáver da Clementina Sarmento.
Ao lado do corpo estava um pequeno revólver e um papel com um pedido dirigido às suas antigas pupilas:
«… tenho no vosso jazigo um lugar ao lado do nosso mártir. Não se opõe, não? Se acaso derem comigo a tempo, não me chamem á vida, ajudem-me a morrer. As nossas vidas pertenciam-se…»”

 
 
Jazigo de João Freitas Fortuna Júnior, no cemitério da Lapa – Fonte: Revista Visão
 
 
Na foto acima, a primeira lápide superior, à esquerda, é a de Camilo Castelo Branco. A do meio, à direita, com a indicação de CS, é a de Clementina Sarmento.

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