José Augusto Pinto de Magalhães era um frequentador do Café
Guichard, onde se sentava, por vezes, com outros tertulianos, à mesma mesa de
Camilo Castelo Branco, que sempre lhe mostrou uma certa indiferença.
Na Praça Nova, o Café Guichard na 3ª,
4ª e 5ª porta, a contar da esquina
Perspectiva actual, idêntica à da gravura anterior – Fonte:
Google maps
José Augusto era órfão de pai e mãe, dos quais tinha herdado
uma pequena fortuna e da qual vivia o seu dia-a-dia.
Na sua posse, por herança, tinha uma quinta, em Baião, em
Santa Cruz do Douro – Quinta do Lodeiro.
Estudante matriculado em Coimbra passava, no entanto, a sua
vida na cidade do Porto, onde frequentava os teatros e todos os salões de baile
da burguesia citadina. Eram tempos dos jovens experimentarem as paixões
platónicas, que estavam na moda. Eram tempos, em que faziam furor, os
semblantes sem cor e as expressões de fastio.
Camilo não simpatizava com ele, vendo-o como um fidalgote de província.
As duas personagens passaram da indiferença ao antagonismo.
José Augusto fazendo parte dos partidários de Dabedeille e
Camilo dos da Belloni, ambas cantoras célebres de ópera, que actuaram, no Porto,
na época 1849/50.
Como o futebol ainda não tinha sido inventado, as paixões
dirigiam-se para intérpretes do mundo teatral ou musical. Era este o caso.
Acontece que, passados alguns meses, dá-se um volte face na
relação dos dois homens.
Um dia, a uma das mesas do café Guichard, José Augusto
elogia Camilo, a propósito de uns versos publicados pelo escritor num jornal.
Camilo gostou, e daqui iria surgir uma amizade.
Em 7 de Junho de 1849 (porventura, seria o ano de 1850), os
dois amigos, na casa dos 24 anos cada um, rumavam à romaria do Senhor da Pedra,
deslocando-se em cavalos, alugados na cidade do Porto.
Após cerca de uma hora de viagem, depois de terem
atravessado o rio Douro pela ponte Pênsil, e subido as encostas de V. N. de
Gaia, ao som da Sirandinha e Cana Verde,
que os restantes romeiros interpretavam bailando, chegavam a Vilar do Paraíso.
Ponte Pênsil, D. Maria II
Nesta aldeia, José Augusto indica a Camilo uma casa, cercada
por um jardim murado, na qual moravam duas mulheres muito belas.
Aguardaram alguns minutos pelo seu aparecimento, o que não
aconteceu, e seguiram para o arraial.
Casa da família Owen, em Vilar do Paraíso – Foto de Joaquim
Ferreira de Barros, In revista “O Tripeiro”, Vª série, Vº ano, Junho de 1949
Comido o peixe frito do costume, feitas as orações habituais
na capelinha do Senhor da Pedra, uma volta pelo arraial e os dois amigos
encetaram o caminho de regresso.
Capela do Senhor da Pedra, em 1900
Ao passarem novamente pela casa, atrás referida, em Vilar do
Paraíso, depararam-se com as duas mulheres, que José Augusto tinha,
anteriormente, enaltecido, passeando-se no jardim.
Lá estavam elas, muito loiras, muito brancas e muito
elegantes - Fanny Owen e a sua irmã, Maria Owen.
Depois de breves instantes na contemplação das damas, ao
longe, Camilo fica com a convicção de que seriam, de facto, muito belas e que
José Augusto estava fascinado por elas.
As duas cândidas e jovens criaturas eram filhas do coronel
Hugh Owen, comandante do exército inglês que serviu em Portugal durante a
Guerra Peninsular, explicou José Augusto ao seu amigo.
Hugh Owen iniciou a sua carreira militar em 1803, na
Grã-Bretanha, como voluntário, tendo entrado no exército, anos mais tarde, em
1809, embarcando logo para Portugal, onde foi promovido a capitão pelo marechal
Beresford. Participou na Guerra Peninsular, defendendo o território Português e,
no fim do conflito, foi promovido a tenente-coronel, do regimento de cavalaria
nº 6 de Chaves.
Em 1820, recebe o título de coronel e acompanha Beresford
numa viagem ao Brasil, regressando no mesmo ano, com a revolução liberal de
1820, já em marcha.
Na sequência desta revolução, foi afastado, assim como todas
as autoridades britânicas, retirando-se do exército.
A 20 de Dezembro de 1820, casa com Maria Rita da Rocha Pinto
Velho da Silva, uma viúva, filha de um grande negociante de Vinho do Porto, de
quem teve quatro filhos, entre eles a jovem Fanny Owen.
No período de Inverno, os Owen viviam no Porto, na então
denominada, Rua da Sovela, actual Rua Mártires da Liberdade e, no Verão,
naquela freguesia gaiense.
Alguns meses passaram sobre os acontecimentos daquele dia de
romaria, até que, durante um dos muitos bailes levados a efeito nos salões das
casas da burguesia portuense, José Augusto descobre as duas beldades entre os
presentes. Não descansando enquanto não arranjou forma de lhes ser apresentado,
viria a conseguir o desiderato, que envolveu também Camilo.
Não passou muito tempo e José Augusto munido de alguns
pertences da sua quinta de Santa Cruz de Baião, mobila e monta uma casa alugada
em Vilar do Paraíso, ficando, assim, mais perto das suas apaixonadas. Sim, era
este o caso, pois não havia forma de ele se decidir.
Em Dezembro de 1851, em Vilar do Paraíso, José Augusto, à
lareira, fazia planos para se aproximar das duas beldades.
Ao fundo, à direita, Vilar do Paraíso, em perpectiva obtida
a partir do cabeço do “Monte de Além” (Monte de São Caetano) - Foto de Joaquim
Ferreira de Barros, In revista “O Tripeiro”, Vª série, Vº ano, Julho de 1949
Esse momento acabaria por chegar e ele torna-se visita da
casa, onde convive com a esposa do coronel Owen e com as duas jovens.
Camilo visita o amigo e convive também com a família Owen,
apercebendo-se que José Augusto continua indeciso quanto ao rumo a tomar.
Na primavera de 1851, Camilo aluga também uma casa em Vilar
do Paraíso, abandonando a frequência do Seminário, após viver um breve devaneio
místico, que o tinha assolado, alguns meses antes.
Estava formado um quarteto de namorados.
Maria aceitava o braço de José Augusto e Fanny, o de Camilo.
Camilo chega a dedicar a Fanny alguns versos, mas acaba por
abandonar o local e a relação, abruptamente, talvez, na sequência de qualquer
desentendimento entre os dois.
Mais tarde, Camilo justifica aquele desenlace com uma cena
protagonizada por José Augusto, em que este dava a entender um sentimento de
ciúme, que envolvia Camilo e Fanny.
O quarteto começava a desafinar!
À direita, a Vila Alice, Casa da família Owen, actualmente,
na Rua Camilo Castelo Branco, Vilar do Paraíso – Fonte: Google maps
Os meses passaram e, à meia-noite de 11 de Julho de 1853, um
cavaleiro, que não era senão José Augusto, cingido a um muro da propriedade dos
Owen, em Vilar do Paraíso, esperava a sua amada para empreenderem uma fuga cujo
destino seria um altar.
Um rapto, à moda desses tempos…e surpresa: a mulher que cai
nos braços do cavaleiro não é a Maria, mas, sim, a Fanny.
Para trás, fica uma mãe chorando, uma filha rejeitada e um
pai, que à época vivendo em Lisboa, não aprovava a união que lhe foi proposta e
envolvia uma sua filha.
Um drama estaria agora prestes a começar.
O itinerário para a fuga tinha como primeiro destino
Oliveira do Douro e, aí, seria continuado por barco, rio acima, até Santa Cruz
do Douro, à Quinta do Lodeiro.
O cavalo que foi escolhido para o transporte, cedo se
assustou, atirou com a carga ao chão e partiu à desfilada. Noite escura como o
breu, com a lua escondida atrás das nuvens, e o caminho passa a ser feito a pé,
às cegas, por entre as árvores.
Tendo-se dirigido, primeiro, por engano, em direcção a Ovar,
os fugitivos guiados por umas peixeiras inflectiram para o lugar da Sueima,
onde chegaram ao nascer do dia, junto do terreiro da quinta de José Correia de
Melo,
Abaixo o percurso provável, feito pelos fugitivos.
Albano Moreira da Silva, In revista “O Tripeiro”, Vª série,
Vº ano, Agosto de 1949
José Augusto e Fanny chegam, por fim, à Quinta do Lodeiro em
13 de Julho e casam, por procuração, na igreja de Santo Ildefonso, apenas, em 5
de Setembro de 1853, representados por José Correia de Melo Silveira, por parte
da noiva e por Joaquim Marcelino de Matos, por parte do noivo.
Igreja de Santo Ildefonso, em 1833
Casa do Lodeiro
É que, entretanto, tinham chegado às mãos de José Augusto,
umas cartas que Fanny tinha escrito, que nem configuravam nada de especial, mas
numa passagem de uma delas, fazia alusão à “viuvez
da sua alma e ao desespero por não encontrar coração que a compreendesse”.
O teor daquelas cartas, contemporâneas de outras que lhe
eram endereçadas, contrariava tudo o que, a si, era transmitido, na apreciação
de José Augusto.
Entre várias teorias, há quem afirme que as cartas que
estavam na posse de Bernardo Rodrigues Fuentes, à data, Cônsul de Espanha,
teriam sido dirigidas por Fanny, à sua mulher, em consequência de uma amizade
entre as duas, tendo Fuentes servido de secretário ocasional.
Bernardo Rodrigues Fuentes, morador na Rua dos Ingleses, nº
4 e que, em 1856, se mudou para a Rua do Almada, era pai do José Rodrigues
Fuentes, que casou com uma filha de Manuel Sousa Carqueja, negociante de
Oliveira de Azeméis, fundador do jornal “O Comércio”, título depois substituído
por “O Comércio do Porto” e morador na Rua das Congostas.
O tal destinatário das cartas, o Fuentes, neste caso Bernardo
Rodrigues Fuentes, cônsul de Espanha, foi uma das testemunhas de defesa,
apresentadas por Camilo, no processo que correu nos tribunais, a propósito das
agressões ao jornalista do jornal “A Pátria”, João Augusto Novais Vieira, o
“Novais dos óculos”.
Segundo a queixa que Novais Vieira apresentou às
autoridades, uma agressão ocorreu no dia 23 de Janeiro de 1851, em pleno Teatro
S. João, sendo intervenientes Camilo Castelo Branco e Dom Luís da Câmara.
No dia seguinte, 24 de Janeiro, a queixa referia-se a nova
agressão, que teve por palco a Rua de Sá da Bandeira, protagonizada por Camilo.
Sobre este último acontecimento, o jornal “O Nacional” dava
conta dele em 25 de Janeiro de 1851:
“Ontem houve murraça na rua de Sá da Bandeira entre dois escritores
públicos: foram ambos presos e levados por amigos para o quartel do Carmo,
donde saíram logo.”
No cerne daquelas agressões, estavam escritos de Novais
Vieira que denunciavam relações promíscuas de Camilo com D. Maria Felicidade do
Couto Browne, poetisa, senhora casada com o rico comerciante portuense Manuel
de Clamouse Browne e reavivadas outras, protagonizadas por Camilo e envolvendo-o, neste caso, com Isabel Cândida, a freira que, no convento de S. Bento da Avé-Maria, era a guardiã da filha do escritor e de Patrícia Emília.
Quanto a Luís da Câmara Leme, um militar, político e escritor, referia-se a um caso amoroso por
ele vivido com a sua amante, a actriz Emília das Neves (1823-1883) que ficou
conhecida por Linda Emília, devido à sua grande beleza.
Desfecho do caso em tribunal: Camilo foi absolvido.
Voltando à amargura e auto flagelação que José Augusto
experimentava, após muita hesitação, decide-se pelo casamento na sequência de
aconselhamento com vários amigos.
Começava, então, um drama conjugal, perante o qual definhava
o enlace, assim como, a vida dos participantes.
A tísica atinge Fanny, que definhava dia-a-dia.
No início de Julho de 1854, José Augusto e Fanny, esta
devorada já pela tísica, hospedam-se no Hotel Bhartès, na Rua da Fábrica, onde
Camilo visita o casal.
Passados alguns dias, avizinhando-se o fim próximo de Fanny,
José Augusto diz a Camilo:
- “Mataram-na a ela e
mataram-me a mim!”
- “Quem”, pergunta
Camilo.
- “Mataram-na as
cartas que me enviaram…” e continuou:
- “Desde essa hora
tinha dois caminhos a seguir: um era o da liberdade, deixando-a; outro, era o
do cativeiro com a morte, desposando-a. Meti-me ao caminho da honra e dei-lhe o
braço de irmão”.
Em 3 de Agosto de 1854, na casa de Vilar do Paraíso, morria
Fanny Owen e, um mês mais tarde, em 29 de Setembro, José Augusto dava também o
último suspiro, suicidando-se, por envenenamento, num quarto de um hotel de
Lisboa.
Hugh Owen e sua mulher, Josefina, estavam hospedados, à
data, no mesmo hotel.
O corpo do morgado de Santa Cruz do Douro seria sepultado
sem identificação, no cemitério do Alto de S. João, em Lisboa.
Entre o rapto e a morte de Fanny decorreram treze meses.
Camilo alude ao drama de Fanny Owen no romance “Bom
Jesus do Monte” contribuindo, deste modo, para a divulgação de um caso,
que deu brado, à época. Atente-se que Camilo tem na mão a pena, com que pode
fazer-nos acreditar, bem como a ele próprio, no que mais jeito lhe der.
O Dr. Joaquim José Ferreira, “O Janota”, um “bon vivant” do
círculo de Camilo, de quem era amigo e a pedido do escritor, confidenciou-lhe que
Fanny morrera virgem, pelo que se pensa que José Augusto não terá sido “nem bom
marido, nem bom amante”. Os ciúmes ter-lhe-iam toldado o discernimento.
No entanto, há quem afirme, que aquela confidência
publicitada por Camilo, não é mais que um autoconsolo, já que, na realidade, Fanny
tinha rejeitado os amores de Camilo, tomando-o, apenas, como um bom amigo.
Então, começaria a fazer sentido a cena da deserção de
Camilo de Vilar do Paraíso.
Assim, o escritor António dos Reis Ribeiro, a propósito
desta tragédia, afirma que não foi a fatalidade que tomou conta da situação,
mas, sim, o ciúme.
Trecho da obra “Bom Jesus do Monte”, de Camilo Castelo
Branco, após a morte de Fanny
Em alguns dos seus romances, de que “Bom Jesus do Monte” é
um bom exemplo, há quem encontre cenas e narrativas de alguma justificação,
consigo mesmo.
Parece já não oferecer muitas dúvidas de que foi Camilo quem
encaminhou as cartas, nas mãos de Fuentes e as fez chegar, se bem que por
interposta pessoa, a José Augusto.
Não é despiciendo também realçar, na apreciação sobre todos
os factos inerentes a este caso, a importância da relação de proximidade entre
Camilo e o tal Fuentes, que foi sua testemunha em tribunal.
“Em boa verdade,
Camilo não fez chegar as tais cartas a José Augusto Pinto de Magalhães, mas a
um amigo comum, Joaquim Marcelino de Matos, que desempenharia logo depois o
papel de noivo, no casamento por procuração; mas foi como se tivesse sido, pois
Camilo, ao contrário do que escreveu, bem sabia onde elas iriam chegar”.
Cortesia de Manuel, In “geneall.net/”
O coração de Fanny, que Camilo diz, foi conservado num
frasco, em formol, perder-se-ia para sempre.
Guardado na capela da Quinta do Lodeiro, segundo
descendentes de José Augusto terá sido recolhido, depois, em jazigo de família,
em Amarante.
Para outros, teria sido levado para o hospital da Ordem da Trindade,
no Porto, mas por deficiente manuseio de alguém, perdeu-se.
Camilo diz que o coração foi entregue a uma senhora da Foz
do Douro com quem Fanny tinha convivido.
Vá lá saber-se. Perdeu-se!
O corpo de Fanny, segundo o escritor, na obra “Bom Jesus do
Monte”, acabaria no jazigo da família Rocha Pinto, no cemitério da Lapa.
Nunca fez tanto sentido, como no caso presente, a afirmação
de Raúl Brandão de que “onde Camilo põe a mão é tragédia certa”.
Em 1856, Hugh Owen regressou ao seu país, abandonando a
mulher e os filhos.
Em 1979, Agustina Bessa-Luís escreve Fanny Owen.
Em 1981, a história dramática ficou imortalizada no filme
“Francisca” de Manoel de Oliveira, baseado no livro de Agustina.
“Vila Alice”, em Maio de 2024 – Cortesia de Daniel Chichorro
Por curiosidade, diga-se que a “Vila Alice” chegou a ser propriedade
da família Mariani, de V. N. de Gaia, mais propriamente de Aníbal Mariani Pinto
cuja filha, Aurélia Mariani, foi casada
com Arnaldo Rodrigues proprietário dos “Armazéns do Anjo”.
Excelente Américo - conhecia mal esta estória, mas já tenho na mão o livro da Agustina. Conheço estes locais em Gaia - Vila Alice, Soeime, Vilar de Andorinho. Moro quase lá.
ResponderEliminarÉ uma história muito interessante...até deu filme. Abraço
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