Muitos portuenses se interrogam sobre o que será e para que
servirá, uma pequena construção (foto abaixo), semelhante a alguns quiosques
existentes na cidade, situado na Rua do Ouro, na confluência com a Rua das
Condominhas.
Antes de desvendar o mistério, ter-se-á que narrar alguns
factos históricos ligados à cidade do Porto.
No fim do século XIX, a cidade sentiu a necessidade de
caminhar em direcção ao progresso no capítulo da higiene urbana.
Assim, em 1897, os responsáveis da edilidade portuense
determinaram, após a anuência do governo do reino, a abertura de concurso,
publicitado em Diário do Governo, para a construção de uma rede de saneamento
público, dado que não podia continuar a anarquia reinante nas acções de
eliminação de lixos e dejectos de todo o tipo, o que implicava graves
consequências na saúde da população.
Para dar uma ideia da situação sanitária da cidade diga-se
que, em 1870, a mortalidade era de 23,6% e que, em 1881, subiria para 39,5%,
sendo a mortalidade infantil, em 1896, de 257,82‰.
Para agravar a situação, em 1899, a cidade esteve de
quarentena em virtude de um surto de peste bubónica.
Para seguir o exemplo de outras cidades europeias, seria
lançado um concurso para recolha, tratamento e eliminação dos dejectos de
origem doméstica e outros efluentes de proveniência industrial.
Tentava-se, deste modo, passar as fases antecedentes de
eliminação daqueles materiais, primeiro a céu-aberto e, depois, do lançamento
em fossas sépticas, de limpeza obrigatória de tempos-a-tempos.
A eliminação dos dejectos fazia-se por despejos de baldes,
quando cheios, normalmente em linhas de água.
Em determinada altura, as “privadas”, em prédios de andares, passariam para as varandas das
traseiras dos andares.
A meio da foto, na esquina das ruas de Passos Manuel e do
Ateneu Comercial, observa-se uma torre (coluna) dotada de uma “privada” por
cada andar – Fonte Google maps
O concurso para a realização das obras seria ganho pela
empresa Hughes & Lancaster, sedeada
em Westminster, com a proposta de
solução para a rede de saneamento a implementar na cidade do Porto, a
socorrer-se da acção da gravidade, coadjuvada com o emprego dos expulsores de shone nas zonas baixas
da cidade.
A proposta final
apontava para uma solução semelhante, já executada pelos projectistas entre
1889 e 1894, na cidade de Rangoon, na Birmânia.
Sobre a área a ser intervencionada dizia o nº 1 do concurso.
“1º A área a sanear é abrangida por uma linha perimetrica
que, costeando a margem direita do rio Douro, desde o esteiro de Campanhã até à
embocadura do Valle do Oiro, siga a recta até ao Matadouro, d’ahi pelos
extremos da rua da Rainha e Costa Cabral em linha recta até esteiro de
Campanhã.”
Legenda:
A – Valle do Ouro – zona do Largo António Calém (Sobreiras);
B – Matadouro – antigamente localizado na Rua de S. Diniz
(instalações da Câmara Municipal do Porto Limpeza urbana/canil);
C – Rua da Raínha (extrema) – actual Rua Antero de Quental;
D – Rua de Costa Cabral (extrema);
E – Rua Esteiro de Campanhã
“Sucintamente, a
solução apresentada consiste da divisão da cidade em bacias de drenagem
autónomas – districtos, as
quais no ponto de convergência gravítica são instalados tanques ou ejectores,
denominados de orgãos da rede, cuja função é injectar o esgoto num “collector-syphão”,
actualmente denominado de Interceptor Douro, que transporta o esgoto para
um reservatório instalado em local que permitisse o seu lançamento em meio
hídrico receptor, neste caso Sobreiras. Contudo o funcionamento deste sistema
requeria a existência de uma linha de ar comprimido, sendo a sua central de
compressão, instalada em Sobreiras”.
Cortesia da Engenheira Paula Alexandra Brandão e do
Professor Francisco Piqueiro; 6.as Jornadas de Hidráulica, Recursos Hídricos e
Ambiente (2011)
A cidade do Porto, a nível nacional foi, então, pioneira na
criação da rede de saneamento, cuja particularidade advém do colector/sifão,
instalado paralelamente ao rio Douro entre Rego do Lameiro e Sobreiras,
coadjuvado por uma linha paralela de ar comprimido.
O esgoto conduzido até ao reservatório, em Sobreiras, caía
em tanques, sendo lançado através de um exutor submarino no rio Douro.
Os tanques instalados em Sobreiras eram cheios enquanto
decorria o período de maré cheia. A descarga era feita duas horas depois de a
maré começar a baixar.
Complementava o sistema, uma central de produção de ar
comprimido, localizada também num edifício em Sobreiras, conforme critérios e
métodos da equipa projectista – Isaac Shone e Edwin Ault.
Ali, seria o ar produzido por dois compressores, accionados
a vapor produzido por duas caldeiras que queimavam carvão e tendo capacidade
para produzir 400 kg de vapor por hora, à pressão de 8 atmosferas e que
introduziriam na rede 10 m3 de ar, à pressão de 2 atmosferas, permitindo o funcionamento
dos chamados ejectores ou expulsores.
“A conduta de ar
comprimido desenvolve-se paralelamente ao collector-syphon entre os Guindais e
Sobreiras, numa extensão de cerca de 5 km também em ferro fundido com diâmetro
de 100 mm.
Em Sobreiras, além da
construção de um edifício para a central de ar comprimido, foi construído um
tanque bi-compartimentado com capacidade de 12 m3 e um exutor submarino de 1,00
m de diâmetro o qual se desenvolvia até ao leito do rio, para que a rejeição de
águas residuais ao meio hídrico, a qual ocorria 2 vezes por dia, não tivesse
impacto visual nem olfactivo nem concorresse para a ocorrência e alastramento
de epidemias”.
Cortesia da Engenheira Paula Alexandra Brandão e do
Professor Francisco Piqueiro; 6.as Jornadas de Hidráulica, Recursos Hídricos e
Ambiente (2011)
Com a rede a ficar acima do “collector-syphão” era possível, então, que o escoamento fosse feito por acção da
gravidade.
Neste caso, as
ligações da rede ao “collector-syphão” era executada por intermédio de um tanque, chamado “tanque de shone”, funcionando por enchimento e
contactando à entrada com a canalização da rede (em grez), e à saída para o “collector-syphão”
por um sifão.
“os collectores parciaes vêm despejar em grandes tanques enterrados,
denominados pela empreza, tanques Shone, que nada mais são que reservatórios,
com paredes em beton, comunicando directamente, a montante, com a canalização
de grés e a jusante por intermédio de um syphão S, seguido de canalisação de
ferro, com o grande collector marginal - “collector-syphão””
Adriano de Sá; “O
novo systema de exgottos do Porto”
Para as zonas
baixas da cidade a empresa propõe o uso de Ejectores
Shone ou Expulsores Shone,
funcionando com o auxílio de
ar comprimido.
O Ejector Shone não era mais que
um recipiente que, quando cheio, fazia a descarga com o auxílio do ar
comprimido.
O seu funcionamento
era automático dependente, apenas, do ar comprimido injectado na rede.
A pressão normal
era restabelecida com o escape desse ar para a atmosfera, através de uma coluna
de ventilação. No entanto, o fluxo de ar, para eliminação de odores na
atmosfera, era obrigado a passar por um reservatório de cascalho e areia.
Todos os Ejectores
Shone são do tipo duplo, em paralelo (dois recipientes lado-a-lado), excepto o
dos Guindais que é simples.
A área
intervencionada fica dividida no que os projectistas chamam districtos.
Distritos
Os districtos,
acima referenciados, estavam associados a tanques ou ejectores como se indica
abaixo.
A intervenção encontra-se concluída no final da primeira
década do século XX, sendo a primeira fase inaugurada em 1907, mas a entrada em
funcionamento pleno da rede, nomeadamente das bacias, apenas ocorre a partir de
1924, e estender-se-á até meados de 1926.
Para o prolongamento da duração dos trabalhos, contribuíram
alterações ao projecto inicial, que compreenderam um prolongamento da extensão
da rede à Foz do Douro.
Em resumo:
“A cidade do Porto
assumiu no início do século passado um papel pioneiro ao definir a concretizar
um sistema de redes coletoras, interpretação e destino final das águas
residuais, o que permitiu durante algumas décadas uma ausência de descargas
poluentes no rio Douro, com princípios e métodos considerados como adequados às
condições de então.
O princípio de
rejeição das águas residuais consistia em conduzi-las para o Oceano Atlântico,
efetuando o seu lançamento na zona terminal do rio, realizando-se, assim, um
adequado lançamento do efluente no rio, dito de “à maré”. Este lançamento era
realizado na zona terminal deste curso de água, a partir de tanques de retenção
situados na zona de Sobreiras, local para onde convergiam os intercetores
existentes à época.
Ao longo de décadas
assistiu-se à extensão dos intercetores e ampliação das redes coletoras,
acompanhando a expansão urbanística da cidade, mantendo-se princípios atrás
mencionados, ou seja, a concentração de todas as águas residuais em Sobreiras.
Consequência deste
desajuste temporal, verificou-se a influência dos intercetores e tanques de
Sobreiras, pelo que as descargas no rio Douro se passaram a efetuar em vários
locais e de forma contínua, situação que não se coaduna com as exigências
ambientais dos nossos dias”.
Fonte: “aguasdoporto.pt/”
Afinal, a estrutura existente no Largo António Calém, e que
alguns confundem com um quiosque, é uma pequena construção que permite a visita
a um ejector
e a uma torre de ventilação do sistema de saneamento centenário da
cidade do Porto.
Trata-se do ejector que vai fazer a elevação dos fluídos
para os tanques de descarga situados nas Sobreiras.
De início, o funcionamento do sistema descrito haveria de
contar com algumas contrariedades importantes.
A primeira, respeitava à necessidade da presença de líquido
nas condutas acabadas de montar, o que não se verificava, pois eram poucos os
lares portuenses que tinham água ao domicílio.
Por outro lado, importava que fosse feita a ligação das
habitações à rede, e isso custava dinheiro.
A situação de falta de fluxo seria atenuada com a
determinação inicial de que a solução para a cidade do Porto fosse combinada,
isto é, que seria acrescentada à recolha dos efluentes domésticos e
industriais, também os caudais de origem pluvial.
A situação tem um certo incremento a partir de 1927, quando
entra em funcionamento os Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento.
Equipa de manutenção junto do Ejector do Largo António Calém
No ano 2000, iniciar-se-ia a renovação da centenária estação
de tratamento das Sobreiras, que seria substituída por uma ETAR entrada em funcionamento
em 20 de Fevereiro de 2003.
O Interceptor Douro seria, então,
prolongado até ao Freixo.
Esta ETAR é constituída por três linhas de tratamento: a
linha líquida, a linha de lamas e a linha de desodorização.
A ETAR de Sobreiras trata cerca de 60% das águas residuais
domésticas da parte Ocidental da cidade do Porto, tendo sido dimensionada para
servir um equivalente populacional de 200.000 habitantes.
Esta estrutura serve, assim, a cidade, desde Miragaia ao
Castelo do Queijo e à Circunvalação, até à Areosa, numa área que inclui os
Hospitais de Santo António e São João.
Devido à exiguidade de terreno disponível, e por forma a
minimizar o impacte visual das construções, a ETAR desenvolve-se em vários
níveis e encontra-se parcialmente enterrada, partindo da cota da Rua de
Sobreiras e terminando à cota da Rua de Gaspar Correia.
Além disso, as coberturas dos principais órgãos de
tratamento são vegetalizadas e a zona envolvente ajardinada.
Complementando o sistema de tratamento de esgotos da cidade,
foi inaugurada, no Freixo, uma nova ETAR, em 7 de Setembro de 2000, para servir
a zona oriental da cidade.
O meio receptor deste equipamento é o Rio Tinto.
A rede em funcionamento, há mais de cem anos, à qual
converge cerca de 40% do esgoto produzido na cidade do Porto, foi prolongada
até à Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) do Freixo.
No entanto, persiste um troço original, central, de secção variável
com uma extensão de 2 000m, entre a Alfandega e Gomes Freire.
Sem comentários:
Enviar um comentário