segunda-feira, 12 de setembro de 2022

25.163 O “Quiosque” do Largo António Calém

 
Muitos portuenses se interrogam sobre o que será e para que servirá, uma pequena construção (foto abaixo), semelhante a alguns quiosques existentes na cidade, situado na Rua do Ouro, na confluência com a Rua das Condominhas.
 
 
 

Fonte: Google maps

 
 
Antes de desvendar o mistério, ter-se-á que narrar alguns factos históricos ligados à cidade do Porto.
No fim do século XIX, a cidade sentiu a necessidade de caminhar em direcção ao progresso no capítulo da higiene urbana.
Assim, em 1897, os responsáveis da edilidade portuense determinaram, após a anuência do governo do reino, a abertura de concurso, publicitado em Diário do Governo, para a construção de uma rede de saneamento público, dado que não podia continuar a anarquia reinante nas acções de eliminação de lixos e dejectos de todo o tipo, o que implicava graves consequências na saúde da população.
Para dar uma ideia da situação sanitária da cidade diga-se que, em 1870, a mortalidade era de 23,6% e que, em 1881, subiria para 39,5%, sendo a mortalidade infantil, em 1896, de 257,82‰.
Para agravar a situação, em 1899, a cidade esteve de quarentena em virtude de um surto de peste bubónica.
Para seguir o exemplo de outras cidades europeias, seria lançado um concurso para recolha, tratamento e eliminação dos dejectos de origem doméstica e outros efluentes de proveniência industrial.
Tentava-se, deste modo, passar as fases antecedentes de eliminação daqueles materiais, primeiro a céu-aberto e, depois, do lançamento em fossas sépticas, de limpeza obrigatória de tempos-a-tempos.
A eliminação dos dejectos fazia-se por despejos de baldes, quando cheios, normalmente em linhas de água.
Em determinada altura, as “privadas”, em prédios de andares, passariam para as varandas das traseiras dos andares.

 
 

A meio da foto, na esquina das ruas de Passos Manuel e do Ateneu Comercial, observa-se uma torre (coluna) dotada de uma “privada” por cada andar – Fonte Google maps
 
 
 
 
O concurso para a realização das obras seria ganho pela empresa Hughes & Lancaster, sedeada em Westminster, com a proposta de solução para a rede de saneamento a implementar na cidade do Porto, a socorrer-se da acção da gravidade, coadjuvada com o emprego dos expulsores de shone nas zonas baixas da cidade.
A proposta final apontava para uma solução semelhante, já executada pelos projectistas entre 1889 e 1894, na cidade de Rangoon, na Birmânia.
Sobre a área a ser intervencionada dizia o nº 1 do concurso.

 
“1º A área a sanear é abrangida por uma linha perimetrica que, costeando a margem direita do rio Douro, desde o esteiro de Campanhã até à embocadura do Valle do Oiro, siga a recta até ao Matadouro, d’ahi pelos extremos da rua da Rainha e Costa Cabral em linha recta até esteiro de Campanhã.”
 
 
 

A zona da cidade, primitivamente a drenar, está representada a sombreado
 
 
Legenda:
 
A – Valle do Ouro – zona do Largo António Calém (Sobreiras);
B – Matadouro – antigamente localizado na Rua de S. Diniz (instalações da Câmara Municipal do Porto Limpeza urbana/canil);
C – Rua da Raínha (extrema) – actual Rua Antero de Quental;
D – Rua de Costa Cabral (extrema);
E – Rua Esteiro de Campanhã
 
 
 
“Sucintamente, a solução apresentada consiste da divisão da cidade em bacias de drenagem autónomas – districtos, as quais no ponto de convergência gravítica são instalados tanques ou ejectores, denominados de orgãos da rede, cuja função é injectar o esgoto num “collector-syphão”, actualmente denominado de Interceptor Douro, que transporta o esgoto para um reservatório instalado em local que permitisse o seu lançamento em meio hídrico receptor, neste caso Sobreiras. Contudo o funcionamento deste sistema requeria a existência de uma linha de ar comprimido, sendo a sua central de compressão, instalada em Sobreiras”.
Cortesia da Engenheira Paula Alexandra Brandão e do Professor Francisco Piqueiro; 6.as Jornadas de Hidráulica, Recursos Hídricos e Ambiente (2011)
 
 
 
 
A cidade do Porto, a nível nacional foi, então, pioneira na criação da rede de saneamento, cuja particularidade advém do colector/sifão, instalado paralelamente ao rio Douro entre Rego do Lameiro e Sobreiras, coadjuvado por uma linha paralela de ar comprimido.
O esgoto conduzido até ao reservatório, em Sobreiras, caía em tanques, sendo lançado através de um exutor submarino no rio Douro.
Os tanques instalados em Sobreiras eram cheios enquanto decorria o período de maré cheia. A descarga era feita duas horas depois de a maré começar a baixar.
Complementava o sistema, uma central de produção de ar comprimido, localizada também num edifício em Sobreiras, conforme critérios e métodos da equipa projectista – Isaac Shone e Edwin Ault.
Ali, seria o ar produzido por dois compressores, accionados a vapor produzido por duas caldeiras que queimavam carvão e tendo capacidade para produzir 400 kg de vapor por hora, à pressão de 8 atmosferas e que introduziriam na rede 10 m3 de ar, à pressão de 2 atmosferas, permitindo o funcionamento dos chamados ejectores ou expulsores.
 
 
“A conduta de ar comprimido desenvolve-se paralelamente ao collector-syphon entre os Guindais e Sobreiras, numa extensão de cerca de 5 km também em ferro fundido com diâmetro de 100 mm.
Em Sobreiras, além da construção de um edifício para a central de ar comprimido, foi construído um tanque bi-compartimentado com capacidade de 12 m3 e um exutor submarino de 1,00 m de diâmetro o qual se desenvolvia até ao leito do rio, para que a rejeição de águas residuais ao meio hídrico, a qual ocorria 2 vezes por dia, não tivesse impacto visual nem olfactivo nem concorresse para a ocorrência e alastramento de epidemias”.
Cortesia da Engenheira Paula Alexandra Brandão e do Professor Francisco Piqueiro; 6.as Jornadas de Hidráulica, Recursos Hídricos e Ambiente (2011)
 
 
Com a rede a ficar acima do “collector-syphão” era possível, então, que o escoamento fosse feito por acção da gravidade.
Neste caso, as ligações da rede ao “collector-syphão” era executada por intermédio de um tanque, chamado “tanque de shone”, funcionando por enchimento e contactando à entrada com a canalização da rede (em grez), e à saída para o “collector-syphão” por um sifão.
 
 
os collectores parciaes vêm despejar em grandes tanques enterrados, denominados pela empreza, tanques Shone, que nada mais são que reservatórios, com paredes em beton, comunicando directamente, a montante, com a canalização de grés e a jusante por intermédio de um syphão S, seguido de canalisação de ferro, com o grande collector marginal - “collector-syphão””
Adriano de Sá; “O novo systema de exgottos do Porto”
 
 
 
Para as zonas baixas da cidade a empresa propõe o uso de Ejectores Shone ou Expulsores Shone, funcionando com o auxílio de ar comprimido.

 
 


 
 
O Ejector Shone não era mais que um recipiente que, quando cheio, fazia a descarga com o auxílio do ar comprimido.
O seu funcionamento era automático dependente, apenas, do ar comprimido injectado na rede.
A pressão normal era restabelecida com o escape desse ar para a atmosfera, através de uma coluna de ventilação. No entanto, o fluxo de ar, para eliminação de odores na atmosfera, era obrigado a passar por um reservatório de cascalho e areia.
Todos os Ejectores Shone são do tipo duplo, em paralelo (dois recipientes lado-a-lado), excepto o dos Guindais que é simples.
A área intervencionada fica dividida no que os projectistas chamam districtos.

 
 
Distritos
 
 
Os districtos, acima referenciados, estavam associados a tanques ou ejectores como se indica abaixo.

 
 


 
 


 
 
 
A intervenção encontra-se concluída no final da primeira década do século XX, sendo a primeira fase inaugurada em 1907, mas a entrada em funcionamento pleno da rede, nomeadamente das bacias, apenas ocorre a partir de 1924, e estender-se-á até meados de 1926.
Para o prolongamento da duração dos trabalhos, contribuíram alterações ao projecto inicial, que compreenderam um prolongamento da extensão da rede à Foz do Douro.
Em resumo:
 
 
“A cidade do Porto assumiu no início do século passado um papel pioneiro ao definir a concretizar um sistema de redes coletoras, interpretação e destino final das águas residuais, o que permitiu durante algumas décadas uma ausência de descargas poluentes no rio Douro, com princípios e métodos considerados como adequados às condições de então.
O princípio de rejeição das águas residuais consistia em conduzi-las para o Oceano Atlântico, efetuando o seu lançamento na zona terminal do rio, realizando-se, assim, um adequado lançamento do efluente no rio, dito de “à maré”. Este lançamento era realizado na zona terminal deste curso de água, a partir de tanques de retenção situados na zona de Sobreiras, local para onde convergiam os intercetores existentes à época.
Ao longo de décadas assistiu-se à extensão dos intercetores e ampliação das redes coletoras, acompanhando a expansão urbanística da cidade, mantendo-se princípios atrás mencionados, ou seja, a concentração de todas as águas residuais em Sobreiras.
Consequência deste desajuste temporal, verificou-se a influência dos intercetores e tanques de Sobreiras, pelo que as descargas no rio Douro se passaram a efetuar em vários locais e de forma contínua, situação que não se coaduna com as exigências ambientais dos nossos dias”.
Fonte: “aguasdoporto.pt/”
 
 
 

Edifício primitivo onde se produzia o ar comprimido para injecção na rede
 
 
 

Sala de produção do ar comprimido no edifício de Sobreiras
 
 
 
 
Afinal, a estrutura existente no Largo António Calém, e que alguns confundem com um quiosque, é uma pequena construção que permite a visita a um ejector e a uma torre de ventilação do sistema de saneamento centenário da cidade do Porto.
Trata-se do ejector que vai fazer a elevação dos fluídos para os tanques de descarga situados nas Sobreiras.
De início, o funcionamento do sistema descrito haveria de contar com algumas contrariedades importantes.
A primeira, respeitava à necessidade da presença de líquido nas condutas acabadas de montar, o que não se verificava, pois eram poucos os lares portuenses que tinham água ao domicílio.
Por outro lado, importava que fosse feita a ligação das habitações à rede, e isso custava dinheiro.
A situação de falta de fluxo seria atenuada com a determinação inicial de que a solução para a cidade do Porto fosse combinada, isto é, que seria acrescentada à recolha dos efluentes domésticos e industriais, também os caudais de origem pluvial.
A situação tem um certo incremento a partir de 1927, quando entra em funcionamento os Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento.
 
 
 

Torre de Ventilação e Ejector do Largo António Calém
 
 
 
Equipa de manutenção junto do Ejector do Largo António Calém



No ano 2000, iniciar-se-ia a renovação da centenária estação de tratamento das Sobreiras, que seria substituída por uma ETAR entrada em funcionamento em 20 de Fevereiro de 2003.
O Interceptor Douro seria, então, prolongado até ao Freixo.
Esta ETAR é constituída por três linhas de tratamento: a linha líquida, a linha de lamas e a linha de desodorização.
A ETAR de Sobreiras trata cerca de 60% das águas residuais domésticas da parte Ocidental da cidade do Porto, tendo sido dimensionada para servir um equivalente populacional de 200.000 habitantes.
Esta estrutura serve, assim, a cidade, desde Miragaia ao Castelo do Queijo e à Circunvalação, até à Areosa, numa área que inclui os Hospitais de Santo António e São João.
Devido à exiguidade de terreno disponível, e por forma a minimizar o impacte visual das construções, a ETAR desenvolve-se em vários níveis e encontra-se parcialmente enterrada, partindo da cota da Rua de Sobreiras e terminando à cota da Rua de Gaspar Correia.
Além disso, as coberturas dos principais órgãos de tratamento são vegetalizadas e a zona envolvente ajardinada.
 
 
 

Aspecto actual da Estação de Tratamento de Resíduos das Sobreiras – Fonte: “aguasdoporto.pt/”
 
 
Complementando o sistema de tratamento de esgotos da cidade, foi inaugurada, no Freixo, uma nova ETAR, em 7 de Setembro de 2000, para servir a zona oriental da cidade.
O meio receptor deste equipamento é o Rio Tinto.
A rede em funcionamento, há mais de cem anos, à qual converge cerca de 40% do esgoto produzido na cidade do Porto, foi prolongada até à Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) do Freixo.
No entanto, persiste um troço original, central, de secção variável com uma extensão de 2 000m, entre a Alfandega e Gomes Freire.
 
 
 

Vista aérea da ETAR do Freixo, em Campanhã

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