A necessidade de um
porto artificial em Leixões
«Em distancia de hum quarto de legoa a o mar,
em direyto da boca do rio, está descoberta hua penha de grande e plana área,
(…) dizem os engenheyros que se pode edificar hum cáys para ir a pé enxuto ao
dito penhasco grande chamado Leyxoens edificar hua boa Fortaleza para defesa de
hum surgidouro excelente de grande quantidade de Navios, muyto util para todo o
tempo, muyto mais para o em que não podem entrar na Barra do Porto, por seus
continuos perigos.»
Pde. Luís Cardoso,
Memórias Paroquiais, 1758
Em 1854, a propósito do levantamento de um porto de abrigo
como alternativa às margens do rio Douro, ia ganhando forma a solução já
alvitrada para a foz do rio Leça, aproveitando a existência de uns rochedos
chamados leixões, que seriam os seus alicerces. Só cerca de três décadas depois
o pretendido porto começaria a ser uma realidade.
Noticia no jornal “O Commercio ” de
Junho de 1854
“Edificar «hum cáys para ir a pé enxuto» desde a praia até aos leixões, definindo deste modo um seguro porto de abrigo artificial para uma «grande quantidade de navios», é um projecto de grande utilidade sonhado – prematuramente, dirão alguns – desde pelo menos o século XVI. Mas aquilo que para muitos é de uma evidência quase cristalina, para outros é total e radicalmente ignorado. Tal cegueira, iremos encontrar entre os poderosos e aqueles que, afinal, paradoxalmente mais lucrariam com a construção de tal empresa: a burguesia mercantil, e posteriormente industrial, da cidade do Porto.
Embora os pedidos e projectos para
transformar o porto de abrigo natural numa estrutura portuária comecem a
tornar-se sistemáticos a partir do reinado de D. João V, já antes encontramos
algumas referências, como é o caso de um estudo da autoria de Simão de Ruão,
datado de 1567. Mas é, de facto, desde a segunda metade do século XVIII que os
planos se multiplicam. Caso dos de Salazar em 1779, Oudinot em 1789, Gomes de
Carvalho em 1816, Alves de Sousa em 1840, ou de Damásio em 1844.
Porém já não era só a evidência da
possibilidade e da utilidade que motivava estes estudos. Já não eram os
leixões, só por si, que estimulavam tais ideias. Um outro factor, localizado
cinco quilómetros mais a sul, ia tendo cada vez mais peso: o poder ser uma
alternativa, um abrigo, para os navios, cada vez em maior número, que em
determinadas alturas do ano «não podem entrar na Barra do Porto, por seus
continuos perigos.»
Merece, de resto, uma referência especial o
«Mapa (...) a demonstração da Costa do Mar desde a Villa de Matozinhos, athe a
Barra da Cidade do Porto» de Jozé Gomes da Cruz, Piloto de Naus de Guerra,
datado de 1775 e que defendia o seguinte projecto:
« (…) defronte da dita villa (Matosinhos) se
reprezenta a grande pedra de Leixões, que pode servir para asento de hum
castello, à sombra do qual tenhão abrigo os navios que não poderem entrar na
Barra da dita Cidade do Porto, também se pode entulhar pela parte do Norte com
Navios velhos carregados de pedra, hum espasso que ha entre a dita pedra e
outras que lhe ficão pela parte do Norte (…) desta obra rezultará no tempo de
Guerra escuzarem de hir os Navios recolher-se a Galiza e lá fiquarem
prizioneiros, ou perderem-se hindos corridos com temporal (…) ficarão os navios
assim abrigados dos ventos Sues, Oestes, Noroestes e Nortes, e não lhe poderão
fazer muito danno os mais ventos (…) ».
Com efeito, desde sempre a foz do rio Douro
foi um obstáculo particularmente penoso para as embarcações que, penetrando
através da sua barra, procuravam alcançar, a montante, os diversos cais do
porto do Douro, os mais importantes dos quais implantados na margem direita,
junto às zonas ribeirinhas e históricas da cidade do Porto, como era o caso do
cais da Ribeira, do Bicalho, do Ouro, da Cantareira …
Uma entrada perigosa, repleta de inúmeros e
inesperados penedos, emergentes uns, encobertos outros, provocava repetidos e
trágicos naufrágios. Uma simples análise à «Planta Geográfica da Barra do
Porto» incluída na obra Descripção topographica e historica da cidade do Porto,
da autoria de Agostinho Rebello da Costa, datada de 1789, é bastante
elucidativa a este respeito. Por outro lado, o facto do Douro ser um rio de
grandes e cíclicas cheias, que impediam a sua navegabilidade durante largos
períodos, associado à circunstância de, em contrapartida, a barra se mostrar
muitas das vezes bastante assoreada nas épocas restantes, concorria para que o
Douro fosse, efectivamente, um porto de grandes perigos e dificuldades para o
trânsito marítimo. Tanto maiores quanto se ia registando, igualmente, um
progressivo aumento do calado dos navios. Desta situação incomportável, em
particular para a navegação comercial, eloquentemente faz eco o relatório de
John Rennie, datado de 14 de Junho de 1855, referindo:
«os perigos existentes e as perdas de vidas
que tinha havido, bem como os prejuízos que tinha sofrido o comércio pela
dificuldade na entrada da barra, que no inverno e no começo da primavera estava
fechada às vezes por semanas e meses seguidos, tendo-se dado casos de um navio
fazer viagem de ida e volta ao Brasil, enquanto outro esperava fora da barra
que se lhe oferecesse ensejo de entrar no porto. No próprio verão, o mar às
vezes não deixava comunicar os navios com o interior do porto».
Estariam agora finalmente reunidas as
condições naturais, os desígnios divinos e a vontade dos Homens para avançar
com a construção de um porto artificial apoiado nos leixões? Tudo levaria a
crer que sim. Mas não foi assim tão fácil. Que o demo ou – se quiserem numa
leitura mais historiográfica – o contexto sócio-económico de então, ainda
colocou muitos entraves ao longo da segunda metade do século XIX.
Não era fácil, particularmente à burguesia
portuense, abdicar do porto do Douro. Durante séculos a cidade habituara-se a
desenvolver a sua actividade comercial de uma forma particularmente
privilegiada, quase cúmplice, com o rio. A cidade crescera mesmo em íntima
relação com este curso de água. É nas suas zonas ribeirinhas que encontramos as
principais estruturas económico-comerciais da cidade. E tal é válido para todo
o século de Oitocentos. A bolsa, a alfândega, a feitoria inglesa, as sedes e
armazéns das principais empresas comerciais do burgo… E, na segunda metade do
século XIX, em nítida articulação com os cais fluviais, é também a fixação
industrial que vai moldar e estreitar uma vez mais a ligação da cidade com o
seu rio.
Neste contexto, seria possível à burguesia do
Porto de então aceitar, de uma forma pacífica, a transferência do seu mundo
comercial e portuário do Douro para Leixões? A resposta foi a de um retundante
não. Um não materializado numa total surdez e cegueira em relação às propostas
que apontavam Leixões como uma alternativa segura ao Douro. Um não que, para lá
das razões fundadas nos laços históricos e afectivos que esta comunidade
possuía com o rio, teve em conta muito mais o imediatismo, e muito pouco a
perspectiva de futuro. É que, como facilmente se compreenderá, à burguesia
comercial e industrial da cidade não era nada aliciante, do ponto de vista
económico e numa perspectiva de curto prazo, ter que desmantelar, transferir ou
adaptar os seus armazéns, fábricas e outras estruturas ribeirinhas. Mesmo
intuindo que a médio/longo prazo a opção por Leixões seria seguramente mais
rentável.
E,
subscrevendo a opinião do poder económico (ou, pelo menos, de importantes e
influentes sectores comerciais portuenses), também o poder político irá ignorar
os espíritos iluminados que viam a solução na construção de um porto
alternativo na foz do rio Leça.
E assim, a teimosia dos homens prevaleceu
mais do que seria compreensível. Para obstar aos constantes naufrágios e às
demoradas esperas para se poder atravessar a barra, foram-se tomando medidas
que, embora desesperadas e simultaneamente imbuídas da mais pura das esperanças
na resolução do problema de uma segura navegabilidade do velho porto comercial
do Douro, não passaram nunca de paliativos. Salientaram-se, contudo, algumas
intervenções na foz que chegaram até aos nossos dias. Caso do dique a jusante
da Cantareira, incluindo a «Meia Laranja», segundo projecto do Engenheiro
Oudinout, construído entre 1792 e 1805, e um outro dique de 600 metros, na
extremidade norte do Cabedelo, hoje designado por molhe Luiz Gomes de Carvalho,
personalidade que dirigiu a sua construção entre 1820 e 1825.
Mas obras e projectos houve muitos desde os
finais do século XVIII. Em 1790, por iniciativa da Real Companhia Velha, é
iniciada a construção, junto à Arrábida, da estrada marginal que ligará o Porto
à Foz-do-Douro e que permitirá, nos anos seguintes, o aparecimento e a sua
ligação também por via terrestre de novos e melhores cais, como o da Cantareira,
Arrábida, Massarelos, Monchique, e a própria Ribeira.
Mas não eram os novos cais, e uma melhor
acessibilidade a estes por terra, que iriam resolver o problema da navegação.
Os perigos da barra do Douro mantinham-se e os acidentes sucediam-se. E é na
sequência de um trágico naufrágio, ocorrido no dia 29 de Março de 1852 com o
vapor «Porto», arremessado pelo mar alteroso para as pedras da Forcada, em
frente ao Castelo de S. João da Foz, e no qual morreram 66 pessoas, que
finalmente as autoridades se empenham na procura de uma solução. Uma procura
que, desde logo, se continua a centrar, ainda, no rio Douro. Contudo,
paulatinamente, Leixões ia emergindo e assumindo-se como a resposta óbvia…
Poucos dias depois do naufrágio do «Porto» o
Governo nomeia uma comissão, encabeçada pelo Engenheiro Belchior Garcez para
propor o que se julgasse conveniente para aumentar a segurança do Douro. Era
apenas o início. Muitos outros projectos, estudos de correntes, avaliação das
cheias, propostas e efectivas destruições de penedias e quebramento de rochas,
construção de novos cais, molhes e enrocamentos de margens, se seguiram nas
décadas posteriores, da responsabilidade de tantas outras comissões ou de
engenheiros, muitos dos quais estrangeiros, especialmente contratados para tal
objectivo:
1854 – o engenheiro francês Gayffier propõe
um cais do Passeio Alegre até aos penedos das Felgueiras;
1854 – é contratado o engenheiro londrino
William Jates Freebody para vir examinar a barra do Douro e elaborar um relatório
com soluções;
1855 – um outro inglês, o engenheiro
hidráulico sir John Rennie, apresenta um relatório onde defende a destruição de
uma série de rochedos;
1858 – o engenheiro inglês, Knox, apresenta
um projecto que previa o aterro da foz do rio, abrindo-se no Cabedelo um canal
com eclusa que desembocaria num porto de abrigo construído no mar e formado por
molhes marítimos;
1859 – projectos do engenheiro Joaquim Nunes
de Aguiar e do inspector de Obras Públicas José Carlos Chelmiki;
1859 a 1862 – pormenorizados estudos
hidrográficos dirigidos pelo engenheiro Caetano Maria Batalha que conclui,
igualmente, pela necessidade de destruição de inúmeros penedos, muitos dos
quais até profundidades que deveriam atingir os seis metros;
1863 – o engenheiro francês, H. Luzeu,
defende que a melhor solução é mudar a orientação da entrada do Douro,
sugerindo para tal a construção de dois molhes curvilíneos a sair do Cabedelo e
de S. João da Foz alterando, efectivamente, o rumo das águas do Douro no seu contacto
com o mar. Mais um projecto, como tantos outros, que não passou do papel. O
mesmo aconteceria com os de Léo de La Peyrouse e Robert Messer, ambos de 1865.
Concludentes foram, no entanto, os estudos
dirigidos pelo engenheiro Afonso Joaquim Nogueira Soares de 1869 a 1871. As
suas propostas, aprovadas pelo Governo de 1873, embora com sucessivas
modificações e melhoramentos, foram efectivamente implantadas em trabalhos que
dirigiu até 1892. Data deste período, entre outros, a construção do molhe norte
da Foz do Douro, o enrocamento da praia das Argolas, o aterro do Passeio
Alegre, o varadouro da Cantareira, o molhe de Carreiros, o molhe das Felgueiras
ou do Farolim…
Neste grande conjunto de estudos e projectos,
desde cedo Leixões e a foz do rio Leça surgem como a alternativa ideal para o
velho porto comercial do Douro. Disso não têm dúvidas alguns dos mais eminentes
engenheiros estrangeiros a quem o governo solicitara opinião. Embora autor do
projecto já referido, da construção de dois molhes na foz do Douro que
permitisse uma mudança de orientação das águas do rio na sua desembocadura, o
francês Luzeu defende claramente a alternativa da construção de um novo porto.
Quem não se limitou a defender tal hipótese, avançando mesmo com projectos,
foram os também já aqui referidos ingleses Freebody e Rennie, ambos em 1855.
Assim, apesar de sucessivamente adiado e dos
interesses que se jogavam contra a sua efectiva materialização, ia ganhando
pois espaço e adeptos a ideia de um porto em Leixões. Muito mais quando, dez
anos depois, datado de 17 de Março de 1865, um novo projecto, da autoria do
engenheiro Manuel Afonso Espregueira, que previa a construção de dois molhes
enraizados na praia, consegue reunir os consensos necessários para obter, três
anos depois, o parecer favorável do Conselho das Obras Públicas.
Mas seria necessário esperar ainda mais
alguns anos. Tempo para o engenheiro inglês James Abernethy produzir dois
planos e para fazer aparecer em cena as duas personagens que, tecnicamente,
iriam produzir em definitivo o projecto do Porto de Leixões: o inglês Sir John
Coode e o já nosso conhecido Afonso Joaquim Nogueira Soares – o engenheiro que
vinha dirigindo os trabalhos na foz do Douro. É de facto com base nos projectos
apresentados em 1878 por Nogueira Soares e em 1881 por Coode que, em 1883, o
ministro das Obras Públicas, Hintze Ribeiro, apresenta na Câmara dos Deputados
uma Proposta de Lei autorizando o Governo a adjudicar a construção do porto
artificial de abrigo de Leixões. E, julgando-se convenientes algumas
modificações, é responsabilizado pela elaboração do projecto definitivo o
engenheiro Nogueira Soares, que o dará por concluído no dia 24 de Agosto de
1883. Justo será salientar o nome de Adolpho Loureiro que, durante este
período, faz parte de uma série de comissões que acompanham a elaboração do
projecto final.
E assim, depois de muitas décadas de espera
(séculos para os mais visionários), nesse mesmo ano de 1883 era aberto concurso
internacional para a definitiva construção do Porto de Leixões. Base de
licitação da obra – 4.500 contos de reis.
Os velhos do Restelo, que mais apropriado
seria designar neste caso por velhos da Ribeira, estavam vencidos… mas não
convencidos. A primeira batalha estava de facto ganha. Não a guerra. O Porto de
Leixões ia começar a ser construído, porém apenas como «porto artificial de
abrigo». Um local que, onde embora se pudesse admitir algum trabalho de
carga e descarga, era assumido apenas como refúgio, ancoradouro seguro para as
embarcações que aguardariam aí a melhor oportunidade para entrar na barra do
Douro. Leixões ainda não era, na sua génese, um verdadeiro porto comercial
alternativo ao do Douro.
E, quando a utilidade e potencialidade de
Leixões eram por demais evidentes, tentaram ainda os conservadores defensores
do Douro uma última, radical e desesperada solução: já que, com efeito, a
embocadura do rio era perigosa mas o resto do seu curso ao longo dos cais
portuenses não representava grandes dificuldades, e convencidos que se
mostravam da segurança de Leixões, propuseram (e chegou-se a fazer estudos e
projecto!) a construção de um canal que, atravessando Matosinhos e o que é hoje
a orla marítima da cidade do Porto, conduziria as embarcações desde Leixões até
ao Douro, evitando a sua barra. Projecto que, de resto, já havia sido
equacionado em 1879 por James Abernethy. Não se chegou, obviamente, a
concretizar…
O processo de construção do complexo
portuário de Leixões está, de resto, repleto de utopias. Entre elas, e além do
canal atrás referido, será interessante aqui salientar os projectos e estudos
visando a ligação ferroviária do novo porto à cidade do Porto. Com efeito, e
ainda na sequência dos desejos de manutenção do protagonismo do Douro, durante
várias décadas prevaleceu a ideia de que tal ligação se deveria fazer através
de um ramal que ligaria Leixões à Alfândega do Porto, percorrendo a margem
direita do Douro e, depois da Foz, ao longo da orla marítima. Entre os
pioneiros dessa ideia encontramos o projecto de William Freebody, de 1854, que
fazia assentar tal linha em estacaria sobre as praias. Hoje daria uma
interessante linha turística, mas a sua aplicação prática era mais do que
discutível face à habitual agitação do mar e das vagas alterosas que tão
frequentemente varrem estas praias!
Ainda no início do século XX a Associação dos
Comerciantes do Porto defende a ideia do ramal da Alfândega que é, de resto,
contemplada no projecto dos Engenheiros Adolpho Loureiro e Santos Viegas de
1907 e que servirá de guia a todo o processo de expansão do porto ao longo do
século. Neste projecto, porém, aparece já razoavelmente bem desenvolvida a
ideia que acabaria, após muitas dúvidas e contradições, por ser efectivamente
implementada: a “Linha da Cintura”, ligando Leixões à estação de
Contumil no Porto, com passagem por Leça do Balio e S. Mamede de Infesta. Com
tantas dúvidas e hesitações a inauguração oficial, da “Linha da Cintura” ou "Linha da Circunvalação", acaba
por se realizar apenas a 17 de Setembro de 1938”.
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