Decorria o dia 16 de
Outubro de 1861, estava-se próximo da meia-noite e no edifício a funcionar como
Tribunal Criminal do Porto, na esquina da Rua da Picaria e da Travessa da
Picaria (hoje é o lado norte da Praça de Filipa de Lencastre, gaveto com a Rua
da Picaria), os jurados estavam reunidos para decidir o destino de um caso e
dos respectivos intervenientes e que, nos últimos meses, tinha despertado o
interesse dos portuenses.
Restaurante
Portuense, na Praça Filipa de Lencastre, em meados do século XX, em instalações
onde funcionou o Tribunal Criminal do Porto – Ed. Teófilo Rego; Fonte: AHMP
O julgamento tinha
começado, no dia anterior, na manhã do dia 15 de Outubro.
Tratava-se de julgar
um caso de adultério de D. Ana Augusta Plácido (1831-1895), pronunciada (sem fiança)
em 26 de Março de 1860 e, no qual, Camilo Castelo Branco (1825-1890) foi
co-réu.
Ana Augusta Plácido
nasceu a 27 de Setembro de 1831, na Praça Nova das Hortas, de acordo com a
certidão de nascimento.
A família, nos anos
seguintes, é dada como moradora na Rua do Almada, nº 28, a rua apelidada das
“meninas bonitas”.
As duas moradas
corresponderiam ao mesmo prédio que tinha frente para aquela praça e rua e,
ainda, para a Travessa das Hortas (Rua Dr. Artur Magalhães Basto).
Seria, portanto, o
prédio que foi substituído, mais tarde, pelo da delegação do Banco de Portugal.
Ana Plácido habitaria,
também, o nº 378, da mesma rua, mas, desta vez, com o seu primeiro marido,
Manuel Pinheiro Alves (1807-1863), com quem casou em 28 de Setembro de 1850.
Nessa época, a
numeração dos prédios pelo número de polícia era corrida, pelo que é quase
impossível localizar aquela morada, pelo que só um golpe de sorte de um
historiador, vasculhando nos arquivos, poderá resolver.
Praça Nova das
Hortas com o convento e igreja de Nossa Senhora da Consolação dos Cónegos de S.
João Evangelista ou Lóios, em destaque –
Gravura de Joaquim Vilanova, em 1833
Ana Plácido era
filha de António José Plácido Braga e de Ana Augusta Vieira. Quando contava 19
anos, o pai obrigou-a a casar-se com o comerciante Manuel Pinheiro Alves, de 43
anos, que estivera emigrado no Brasil e onde fizera fortuna.
Ana Plácido viria a
ser uma escritora e tradutora e teria, ainda, uma assinalável colaboração
jornalística.
Ana Plácido
Por seu lado, Manuel
Pinheiro Alves (1807-1863), era um brasileiro de torna-viagem, nascido em São
Miguel de Ceide.
Regressado da
América do Sul, instala-se no Porto, “pesando oitenta contos de réis”, tendo-se
consorciado com Ana Augusta Plácido, em 28-9-1850, no dia imediato à noiva ter
completado 19 anos.
Vários historiadores
dão-no com morada na Rua do Almada, nº 378, mas, em 1850, como a numeração era
corrida, é praticamente impossível localizar esse número de polícia.
Acontece que, apenas
que eram passados dez anos, em 1860, surge a legislação da autoria do visconde
de Gouveia que determina, segundo certas regras, que os números de polícia
sejam de um lado das ruas, ímpares e do lado oposto, pares.
Manuel Pinheiro
Alves esteve ligado a vários empreendimentos, o que é revelador do seu espírito
de iniciativa: proprietário de barcos (1850); director do Banco Comercial do
Porto (1850 e 1856); proeminente e dos primeiros accionistas da Fundição do
Bicalho (1851); dos corpos gerentes da Companhia Garantia (1855); director da
Assembleia Portuense (1856), o famoso «Palheiro», que Camilo tantas vezes
ridicularizou; director fiscal do Banco Mercantil (1858); director do Banco
Comercial (1858), etc.
Depois da morte dos
sogros, António José Plácido, no naufrágio do vapor Porto, em 1852, e Ana
Augusta Vieira Plácido, em 1855, Pinheiro Alves assumiu um papel de relevo no
clã familiar, coadjuvado pelos cunhados António Bernardo Ferreira e Claudino
Pereira Faria, por ser um indivíduo experiente e prudente.
Vários acontecimentos
perturbaram a tranquilidade da família Plácido: o casamento da cunhada Antónia
com o riquíssimo António Bernardo Ferreira (2-3-1852), contrariado pela
autoritária Antónia Ferreirinha; o casamento da cunhada Emília por via
judicial, com o espanhol D. Martin de Torres Velasquez (22-3-1856); o
falecimento da cunhada Jerónima (28-11-1856); e, finalmente, a doença da mais
jovem das cunhadas, Maria José, também vitimada pela tuberculose (25-10-1858),
que ele recolheu, acarinhou e acompanhou, algumas vezes, em deslocações por
terras nortenhas mais propícias à saúde da enferma.
Entretanto, durante
os oito anos de casamento, o casal continuava sem descendência, até que,
milagrosamente, Ana Plácido engravida.
Quando tudo parecia correr
a jeito, dá-se o escândalo do adultério. Em Janeiro de 1859, um parente
denunciou-lhe as ligações amorosas da esposa com Camilo.
Naqueles tempos, o
homem casado podia impunemente relacionar-se com uma mulher que não fosse
casada.
No caso de mulher
casada, o adultério da mulher era punível e, relativamente ao homem
comparticipante, a punibilidade pressupunha o flagrante delito (sós e nus
na mesma cama) ou a existência de cartas ou outro documento escrito.
Dizia então o artigo
nº 401 do Código Penal:
«O adultério da mulher
será punido com o degredo temporário.
1. O co-réu adúltero,
sabedor de que a mulher é casada, será punido com a mesma pena, ficando
obrigado às perdas e danos que devidamente se julgarem.
2. Somente serão
admissíveis contra o adúltero as provas de flagrante delito ou as provas
resultantes de cartas ou outros documentos escritos por ele.»
No caso em apreço, em 1ª instância, o juiz José Maria de
Almeida Teixeira de Queirós, pai de Eça de Queiroz, titular daquele tribunal,
entendeu que aqueles pressupostos não estavam preenchidos e, por isso, não
pronunciou o escritor.
A acusação lesta recorreria para a Relação e ser-lhe-ia dada
razão. Camilo foi pronunciado por ter copulado com mulher casada.
Acontece que, logo à partida, o juiz Queiroz tinha pedido
escusa do processo, por ter, segundo justificou, um sentimento de simpatia por
Camilo, argumento que não seria aceite superiormente.
A máquina da justiça, tradicionalmente lenta, neste caso,
revelou-se estranhamente célere e bem oleada, enquanto Camilo esteve fugido à
justiça. A partir do momento em que foi encarcerado, tudo voltou ao normal.
Assim, já depois de Camilo se ter apresentado à prisão, a
defesa recorre para o Supremo Tribunal da decisão da Relação, mas sem sucesso.
O requerimento é indeferido, mas a resposta já demora sete meses.
Por queixa de Manuel Pinheiro Alves, marido de Ana Augusta
Plácido, foi então instaurado processo de querela, por adultério, contra Camilo
Castelo Branco e Ana Plácido.
Manuel Pinheiro
Alves
Aquela queixa seria assinada pelo advogado Alexandre Couto
Pinto, em representação do queixoso e marido traído, e os acusados tiveram como
defensor Marcelino de Matos, pai do que viria a ser o famoso psiquiatra Júlio
de Matos.
O processo tinha sido objecto de despacho lavrado, em 22 de
Dezembro de 1859, pelo juiz José Maria de Almeida Teixeira de Queirós.
Na sequência da pronúncia, Ana Plácido é presa a 6 de Junho
de 1860, e Camilo foge à justiça, durante algum tempo, mas acaba por se
entregar a 1 de Outubro de 1860.
Ambos ficaram detidos na Cadeia da Relação, no Porto,
aguardando o julgamento e tendo, durante a forçada estadia nas masmorras,
recebido por duas vezes a visita do rei D. Pedro V.
A primeira vez, na badalada visita de 23 de Novembro de
1860.
A outra, mais discreta, durante uma visita do monarca ao
Porto e ao Norte do País, no fim de Agosto de 1861.
Camilo por lá esteve 12 meses, Ana penou durante mais
quatro.
O amigo e escritor Júlio César Machado, após visitar Camilo,
em Abril de 1861, escreve:
«A cadeia da Relação é
horrível. Eu nunca tinha visto paredes tão negras, corredores tão escuros — e
quartos inficionados por uma atmosfera tão mortífera. Quando perguntei ao
carcereiro:
— O Sr. Camilo Castelo
Branco? — tremeu-me a voz. Onde ia eu encontra-lo e como?!
Camilo está no quarto
em que gemeu o duque da Terceira durante todo o tempo da Junta, e donde o
Gravito marchou para a forca em 1829; um quarto, ainda assim, melhor do que eu
esperava, quando subi as escadas da cadeia.
Uns livros numa estante,
alguns papéis sobre uma mesa de escrita, nenhum jornal, e nas paredes…”
Cadeia da Relação do Porto – Gravura de Joaquim Villanova,
em 1833
Cela de Camilo Castelo Branco na Cadeia da Relação do Porto
– Ed. JPortojo
Importa referir que esta estória tinha começado, alguns anos
antes, quando Camilo Castelo Branco
conheceu Ana Plácido, quando tinha 17 anos, num baile de 3ª Feira Gorda de Carnaval
ocorrido no dia 13 de Fevereiro de 1849, em casa do casal Jerónimo José de
Araújo Braga e Efigénia Cândida Braga, na Rua da Conceição, nº 24.
Jerónimo Braga era
negociante e proprietário, entre outros bens, da Quinta do Mosteiro em Grijó.
Sobre aquele baile,
dois dias depois, no jornal o “O Ecco Popular”, o escritor não nomeando Ana, destacava-a do grupo das
três irmãs Plácido, segundo ele, as mais lindas mulheres que alguma vez vira.
Nesses tempos pontificava, em termos de festas burguesas, as levadas a
cabo no
salão da Assembleia Portuense, à Praça da Trindade, de cujas instalações era
senhorio, António Bernardo Ferreira, o filho da Ferreirinha da Régua e que,
após concluída na totalidade a sua construção, aí passou também a residir, numa
ala mais a sul.
À esquerda, a igreja da Trindade e a sua escadaria de
acesso; em frente, no módulo central, mais alto, era o salão de baile da
Assembleia Portuense que acabou por se instalar no módulo à esquerda do
observador, concluído que foi a sua construção; no extremo oposto morava António
Bernardo Ferreira, após o clube ter sido daí desalojado
António Bernardo Ferreira (1835-1907) e Camilo conheciam-se
bem, não só pela vida de boémia que experimentavam deambulando pelos diversos
locais de diversão da cidade, mas, também, por serem figuras de destaque da
sociedade.
António Bernardo Ferreira, à data do julgamento, era presidente
da Associação Industrial Portuense, hoje chamada Associação Empresarial de
Portugal, cargo que desempenharia entre 1859 e 1867.
Era também cunhado de Ana Plácido, por ter casado em 1852,
com uma sua irmã, de seu nome, Antónia Cândida Plácido Braga (1836-1875).
Reflectindo um pouco o que se passava na sociedade, mesmo em
ambiente familiar, as opiniões sobre o caso, subido a tribunal, dividiam-se:
António Bernardo a favor do marido atraiçoado; Antónia Cândida a favor da irmã.
Voltando ao baile, o certo é que Ana e Camilo ter-se-ão
enfeitiçado um pelo outro.
Acontece que, naqueles tempos, os casamentos realizavam-se,
muitos deles, de acordo com interesses e acordos envolvendo os familiares dos
noivos, e no caso de Ana Plácido, não fugia a essa regra. A jovem estaria
prometida a um abastado brasileiro de torna-viagem de seu nome Manuel Pinheiro
Alves e acabaria por com ele casar. Camilo ficou destroçado.
Após o baile, Camilo tem uma passagem por Lisboa, mas quando
soube do casamento de Ana Plácido, regressa rapidamente ao Porto. Nada podia
fazer!
Camilo refugia-se então em Coimbra, para curtir mágoas e
levado por um chamamento divino, tem uma experiência mística e frequenta o
Seminário Episcopal, a funcionar junto da Catedral. Deve ter percebido mal o
tal chamamento e depressa deixa para trás a devoção.
Frequenta os abadessados e, entre 1849 e 1856, vive os
acontecimentos que o envolveram com José Augusto Pinto de Magalhães e Fanny
Owen e que culminam na tragédia conhecida.
Em 1856, Camilo terá passado por Viana do Castelo, onde
trabalharia, por breve período, no jornal “Aurora do Lima”, acabado de aparecer
nas bancas, sendo um dos seus primeiros jornalistas remunerados. Fixa-se em
Viana a 7 Abril, mas dado à sua irrequietude, com menos de dois meses de
estada, regressa a 28 Maio de 1856, ao Porto.
Desta vez, estava decidido a fazer os últimos esforços por
Ana Plácido.
O ano de 1856 parece, então, ser aquele em que os dois
futuros amantes se reencontram e Camilo reinicia uma investida para conquistar
Ana Plácido.
Esta acabava de perder a mãe, quando já tinha visto o pai
morrer no célebre naufrágio do vapor “Porto”, na entrada da barra do rio Douro,
em 1852.
Camilo Castelo Branco
As más-línguas da época afirmavam que Ana Plácido,
aborrecida com o seu casamento, saía de uma experiência extra-matrimonial, na
qual se tinha envolvido com um galã portuense, de seu nome, António Ferreira Quiques que
tinha acabado por zarpar para o Brasil.
Dizia-se, ainda, que Camilo conheceria o tal Ferreira e,
até, teria em seu poder cartas comprometedoras desse relacionamento, essenciais
para a sua aproximação a Ana Plácido, aproveitando-se, assim, da fragilidade
por ela vivida, em virtude daquele desenlace. Nunca o saberemos.
O certo é que Ana Plácido continuava casada com Manuel
Pinheiro Alves e ainda sem descendência.
Entre 1857 e 1859, período em que o relacionamento de Ana e
Camilo terá tomado os caminhos do adultério, para além do próprio leito
conjugal da Rua do Almada, ela passaria completamente só, algumas temporadas, na
Quinta de S. Miguel de Seide.
Casa da Quinta de S. Miguel de Seide
Por outro lado, na companhia de sua irmã Maria José, esteve
no Bom-Jesus-do-Monte, em Braga, onde esta apanhava bons ares para combater a
tísica.
O ano de 1858, será aquele em que Ana Augusta perde a sua
irmã mais querida, de nada valendo as estadias em altitude e, será aquele,
ainda, em que dará à luz o seu primeiro filho, Manuel Plácido Pinheiro Alves
(1858-1877) que será registado como tendo por progenitor, Manuel Pinheiro
Alves, facto que nem os mais crentes acreditam.
Naquele ano de 1858, durante mais uma estadia das duas
irmãs, em Braga, onde se encontravam a ares, no dia 23 Outubro de 1858, a muito
jovem Maria José morreu e, assim, Ana Plácido via partir a confidente e
permanente acompanhante, desde que a sua mãe tinha também deixado este mundo,
em 1855.
Dois dias depois, em 25 de Outubro, o jornal “O Comércio do
Porto, dava conta do falecimento de um irmão de Ana Plácido de seu nome José
Plácido.
Anúncio de agradecimento de comparência ao funeral de Maria José Plácido - In jornal “O
Comércio do Porto” de 4 de Novembro de 1858
Serras Pinto, um tio de Ana Plácido, ordena-lhe que pusesse
fim à relação extra-matrimonial. Porém, não obtendo quaisquer resultados
práticos da sua tomada de posição, denuncia-a ao marido.
Assim, no dia 28 de Janeiro de 1859, Serras Pinto revelou a
Pinheiro Alves o que sabia sobre o comportamento da sua esposa.
Levados os factos ao conhecimento do marido, Ana é expulsa
de casa e é alojada com o seu pequeno filho, na Rua D. Maria II, próximo do
Largo dos Lóios, em casa de um amigo do marido, de seu nome Agostinho Velho.
Cedo, todos se apercebem que Eufrásia Carlota de Sá, uma
alcoviteira ao serviço de Camilo, mantinha os dois amantes em contacto, levando
e trazendo mensagens.
Eufrásia era governanta de Maria Felicidade do Couto Brown,
uma poetisa e escritora medíocre (segundo Camilo) que a cidade dizia ser, mais
uma conquista de Camilo, se bem que já entrada para lá dos cinquenta anos.
Um dos filhos da senhora, um espadachim de eleição, de seu
nome Ricardo Brown, parece ter dado, por isso, uma boa ensinadela a Camilo.
O patriarca deste ramo da família dos Brown era Manuel
Clamouse Brown, morador na, há muito desaparecida, Rua da Cancela Velha, nºs
5-7 (lado Norte).
Deve ter sido aí que Camilo frequentou o salão de baile dos
Brown e experimentou as sessões de poesia com a anfitriã ou e, ainda, num
palacete do Carregal, residência da filha do casal, Manuel e Felicidade Brown,
de seu nome Júlia Clamouse Brown que, em 1851, casou com o 2º Visconde de
Vilarinho de S. Romão.
Quanto a relação com mulheres de experiência, parece que a
freira Isabel Cândida Vaz Mourão, que velava pela sua filha Amélia, no convento
de S. Bento da Ave-Maria, também lhe teria passado pelas mãos.
Convento e igreja de S. Bento da Ave-Maria, c. 1850
Mas, voltando ao caso em apreço, Ana é expulsa e vai com a
alcoviteira alojar-se numa casa, na Rua de Cedofeita.
O alojamento foi breve, pois o par acaba por seguir em 20 de
Fevereiro, para Lisboa no vapor “Duque do Porto”.
Na capital, ao fim de um certo tempo, o dinheiro começa a
escassear e o casal resolve embarcar e voltar ao Porto.
Ana Plácido aceita, então, a proposta inicial e que tinha
rejeitado no começo da contenda: irá entrar no Convento de Nossa Senhora da
Conceição de Braga (1612-1896).
Regressados ao Porto, Ana hospeda-se num hotel e Camilo
recolhe-se aos cuidados de Eufrásia.
A bracarense decisão ficou a Manuel Pinheiro Alves por
novecentos mil réis (uma fortuna), pois era necessário preparar as acomodações
para a mãe, ama e pequerrucho, obter licenças eclesiásticas, etc.
No fim de contas, era o convento a funcionar, apenas, como
recolhimento já que, de acordo com a lei, teria que ser encerrado em 1883, com
o falecimento da última religiosa.
“Os recolhimentos
funcionavam no pressuposto de que não constituíam residência para as
recolhidas, mas sim num local temporário de acolhimento para resolverem um
problema do casamento ou para se dedicarem ao serviço de Deus. Serviam de
resguardo durante um período em que as mulheres eram consideradas em risco e
estavam mais vulneráveis ao descaminho, precisando de ajuda”.
Cortesia de Maria Marta Lobo de Araújo
Ana Plácido deixou o Porto, no dia 18 de Junho, com destino
ao Convento da Conceição, em Braga. Camilo dá deste modo notícia ao seu amigo José
Barbosa, em carta de 17 de Junho:
“Meu amigo
A D. Ana parte amanhã
para o Convento da Conceição em Braga. Creio que estará no Bom Jesus oito dias,
esperando que se reparem os quartos que ela vai ocupar no convento. Acompanha-a
daqui uma Caldas, amiga antiga dela, e o marido.
Eu não sei dizer-te o
que tem sido a minha existência desde que cheguei aqui. Há desgraças que
atordoam, e privam até da consolação do queixume. O que em mim sinto hoje é uma
alma sem uma qualidade boa. Perdi fé, perdi tudo…
Vive e goza, meu
amigo.
Teu muito grato
Camilo. C. Brc. º
Porto, 17 de Junho de
1859”
Ana Plácido entrou no Convento da Conceição no dia 27 de
Junho e saiu, intempestivamente, no dia 3 de Agosto.
Assim, ao fim de cerca de um mês, já uma comitiva partia de
Braga e, no caminho, em Famalicão, entrava Camilo.
Entrada do Convento de Nossa Senhora da Conceição de Braga
O destino é o Porto e, desta vez, o casal instala-se na
“Casa de Hóspedes da Picaria”.
Toda a saga vivida pelo casal de amantes era do conhecimento
de José Barbosa e Silva, o amigo de sempre de Camilo e seu financiador nos
momentos de crise financeira, que era mantido ao corrente das particularidades da
relação com Ana Plácido, no qual se incluíam as irmãs Maria José e Antónia, a
mulher de António Bernardo Ferreira, com quem José Barbosa e Silva, já em tempos
se relacionara e, com quem, instigado por Camilo, mantinha à data
correspondência.
Segue-se a Foz do Douro, em plena época balnear, mas face ao
mal-estar e à escandaleira que aquela relação representava para a burguesia, a
banhos, o casal separa-se.
Camilo vai para Lisboa e Ana refugia-se, ao cuidado de
Eufrásia Carlota, na Rua de Cedofeita.
Por pouco tempo, pois, em Dezembro, já está com Camilo em
Lisboa.
Aqui, numa noite, assistem no Teatro da Rua dos Condes, à
peça camiliana “O último acto”, cujo enredo anda à volta do casamento de uma
jovem com um ricaço que já teria gozado imensos carnavais.
A personagem feminina chamava-se Ana Augusta.
Teatro da Rua dos Condes – Editado a partir de um desenho de
Macedo e Christino
Ao saber-se disto, no Porto, o caldo entornou: havia que
incriminar os adúlteros.
Manuel Pinheiro Alves avança com um processo na justiça.
Ana Plácido volta, por via marítima, para o Porto e à
despedida estão Camilo, o amigo inseparável, José Cardoso Vieira de Castro
(1837-1872) e o escritor Júlio César Machado.
Camilo não demora a chegar também ao Porto. Segue-se uma
fuga pelo Norte do País, correndo “Ceca e Meca” até entregar-se.
Numa dessas deambulações, passa por Fafe pela casa de Vieira
de Castro, como nos conta no romance “Memórias do Cárcere”:
“Fui de Santo António das Taipas para as cercanias de
Fafe, quinta do Ermo, onde me esperava com os braços abertos e o coração no
sorriso, José Cardoso Vieira de Castro, Falseei a verdade. Vieira de Castro
esperava-me a dormir, naquela madrugada dele, que era meio-dia no meu relógio”.
Durante o cativeiro, Camilo receou que o tio de Ana Plácido,
que esteve na base da descoberta da situação, pagasse a alguém, dentro da
Cadeia, para o matar.
Ao desabafar os seus temores perante Zé do Telhado, com quem
se viria a relacionar, aquele sossegou-o garantindo-lhe que podia estar descansado,
pois, se alguém ali lhe tocasse com um dedo, três dias e três noites não
chegariam para enterrar os mortos.
A gratidão de Camilo levá-lo-ia a compartilhar o seu
advogado de defesa e, assim, talvez poupar Zé do Telhado à pena de execução.
O célebre julgamento, realizado no Tribunal da Rua da
Picaria, não seria presidido por José Maria de Almeida Teixeira de Queirós que,
entretanto, tinha sido transferido para Vila Franca de Xira.
Por outro lado, a defesa tentava atrair para o seu lado a
opinião pública e Vieira de Castro publicava uma biografia intitulada “Camilo
Castelo Branco – Notícia da sua vida e obra”.
O círculo da acusação, com o mesmo propósito, dava à estampa
um artigo de Camilo, de há dez anos atrás, na altura do casamento de Ana
Plácido, quando ele tinha zurzido a burguesia portuense por entregar as suas
donzelas a “traficantes-argentários” e quando disse do Porto, o que Maomé não
disse do toucinho.
Durante o julgamento, deu brado a intervenção do Dr. Janota, o Dr. Ferreira, amigo presente em muitos episódios da vida de Camilo.
A não existência do flagrante delito haveria de determinar o
desfecho do caso, se bem que, ainda tenha sido tentado pela acusação realçar o
outro requisito que podia incriminar o réu, ou seja, a existência de uma prova
escrita.
Neste caso, foi escolhida uma carta escrita, supostamente,
por Camilo ao tio que fez a denúncia.
A defesa argumenta:
“que valor a dar a uma
carta não assinada, escrita por um Camilo qualquer, que seguramente não é este,
que fala duma sobrinha não a nomeando? etc, etc.”
Uma das testemunhas, um jornalista conhecido por “Novais dos
óculos”, a quem Camilo tinha dado umas bengaladas à saída do Teatro S. João,
não seria chamada a depor e um dos jurados foi o professor Luso Soares, que
veio a ser uma figura conhecida na cidade.
Um dos seus momentos altos do julgamento e que seria
decisivo, foi quando o advogado dos acusados, Dr. Marcelino de Matos, durante
uma defesa notabilíssima, perante uma tremenda tempestade que se vinha a abater
sobre a cidade, se aproveita do momento de um rebentamento de um trovão e
exclama:
“É Deus falando contra a iniquidade deste processo e não levando a bem
a monstruosidade desta prisão”.
O julgamento iria entrar pela noite dentro, no segundo dia
de audiências. Recolhidos os jurados à sala das deliberações demoraram-se cerca
de meia-hora, e constrangidos por todo o ambiente criado, inclusive com as mensagens
celestiais, decidiriam, por maioria, considerarem os réus como inocentes.
“Em vista da decisão
do júri, julgo não provado o crime de adultério de que era acusado Camilo
Castelo Branco o absolvo da culpa, dando-se baixa nele, e passando o seu mandado
de soltura, e pague o A. as custas do processo. Porto, 16 de outubro de
1861".
A sentença proferida já no dealbar do dia 17 de Outubro de
1861 (peça que, presentemente, não se encontra no processo por ter
desaparecido), limitou-se a absolver os acusados e emitir mandados de soltura e
o pagamento das custas do processo a cargo de Manuel Pinheiro Alves.
Os amantes viveriam em comum, até 1888, quando casaram numa
casa da Rua de Santa Catarina, estando presentes ao acto, entre outras, duas
personagens muito presentes na vida de Camilo: O Dr. Ferreira (o Janota) e o
Dr. Marcelino de Matos.
Eternizando o amor entre Camilo e Ana, a estátua “Amor de
Perdição”, da autoria do Mestre Francisco Simões, no Campo Mártires da Pátria, desde 2012
Sobre a escultura anterior, em Setembro de 2023, estalaria uma polémica na cidade, pois numa petição dirigida ao presidente da Câmara, Rui Moreira, por 37 pessoas que se diziam famosas, era exigida a retirada da obra por atentado ao pudor.
Levantou-se em peso a cidade e o senhor presidente acabou por recuar, já depois de ter despachado favoravelmente o pedido da "polícia do gosto".
Epílogo e outras curiosidades
Durante a primeira década, da segunda metade do século XIX,
em que decorre toda a saga atrás narrada, Camilo Castelo Branco, para além da
contribuição jornalística em vários jornais, publicou:
Maria, não me mates, que sou tua mãe (folheto de
cordel, 1848), O Marquês de Torres Novas (teatro, 1849), O
Caleche (sátira, 1849), O Clero e o sr. Alexandre Herculano (polémica,
1850), Inspirações (poesia lírica, 1851), Anátema (novela,
1851), Mistérios de Lisboa (novela, 1854), Livro Negro
de Padre Dinis (novela, 1855), Cenas Contemporâneas (1855), A
Filha do Arcediago (novela, 1855), A Neta do Arcediago (novela,
1856), Onde está a felicidade? (novela, 1856), Um
Homem de Brios (novela, 1857), Carlota Ângela (novela,
1858), O Que fazem Mulheres (novela, 1858), Cenas da
Foz (novela, 1861)
Um sobrinho de Camilo, filho da sua irmã Carolina Rita,
António de Azevedo Castelo Branco (1842-1916), à data dos acontecimentos,
estudante em Coimbra, de férias e de visita ao tio, em Junho de 1861, contaria
a amigos, de quão louco e provocador era o seu tio.
Camilo tinha permissão de saídas da cadeia e, muitas vezes,
foi visto e reconhecido a passear pelas ruas da baixa do Porto.
Numa delas, provocador, desceria a Rua de Santo António, com
um par de botas de senhora (não embrulhadas) que tinha comprado para oferecer a
Ana quando chegasse à Cordoaria.
Estes passeios tomaram tal dimensão que o ministro da justiça
Alberto António de Morais Carvalho dirigiria uma missiva ao juiz do 1º distrito
criminal do Porto, do seguinte teor:
«(…) faça examinar
aquele preso (Camilo Castelo Branco) por três facultativos, e, no caso de se
concluir do exame que sofre actualmente de moléstia grave, pela qual necessite
dos passeios requeridos, haja de regular a permissão deles de modo que sejam só
para remédio, e não para outro qualquer efeito, empregando, porém, todas as
cautelas e seguranças necessárias.»
O sobrinho de Camilo, atrás referido, tinha chegado ao Porto
vindo de Coimbra no dia 1 de Junho e tinha sido convidado pelo visconde e
viscondessa de Pereira Machado, que o conheciam desde os 3 anos, para um
grandioso baile que se realizaria no dia 8, desse mês, no palacete da Rua
Formosa.
O baile comemorava um aniversário de uma filha do visconde e
ficaria na história pela sua grandiosidade, e por ter sido meticulosamente
narrado por Camilo, na imprensa da época, fruto das informações que lhe terão
passado alguns amigos, pois, desgraçadamente, não lhe foi possível estar
presente:
“Dançou-se no Porto na
semana passada, pela primeira vez, a quadrilha franceza denominada «Príncipe
Imperial». Este acontecimento foi arquivado nos jornais da cidade eterna, e
devia sê-lo. O cavalheiro que deu azo a esta novidade foi o sr. Guilherme
Augusto Machado Pereira, abrindo os salões do seu magnífico palácio. Entre
seiscentas pessoas concorreram duzentas senhoras, á competência de galas e
formosura.
Trajam ricamente as
damas portuenses. Ainda que fossem menos belas, sairiam com muito lustre destas
brilhantes exposições pelo muito esmero de luxo com que enfeitam os corpos.
Não pompeiam menos em
adornos do espirito; estes, porém, nem são essenciais á beleza, nem mesmo
proveitosos á vida.
O sr. Machado Pereira
deu aos seus convidados uma ceia de Apício: a profusão só podia ser deslumbrada
pelo gosto. No Porto cozinha-se muito
bem, etc, etc,”
Importa referir que no baile estiveram duas personagens notáveis
da época, Casal Ribeiro e o conde de Ficalho, vindos expressamente de Lisboa.
Por sua vez, à janela da sua cela, Ana Plácido provocava e
espantava os portuenses ao fumar ostensivamente os seus grossos charutos ou
atroava os ares com os acordes do seu piano e do seu canto.
Manuel Pinheiro Alves morre em 1863, quando vivia numa
pensão em Famalicão, e perto da hora da morte, durante o acto da confissão, não
conseguiu perdoar Camilo e, assim, deixou de caminhar para o Paraíso.
«Casa onde viveram Manuel Pinheiro Alves e Ana Plácido, na Rua do Almada» -- diz a legenda da foto, retirada da página 59 da obra "A Paixão de Camilo (Ana Plácido)" de Rocha Martins, Lisboa, 1900, cuja legenda original é "Casa de Ana Plácido na Rua do Almada, 385, Porto." Nesse livro, na página 18, Rocha Martins afirma que Pinheiro Alves, o marido de Ana Plácido, morava num andar espaçoso da rua do Almada nº 378. Apresenta essa foto como sendo do nº 385 - erradamente! (o nº 385 fica do lado oposto da rua, acima do cruzamento com a rua onde fica o actual bingo da Trindade). O prédio da foto não corresponde nem ao 378 nem ao 385. Corresponde aos nºs 324 e 326! É um prédio abaixo do nº 378, sendo que este 378 há pouco tempo foi recuperado e onde instalaram no rés-do-chão um restaurante chamado "Camilo". Rocha Martins enganou-se três vezes! Cita dois números de porta diferentes e mostra na foto a fachada de um prédio que não corresponde a nenhum deles! A única maneira de tirar a coisa a limpo é obter uma cópia dos assentos prediais da época desses dois imóveis (nºs 324-326 e 378-380) e para saber se algum deles era propriedade de Pinheiro Alves. O assento de baptismo de Manuel Plácido Pinheiro Alves, nascido a 11-08-1858, primeiro filho de Ana Plácido e de Camilo, mas que estando ela casada era assumido pela lei que fosse filho do marido, refere que o casal morava na rua do Almada, mas não indica o nº da porta. É possível que nesse tempo os prédios não tivessem nº de polícia. Podia até dar-se o caso de o tal "andar espaçoso" ser arrendado e, portanto, o proprietário ser outra pessoa que não o marido de Ana Plácido. Nesse caso, seria muito mais difícil, senão impossível, saber qual o prédio onde o casal morou...
ResponderEliminarAgradeço-lhe os reparos que fez ao meu lançamento. Em sequência, acabei por eliminar a foto que, no entanto, já é histórica. De facto, julgo ser difícil identificar a morada de Pinheiro Alves, pois, à data, embora existissem nºos de polícia, eles eram corridos e, só a partir de 1860, por acção do visconde de Gouveia, passaram a ser ordenados para cada lado, em pares e ímpares. Esperando que continue a seguir o blogue, envio os meus cumprimentos.
EliminarAmérico Conceição