Conta uma lenda que, viajando D. Afonso Henriques em
Novembro de 1153, na companhia da rainha D. Mafalda, de Coimbra para Guimarães,
ao passar no sítio do Olival, então fora da cidade do Porto, local hoje com o
topónimo de Praça de Lisboa, junto à torre dos Clérigos, a égua em que a rainha
seguia, caiu subitamente num barranco. O monarca, naquele momento de aflição,
invocou a protecção de S. Miguel-o-Anjo, de quem era devoto, e como a rainha
nada tivesse sofrido, mandou erigir, naquele mesmo sítio, uma capela em honra
do protector.
Esse sítio era conhecido, naquela época, pelo Lugar
das Oliveiras.
Foi junto a esta ermida que no ano de 1661, uma virtuosa
senhora portuense, D. Helena Pereira, natural da freguesia da Vitória, tendo
ficado viúva, decide construir um recolhimento para "viúvas honestas"
e "meninas órfãs" a que deu o nome de Recolhimento de S. Miguel-o-Anjo, ou Recolhimento da Rainha Santa Isabel do Anjo,
em memória da capela que ali existia.
“1672, marca o
ano em que Dª Helena Pereira decide solicitar autorização para aqui levantar um
Recolhimento. Esta Senhora, viúva, era possuidora de uma assinalável fortuna
que seu marido, Gonçalo de Borges Pinto, proprietário de Mesão Frio e produtor
de vinho, lhe havia legado na hora de sua morte, em 1661.
Bem relacionada,
Dª Helena Pereira consegue o apoio da Câmara do Porto, de dois Bispos da Cidade
(D. Nicolau Monteiro e D. João de Sousa) e ainda da Rainha Maria Francisca de
Sabóia, o que conduzirá à ordem para a utilização do local do Anjo e da sua
ermida, para levantar um Recolhimento, “(…) para órfãs, donzelas nobres e
pessoas de conhecida virtude e limpo sangue (…)” a que seria dado o nome, por
sugestão da Rainha, Recolhimento de Santa Isabel. O Recolhimento localizava-se
mesmo ao lado do conjunto que viria a ser dos Clérigos, mas a via que separava
essas duas áreas era, no dizer da altura, uma viela imunda…
Por esses tempos,
o recurso da mulher abandonada, ou mesmo viúva, era casar segunda vez. Mas como
para casar era preciso dote, fácil é de imaginar que a mulher, regra geral,
acabava por cair numa situação de tal modo complexa que passava a dedicar-se a
tarefas menos nobres, para poder sobreviver.
Por isso, as
Casas de Recolhimento femininas constituíam uma protecção, podendo ser ainda
casas de Regeneração (para as pecadoras), tendo apoios vários, desde a Câmara
às instâncias reais.
A fundadora dava
o exemplo, praticando uma vida austera e de desapego dos bens materiais.
Praticou uma administração rigorosa e legou ao Recolhimento todos os seus bens
e as suas imensas propriedades, o que permitiria uma vida relativamente
desafogada à comunidade.
A organização
dependia do governo da Regente e enquanto Dª Helena Pereira foi viva, essa
gestão foi completamente independente de factores estranhos ao Recolhimento.
Foi com a sua morte que o Bispo do Porto passou a tomar parte activa no governo
do Recolhimento.
De resto há aqui
um factor fascinante. A mulher, tida como um “elemento da casa”, foi, no caso
dos Recolhimentos femininos, uma entidade com uma enorme capacidade de
gestão.
A azáfama
“empresarial” chegava ao ponto de convidar as Recolhidas, muitas delas com
muitas posses, a investir o dinheiro, nomeadamente em empréstimos e aquisições
de propriedades.
Digamos que era
algo de demasiado terreno, mas fundamental para combater a falta de verbas com
as despesas associadas aos gastos da Instituição. Portanto, Dª Isabel Pereira
foi uma gestora de um imenso Património que incluía rendas, bens cedidos e os
empréstimos realizados. Tudo “truques” que iriam permitir a continuidade da
Instituição.
De algum modo,
para algumas mulheres, o trabalho realizado no Recolhimento foi uma fonte de
conhecimento e de emancipação ao permitir-lhes aplicar princípios que, de um
modo normal, eram dados exclusivamente ao homem.
A Rainha Santa
Isabel foi escolhida para Padroeira pela Rainha Maria Francisca de Sabóia, que
por ela tinha grande culto. Nos Recolhimentos e Mosteiros, a figura do patrono
representava o exemplo de modo de vida a seguir, que se estendia às roupas (de
um modo geral escuras), o que era muito respeitado pelas Recolhidas, pois
resguardavam a pessoa e acordavam-na para a responsabilidade da sua
escolha.
A Regra da
Instituição era a da Ordem Terceira de S. Francisco, fundada no Porto em 1633.
Uma Ordem Terceira era a possibilidade que o cidadão comum tinha de levar uma
vida religiosa à qual, por razões várias, nunca se podia dedicar na
integralidade.
De resto, a
ligação entre a fundadora Dª Helena Pereira e os Franciscanos era enorme, ao
ponto de apenas estes estarem presentes nas suas exéquias fúnebres”.
In site “marabo2012.wordpress.com”
Importa referir que
a protectora do Recolhimento, Maria Francisca Isabel de Sabóia (nascida em
Paris a 21 de Junho de 1646 e que morreria aos 38 anos na Palhavã, em Lisboa, a
27 de Dezembro de 1683) foi casada com Afonso VI de Portugal, desde 27 de Junho
de 1666 e depois com o irmão daquele, Pedro II de Portugal, desde 27 de Março
de 1668, após a anulação do primeiro casamento pelo papa.
Convindo a Luís XIV
de França atrair Portugal ao seu país em luta com a Espanha, haveria de concordar
com o casamento de Maria Francisca com D. Afonso.
De La Rochelle, onde
se celebrou, por procuração, o casamento, partiria D. Maria Francisca, na nau
Vendôme, até Lisboa.
Voltando ao Recolhimento
da Rainha Santa Isabel do Anjo, esta instituição que
começou por internar 10 orfãs filhas de boas famílias, acabaria algumas décadas
depois, segundo Alberto Pimentel, por “ser
convertido numa numerosa colmeia em que enxameavam mulheres de várias
proveniências e idades…havia até senhoras casadas que iam hospedar-se no Anjo
enquanto os maridos andavam ausentes”.
Acabou este recolhimento, por ser abandonado com a extinção
das ordens religiosas em 1834 sendo que a sua demolição começou em 1837 e o
terreno que ocupara foi aproveitado pela Câmara para a construção do mercado
que tomou o nome da velhinha e lendária ermida - o Anjo.
Para quem subia o caminho, vindo da Viela do Correio, o
Recolhimento de S. Miguel-o-Anjo ficava do lado esquerdo.
Devido à proximidade com essa instituição, o estreito
caminho chamou-se, primeiro, Rua do Anjo; depois, Rua Nova
do Anjo e, posteriormente, Rua Nova de Jesus do Anjo.
Acabaria por tomar, mais tarde, o nome do Convento das Carmelitas e chamar-se Rua das Carmelitas. No lugar do recolhimento
de S. Miguel-o-Anjo, construiu-se, em 1839, o Mercado do Anjo, entretanto
também já desaparecido.
Diga-se ainda, que a Rainha Mafalda, mulher de D. Afonso
Henriques, que sofreu o acidente atrás referido, também quis agradecer ao
divino o ter sobrevivido e mandou construir uma capela nas imediações desse
local, que viria a ser conhecida por Capela de Nossa Senhora da Graça que, mais
tarde, teria adstrito à igreja, que a veio substituir, o Colégio dos Meninos
Orfãos, que ocupou o terreno onde hoje está a Reitoria da Universidade do
Porto.
Citando o beneditino Novais, no “Porto de Outros Tempos”,
Firmino Pereira diz que:
“…entre a ermida de S.
Miguel e a Capela da Nossa Senhora da Graça, existiu por iniciativa da rainha
D. Catarina, mulher de D. João III e avó de D. Sebastião, uma ermida dedicada a
S. Sebastião que tinha anexado um pequeno Recolhimento
de Órfãos de S. Sebastião, para ambos os sexos. Por morte da protectora e
do rei D. Sebastião e por desleixo dos reis espanhóis que ocuparam o trono e
ainda, por ter a alfândega deixado de pagar a verba a que estava obrigada, a
ermida passou a degradar-se e seria demolida”.
Recolhimento do Anjo em desenho de Gouvêa Portuense
Imagem do Recolhimento do Anjo do Barão de Forrester
Um retrato do Recolhimento do Anjo é dado pelo escritor
Alberto Pimentel no seu romance “ O Lobo da Madragoa”, quando, numa
narrativa ficcional, o poeta António Lobo de Carvalho, que lá dava aulas de
poesia, visita Theresa, que aí tinha dado entrada vinda da aldeia de Villalva.
A importância deste templo advém, também, do facto de ter sido a Paroquial da Freguesia, aquando das obras da Igreja da Vitória no século XVII.
A importância deste templo advém, também, do facto de ter sido a Paroquial da Freguesia, aquando das obras da Igreja da Vitória no século XVII.
Tem também uma
curiosidade associada que é a de ser a sede duma veneração ao Senhor
Jesus das Bouças ou Senhor de Matosinhos.
Isso explica-se tendo em atenção que o Bom Jesus vinha até
ao Porto, em ocasiões de grande desespero. Aconteceu em 1526, quando
apavorantes calamidades atingiram a cidade, depois em 1596 e 1644, por causa de
grandes cheias, ou em 1696 por causa de uma mortífera peste que encheu os
hospitais e mergulhou a cidade num imenso pavor.
Um dia, a imagem teve que recolher à capela de S. Miguel o
Anjo e a devoção popular arranjou forma de, na Capela, ser levantado um altar
consagrado ao Senhor Bom Jesus de Bouças.
Em 1832, o Recolhimento foi transformado em Hospital e banco
de sangue, sendo as últimas religiosas deslocadas para o Mosteiro de S. Bento
da Ave-Maria.
Em 1834, já só existem os muros do Recolhimento, e na planta
seguinte, daquele ano, da zona citadina em que estava inserido, já estava
prevista a edificação de um mercado público.
Planta da zona dos Clérigos, em 1834
Imediações do Mercado do Anjo, em 1950
Uma das ruas adjacentes ao mercado do Anjo era a Rua das Carmelitas.
Até 1704, quando o bispo do Porto D. Frei José de Santa
Maria de Saldanha fundou o convento das Carmelitas, a zona próxima era
conhecida como Campo da Via Sacra ou Campo do Calvário Velho (hoje Praça
Guilherme Gomes Fernandes).
Desses tempos resta a memória e dois topónimos: Rua das
Carmelitas e Rua de Santa Teresa.
A planta redonda de George Balck (1813) mostra a rua já com
a denominação actual, mas, em 1839, na planta de Costa Lima, surge como Rua
do Anjo, registando-se também uma Travessa das Carmelitas que
corresponde aproximadamente à actual Rua do Conde de Vizela.
Sabe-se, pela leitura de relatório camarário, que a Câmara
do Porto solicitara, no ano de 1838, autorização à rainha (era a D. Maria II) para
proceder ao seu alinhamento. Isto significa, naturalmente, que a artéria sofreu
algumas alterações.
À época em foi solicitado o referido alinhamento, a rua,
bastante mais estreita do que é actualmente, subia em curva por entre duas
altas paredes, uma das quais delimitava a cerca do Convento de S. José e Santa
Teresa de Carmelitas Descalças.
Na petição que a edilidade enviou à rainha refere-se,
concretamente, que o alinhamento era para se feito nomeadamente "…defronte
do correio". Há para isto uma explicação, pois, depois da extinção em 1834
das Ordens Religiosas, os edifícios dos antigos mosteiros, ou foram vendidos a
particulares, em hasta pública, ou foram ocupados por serviços do Estado.
No Convento das Carmelitas que ficava acima da rua com esta
designação e ocupava, praticamente, todo o quarteirão compreendido entra as
actuais ruas das Carmelitas, Galeria de Paris, Santa Teresa e a Praça de
Guilherme Gomes Fernandes, instalaram-se, após a saída das religiosas, várias
repartições públicas, nomeadamente a estação central da Mala Posta que fazia a
ligação entre Lisboa e o Porto; e a estação dos Correios e porque estes
serviços eram os mais concorridos, foi pela sua designação que o edifício se
tornou, também, mais conhecido.
Entre a inauguração das escadas de acesso à Igreja dos
Clérigos e a inauguração do Mercado do Anjo mediaram cerca de 85 anos.
Rua das Carmelitas - Ed. Alberto Ferreira, Tipografia
Peninsular
Entrada poente do mercado do Anjo
Sobre a origem de uma rua das imediações do local, aqui alvo
do nosso interesse, conhecida por Rua de Cândido dos Reis, diga-se que é uma
artéria que foi aberta em terrenos do antiquíssimo Largo do Ermitão onde, no
século XVII, ainda havia uma pequena e modesta ermida tendo ao lado a
residência do zelador do templo, o tal ermitão.
Aquele largo também teve o nome, de Largo do Correio.
Cândido dos Reis, conhecido como Almirante Reis foi um
militar, conspirador e carbonário português. Organizador militar da revolta de
5 de Outubro de 1910, viria a suicidar-se durante o golpe, por pensá-lo
falhado.
Nos finais do século XIX aquela rua tinha o nome de Ferros
Velhos por causa de uma espécie de feira da ladra que ali se realizava.
Deram-lhe depois o nome de Rua da Rainha D. Amélia, a mulher do
rei D. Carlos.
Aquela feira dos Ferros Velhos foi uma iniciativa da Câmara
Municipal, que na tentativa de copiar uma feira da ladra existente em Lisboa,
começou por levá-la para junto do Postigo do Sol com o nome de Feira da Ladra,
e que se realizava todas as 3ªs Feiras e Sábados.
Sabe-se que, em 1876, a feira do Postigo do Sol foi mudada
para o campo, que foi a cerca das freiras carmelitas. Em 18 de Abril de 1894
foi decidido extinguir a feira dos Ferros Velhos, o que na prática, só
aconteceria em 1904.
A Feira da Ladra não tem nada a ver com ladras ou ladrões,
mas sim com a língua árabe e a vivência conjunta, durante muitos anos, de
cristãos e muçulmanos, principalmente em Lisboa e terras do sul.
Feira da Ladra quer
realmente dizer Feira da Virgem (a Mãe de Jesus), pois "A Virgem" em
árabe diz-se "al-aadraa".
O Largo do Correio ao centro da planta e a Rua do Correio
Casa na Rua da Rainha D. Amélia
O edifício antigo que podemos visualizar na foto acima
situava-se na actual Rua Cândido dos Reis (Antigo Largo do Correio e antiga Rua
da Rainha D. Amélia), na esquina com a Rua da Fábrica.
Perspectiva actual da foto anterior-Ed. Google Maps
Ferros Velhos, em foto tirada da Rua das Carmelitas
Na foto acima vê-se o muro da cerca do convento.
Mesma perspectiva do local anterior -
Ed. Arnaldo Soares
No local da foto acima, é hoje, o cruzamento da Rua das
Carmelitas com a Rua Cândido dos Reis e nela se pode ver, que à direita, está uma loja de venda de
ferragens e calçado e, à esquerda roupas dependuradas, tal como ainda hoje
vemos nas nossas feiras. De notar os frondosos plátanos que, com a sua sombra
protegiam vendedores e compradores.
Os “Ferros Velhos”
foram desde meados do século XIX um pitoresco mercado do Porto, tipo feira da
ladra, onde se vendiam toda a espécie de artigos novos e usados.
Demolição em 1904 dos Ferros Velhos e do antigo convento das
Carmelitas - Ed. revista “O Tripeiro”
Os barracões que aparecem na foto acima pertenciam à Cozinha
Económica.
Largo do Correio e
área limítrofe - Planta de Telles Ferreira de 1892
Em 1908, uma
procissão passando na Rua das Carmelitas. A fachada do prédio à direita
corresponde à assinalada na planta anterior a azul – Ed. Aurélio Paz dos Reis;
CPF
Prédio situado à
entrada do Largo do Correio e cuja fachada corresponde, na planta acima, ao
segmento a vermelho
Armazéns da Capela,
em 1910, na esquina das actuais ruas das Carmelitas e Cândido dos Reis – Postal da “Fábrica de coroas e flores
artificiais” de António de Sousa Oliveira da Rua Rainha D. Amélia (Rua Cândido
dos Reis)
Armazéns da Capela –
Fonte: revista Illustração Portugueza de 31 de Julho de 1916
Nas fotos anteriores, já é possível observar os Armazéns
Capella que tinham começado por se localizar, mais acima, na Praça Gomes
Teixeira, junto do terreno ocupado pela capela do antigo convento e que, aí,
viram o seu lugar ocupado em 1910, pelos Armazéns do Chiado.
Construção em 1920 do “Edifício do Conde de Vizela” - Ed.
Foto Guedes
O estaleiro da foto acima estava instalado na esquina da
actual Rua do Conde de Vizela, Rua Cândido dos Reis e Rua das Carmelitas.
Edifício do Conde de Vizela e à direita a Rua do Conde de
Vizela
Em 22 de Dezembro de
1900, Diogo J. Cabral (1864-1913), industrial que tinha um grande bloco de
casas entre o arruamento futuramente designado por Cândido dos Reis e a «viela
que se chama do correio», recebeu nesta data o título de conde de Vizela, que
acabará por dar nome a esta última rua.
Em frente está a Rua Cândido dos Reis - Ed. Google Maps
A Arca do Anjo actualmente no Jardim na Rua de Nova Sintra–
Ed. Aquifolivm
A Arca do Anjo, estava junto ao mercado, a poente, na rua
adjacente ao edifício da Faculdade e, actualmente, encontra-se em Nova Sintra
nos jardins dos SMAS.
Nela se misturavam os mananciais de Paranhos e de
Salgueiros, quando antes se misturaram na Arca de Sá de Noronha, na Praça de
Gomes Teixeira.
A Arca de Sá de Noronha junto às escadas – Fonte: Google
maps
Rua das Carmelitas com Mercado do Anjo à direita
Bairro das Carmelitas em 1910 – Fonte: Guia do Porto
Illustrado, Carlos de Magalhães
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