terça-feira, 11 de julho de 2017

(Continuação 1) - Actualização em 15/04/2020


Conta uma lenda que, viajando D. Afonso Henriques em Novembro de 1153, na companhia da rainha D. Mafalda, de Coimbra para Guimarães, ao passar no sítio do Olival, então fora da cidade do Porto, local hoje com o topónimo de Praça de Lisboa, junto à torre dos Clérigos, a égua em que a rainha seguia, caiu subitamente num barranco. O monarca, naquele momento de aflição, invocou a protecção de S. Miguel-o-Anjo, de quem era devoto, e como a rainha nada tivesse sofrido, mandou erigir, naquele mesmo sítio, uma capela em honra do protector.
Esse sítio era conhecido, naquela época, pelo Lugar das Oliveiras.
Foi junto a esta ermida que no ano de 1661, uma virtuosa senhora portuense, D. Helena Pereira, natural da freguesia da Vitória, tendo ficado viúva, decide construir um recolhimento para "viúvas honestas" e "meninas órfãs" a que deu o nome de Recolhimento de S. Miguel-o-Anjo, ou Recolhimento da Rainha Santa Isabel do Anjo,  em memória da capela que ali existia.


“1672, marca o ano em que Dª Helena Pereira decide solicitar autorização para aqui levantar um Recolhimento. Esta Senhora, viúva, era possuidora de uma assinalável fortuna que seu marido, Gonçalo de Borges Pinto, proprietário de Mesão Frio e produtor de vinho, lhe havia legado na hora de sua morte, em 1661. 
Bem relacionada, Dª Helena Pereira consegue o apoio da Câmara do Porto, de dois Bispos da Cidade (D. Nicolau Monteiro e D. João de Sousa) e ainda da Rainha Maria Francisca de Sabóia, o que conduzirá à ordem para a utilização do local do Anjo e da sua ermida, para levantar um Recolhimento, “(…) para órfãs, donzelas nobres e pessoas de conhecida virtude e limpo sangue (…)” a que seria dado o nome, por sugestão da Rainha, Recolhimento de Santa Isabel. O Recolhimento localizava-se mesmo ao lado do conjunto que viria a ser dos Clérigos, mas a via que separava essas duas áreas era, no dizer da altura, uma viela imunda… 
Por esses tempos, o recurso da mulher abandonada, ou mesmo viúva, era casar segunda vez. Mas como para casar era preciso dote, fácil é de imaginar que a mulher, regra geral, acabava por cair numa situação de tal modo complexa que passava a dedicar-se a tarefas menos nobres, para poder sobreviver. 
Por isso, as Casas de Recolhimento femininas constituíam uma protecção, podendo ser ainda casas de Regeneração (para as pecadoras), tendo apoios vários, desde a Câmara às instâncias reais. 
A fundadora dava o exemplo, praticando uma vida austera e de desapego dos bens materiais. Praticou uma administração rigorosa e legou ao Recolhimento todos os seus bens e as suas imensas propriedades, o que permitiria uma vida relativamente desafogada à comunidade. 
A organização dependia do governo da Regente e enquanto Dª Helena Pereira foi viva, essa gestão foi completamente independente de factores estranhos ao Recolhimento. Foi com a sua morte que o Bispo do Porto passou a tomar parte activa no governo do Recolhimento. 
De resto há aqui um factor fascinante. A mulher, tida como um “elemento da casa”, foi, no caso dos Recolhimentos femininos, uma entidade com uma enorme capacidade de gestão. 
A azáfama “empresarial” chegava ao ponto de convidar as Recolhidas, muitas delas com muitas posses, a investir o dinheiro, nomeadamente em empréstimos e aquisições de propriedades. 
Digamos que era algo de demasiado terreno, mas fundamental para combater a falta de verbas com as despesas associadas aos gastos da Instituição. Portanto, Dª Isabel Pereira foi uma gestora de um imenso Património que incluía rendas, bens cedidos e os empréstimos realizados. Tudo “truques” que iriam permitir a continuidade da Instituição. 
De algum modo, para algumas mulheres, o trabalho realizado no Recolhimento foi uma fonte de conhecimento e de emancipação ao permitir-lhes aplicar princípios que, de um modo normal, eram dados exclusivamente ao homem. 
A Rainha Santa Isabel foi escolhida para Padroeira pela Rainha Maria Francisca de Sabóia, que por ela tinha grande culto. Nos Recolhimentos e Mosteiros, a figura do patrono representava o exemplo de modo de vida a seguir, que se estendia às roupas (de um modo geral escuras), o que era muito respeitado pelas Recolhidas, pois resguardavam a pessoa e acordavam-na para a responsabilidade da sua escolha. 
A Regra da Instituição era a da Ordem Terceira de S. Francisco, fundada no Porto em 1633. Uma Ordem Terceira era a possibilidade que o cidadão comum tinha de levar uma vida religiosa à qual, por razões várias, nunca se podia dedicar na integralidade. 
De resto, a ligação entre a fundadora Dª Helena Pereira e os Franciscanos era enorme, ao ponto de apenas estes estarem presentes nas suas exéquias fúnebres”. 
In site “marabo2012.wordpress.com”



Importa referir que a protectora do Recolhimento, Maria Francisca Isabel de Sabóia (nascida em Paris a 21 de Junho de 1646 e que morreria aos 38 anos na Palhavã, em Lisboa, a 27 de Dezembro de 1683) foi casada com Afonso VI de Portugal, desde 27 de Junho de 1666 e depois com o irmão daquele, Pedro II de Portugal, desde 27 de Março de 1668, após a anulação do primeiro casamento pelo papa.
Convindo a Luís XIV de França atrair Portugal ao seu país em luta com a Espanha, haveria de concordar com o casamento de Maria Francisca com D. Afonso.
De La Rochelle, onde se celebrou, por procuração, o casamento, partiria D. Maria Francisca, na nau Vendôme, até Lisboa.
Voltando ao Recolhimento da Rainha Santa Isabel do Anjo, esta instituição que começou por internar 10 orfãs filhas de boas famílias, acabaria algumas décadas depois, segundo Alberto Pimentel, por “ser convertido numa numerosa colmeia em que enxameavam mulheres de várias proveniências e idades…havia até senhoras casadas que iam hospedar-se no Anjo enquanto os maridos andavam ausentes”.
Acabou este recolhimento, por ser abandonado com a extinção das ordens religiosas em 1834 sendo que a sua demolição começou em 1837 e o terreno que ocupara foi aproveitado pela Câmara para a construção do mercado que tomou o nome da velhinha e lendária ermida - o Anjo.
Para quem subia o ca­minho, vindo da Viela do Correio, o Recolhimento de S. Miguel-o-Anjo ficava do lado esquerdo.
Devido à proximidade com essa instituição, o estreito caminho chamou-se, primeiro, Rua do Anjo; de­pois, Rua Nova do Anjo e, posteriormen­te, Rua Nova de Jesus do Anjo. Acabaria por tomar, mais tarde, o nome do Con­vento das Carmelitas e chamar-se Rua das Carmelitas. No lugar do reco­lhimento de S. Miguel-o-Anjo, construiu-se, em 1839, o Mercado do Anjo, entre­tanto também já desaparecido. 
Diga-se ainda, que a Rainha Mafalda, mulher de D. Afonso Henriques, que sofreu o acidente atrás referido, também quis agradecer ao divino o ter sobrevivido e mandou construir uma capela nas imediações desse local, que viria a ser conhecida por Capela de Nossa Senhora da Graça que, mais tarde, teria adstrito à igreja, que a veio substituir, o Colégio dos Meninos Orfãos, que ocupou o terreno onde hoje está a Reitoria da Universidade do Porto.
Citando o beneditino Novais, no “Porto de Outros Tempos”, Firmino Pereira diz que:
“…entre a ermida de S. Miguel e a Capela da Nossa Senhora da Graça, existiu por iniciativa da rainha D. Catarina, mulher de D. João III e avó de D. Sebastião, uma ermida dedicada a S. Sebastião que tinha anexado um pequeno Recolhimento de Órfãos de S. Sebastião, para ambos os sexos. Por morte da protectora e do rei D. Sebastião e por desleixo dos reis espanhóis que ocuparam o trono e ainda, por ter a alfândega deixado de pagar a verba a que estava obrigada, a ermida passou a degradar-se e seria demolida”.




Recolhimento do Anjo em desenho de Gouvêa Portuense




Imagem do Recolhimento do Anjo do Barão de Forrester



Um retrato do Recolhimento do Anjo é dado pelo escritor Alberto Pimentel no seu romance   “ O Lobo da Madragoa”, quando, numa narrativa ficcional, o poeta António Lobo de Carvalho, que lá dava aulas de poesia, visita Theresa, que aí tinha dado entrada vinda da aldeia de Villalva.
A importância deste templo advém, também, do facto de ter sido a Paroquial da Freguesia, aquando das obras da Igreja da Vitória no século XVII.
Tem também uma curiosidade associada que é a de ser a sede duma veneração ao Senhor Jesus das Bouças ou Senhor de Matosinhos.
Isso explica-se tendo em atenção que o Bom Jesus vinha até ao Porto, em ocasiões de grande desespero. Aconteceu em 1526, quando apavorantes calamidades atingiram a cidade, depois em 1596 e 1644, por causa de grandes cheias, ou em 1696 por causa de uma mortífera peste que encheu os hospitais e mergulhou a cidade num imenso pavor.
Um dia, a imagem teve que recolher à capela de S. Miguel o Anjo e a devoção popular arranjou forma de, na Capela, ser levantado um altar consagrado ao Senhor Bom Jesus de Bouças.
Em 1832, o Recolhimento foi transformado em Hospital e banco de sangue, sendo as últimas religiosas deslocadas para o Mosteiro de S. Bento da Ave-Maria.
Em 1834, já só existem os muros do Recolhimento, e na planta seguinte, daquele ano, da zona citadina em que estava inserido, já estava prevista a edificação de um mercado público.



Planta da zona dos Clérigos, em 1834



Imediações do Mercado do Anjo, em 1950







Uma das ruas adjacentes ao mercado do Anjo era a Rua das Carmelitas.
Até 1704, quando o bispo do Porto D. Frei José de Santa Maria de Saldanha fundou o convento das Carmelitas, a zona próxima era conhecida como Campo da Via Sacra ou Campo do Calvário Velho (hoje Praça Guilherme Gomes Fernandes).
Desses tempos resta a memória e dois topónimos: Rua das Carmelitas e Rua de Santa Teresa.
A planta redonda de George Balck (1813) mostra a rua já com a denominação actual, mas, em 1839, na planta de Costa Lima, surge como Rua do Anjo, registando-se também uma Travessa das Carmelitas que corresponde aproximadamente à actual Rua do Conde de Vizela.
Sabe-se, pela leitura de relatório camarário, que a Câmara do Porto solicitara, no ano de 1838, autorização à rainha (era a D. Maria II) para proceder ao seu alinhamento. Isto significa, naturalmente, que a artéria sofreu algumas alterações.
À época em foi solicitado o referido alinhamento, a rua, bastante mais estreita do que é actualmente, subia em curva por entre duas altas paredes, uma das quais delimitava a cerca do Convento de S. José e Santa Teresa de Carmelitas Descalças.
Na petição que a edilidade enviou à rainha refere-se, concretamente, que o alinhamento era para se feito nomeadamente "…defronte do correio". Há para isto uma explicação, pois, depois da extinção em 1834 das Ordens Religiosas, os edifícios dos antigos mosteiros, ou foram vendidos a particulares, em hasta pública, ou foram ocupados por serviços do Estado.
No Convento das Carmelitas que ficava acima da rua com esta designação e ocupava, praticamente, todo o quarteirão compreendido entra as actuais ruas das Carmelitas, Galeria de Paris, Santa Teresa e a Praça de Guilherme Gomes Fernandes, instalaram-se, após a saída das religiosas, várias repartições públicas, nomeadamente a estação central da Mala Posta que fazia a ligação entre Lisboa e o Porto; e a estação dos Correios e porque estes serviços eram os mais concorridos, foi pela sua designação que o edifício se tornou, também, mais conhecido.
Entre a inauguração das escadas de acesso à Igreja dos Clérigos e a inauguração do Mercado do Anjo mediaram cerca de 85 anos.




Rua das Carmelitas - Ed. Alberto Ferreira, Tipografia Peninsular



Entrada poente do mercado do Anjo



Sobre a origem de uma rua das imediações do local, aqui alvo do nosso interesse, conhecida por Rua de Cândido dos Reis, diga-se que é uma artéria que foi aberta em terrenos do antiquíssimo Largo do Ermitão onde, no século XVII, ainda ha­via uma pequena e modesta ermida ten­do ao lado a residência do zelador do tem­plo, o tal ermitão.
Aquele largo também teve o nome, de Largo do Correio.
Cândido dos Reis, conhecido como Almirante Reis foi um militar, conspirador e carbonário português. Organizador militar da revolta de 5 de Outubro de 1910, viria a suicidar-se durante o golpe, por pensá-lo falhado.
Nos fi­nais do século XIX aquela rua tinha o nome de Fer­ros Velhos por causa de uma espécie de feira da ladra que ali se realizava. Deram-lhe depois o nome de Rua da Rainha D. Amélia, a mulher do rei D. Carlos.
Aquela feira dos Ferros Velhos foi uma iniciativa da Câmara Municipal, que na tentativa de copiar uma feira da ladra existente em Lisboa, começou por levá-la para junto do Postigo do Sol com o nome de Feira da Ladra, e que se realizava todas as 3ªs Feiras e Sábados.
Sabe-se que, em 1876, a feira do Postigo do Sol foi mudada para o campo, que foi a cerca das freiras carmelitas. Em 18 de Abril de 1894 foi decidido extinguir a feira dos Ferros Velhos, o que na prática, só aconteceria em 1904.
A Feira da Ladra não tem nada a ver com ladras ou ladrões, mas sim com a língua árabe e a vivência conjunta, durante muitos anos, de cristãos e muçulmanos, principalmente em Lisboa e terras do sul.
Feira da Ladra quer realmente dizer Feira da Virgem (a Mãe de Jesus), pois "A Virgem" em árabe diz-se "al-aadraa".



O Largo do Correio ao centro da planta e a Rua do Correio



Casa na Rua da Rainha D. Amélia


O edifício antigo que podemos visualizar na foto acima situava-se na actual Rua Cândido dos Reis (Antigo Largo do Correio e antiga Rua da Rainha D. Amélia), na esquina com a Rua da Fábrica.



Perspectiva actual da foto anterior-Ed. Google Maps



Ferros Velhos, em foto tirada da Rua das Carmelitas



Na foto acima vê-se o muro da cerca do convento.



Mesma perspectiva do local anterior - Ed. Arnaldo Soares


No local da foto acima, é hoje, o cruzamento da Rua das Carmelitas com a Rua Cândido dos Reis e nela se pode ver, que à direita, está uma loja de venda de ferragens e calçado e, à esquerda roupas dependuradas, tal como ainda hoje vemos nas nossas feiras. De notar os frondosos plátanos que, com a sua sombra protegiam vendedores e compradores.
Os “Ferros Velhos” foram desde meados do século XIX um pitoresco mercado do Porto, tipo feira da ladra, onde se vendiam toda a espécie de artigos novos e usados.



Demolição em 1904 dos Ferros Velhos e do antigo convento das Carmelitas - Ed. revista “O Tripeiro”



Os barracões que aparecem na foto acima pertenciam à Cozinha Económica.



Largo do Correio e área limítrofe - Planta de Telles Ferreira de 1892



Em 1908, uma procissão passando na Rua das Carmelitas. A fachada do prédio à direita corresponde à assinalada na planta anterior a azul – Ed. Aurélio Paz dos Reis; CPF



Prédio situado à entrada do Largo do Correio e cuja fachada corresponde, na planta acima, ao segmento a vermelho





Armazéns da Capela, em 1910, na esquina das actuais ruas das Carmelitas e Cândido dos Reis – Postal da “Fábrica de coroas e flores artificiais” de António de Sousa Oliveira da Rua Rainha D. Amélia (Rua Cândido dos Reis)



Armazéns da Capela – Fonte: revista Illustração Portugueza de 31 de Julho de 1916




Nas fotos anteriores, já é possível observar os Armazéns Capella que tinham começado por se localizar, mais acima, na Praça Gomes Teixeira, junto do terreno ocupado pela capela do antigo convento e que, aí, viram o seu lugar ocupado em 1910, pelos Armazéns do Chiado.





Construção em 1920 do “Edifício do Conde de Vizela” - Ed. Foto Guedes



O estaleiro da foto acima estava instalado na esquina da actual Rua do Conde de Vizela, Rua Cândido dos Reis e Rua das Carmelitas.



Edifício do Conde de Vizela e à direita a Rua do Conde de Vizela



Em 22 de Dezembro de 1900, Diogo J. Cabral (1864-1913), industrial que tinha um grande bloco de casas entre o arruamento futuramente designado por Cândido dos Reis e a «viela que se chama do correio», recebeu nesta data o título de conde de Vizela, que acabará por dar nome a esta última rua.



Em frente está a Rua Cândido dos Reis - Ed. Google Maps




A Arca do Anjo actualmente no Jardim na Rua de Nova Sintra– Ed. Aquifolivm



A Arca do Anjo, estava junto ao mercado, a poente, na rua adjacente ao edifício da Faculdade e, actualmente, encontra-se em Nova Sintra nos jardins dos SMAS.
Nela se misturavam os mananciais de Paranhos e de Salgueiros, quando antes se misturaram na Arca de Sá de Noronha, na Praça de Gomes Teixeira.


A Arca de Sá de Noronha junto às escadas – Fonte: Google maps


Rua das Carmelitas com Mercado do Anjo à direita



Bairro das Carmelitas em 1910 – Fonte: Guia do Porto Illustrado, Carlos de Magalhães

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