segunda-feira, 1 de abril de 2019

25.40 O Bairro Ocidental e os ingleses


Numa passagem do romance de Júlio Dinis, “Uma Família Inglesa”, publicada em 1868, mas cuja acção decorre no Porto, em 1856, Júlio Dinis já se referia ao bairro Ocidental. Era marcante no Porto dessa época a ocupação de zonas da cidade de acordo com a origem dos residentes.


Texto de Júlio Dinis, In “Uma Família Inglesa”


O escritor não deixava, porém, de realçar, mais adiante, que toda a regra tem as suas excepções.



“Depois da comunidade britânica ter criado raízes na parte baixa da cidade do Porto, entre as freguesias de S. Nicolau e de Miragaia, a construção do cemitério britânico, num primeiro momento, e a eclosão da guerra civil e do novo gosto romântico de oitocentos, num momento posterior, proporcionaram a criação de uma forte implantação de nórdicos no Porto em meados de XIX…”
Cortesia de J. Pinto, D. Alves, H. Barbosa, R. Lima, In XI CONGRESSO DA GEOGRAFIA PORTUGUESA


Na primeira metade do século XIX dá-se, de facto, uma migração da comunidade britânica da parte ribeirinha da cidade para a parte alta ocidental.
Em contra partida, a burguesia portuense procura como novo espaço o mais chegado ao poder municipal, instalado na Praça Nova, passando a ocupar as ruas do Almada, das Hortas, Lavadouros, Laranjal e Formosa.
Sobre o aspecto da envolvente à área residencial ocupada pela comunidade britânica, dizia no mesmo romance, Júlio Dinis.


Texto de Júlio Dinis, In “Uma Família Inglesa”


Até ao século XIX a comunidade britânica dedica-se sobretudo aos negócios, em grande parte relacionados com o Vinho do Porto, com vivência entre a margem direita do rio Douro onde tinham as suas habitações e lojas (ruas de S. Francisco, Belmonte, Virtudes, Bandeirinha, Nova dos Ingleses, etc), a margem esquerda do mesmo rio onde tinham os armazéns ou caves e as suas quintas que se estendiam pelo Douro vinhateiro.
Na Rua da Bandeirinha dá-se conta da existência dos Noble, dos Sealy, dos Graham, dos Archer e muitos outros.
A guerra civil acontecida em 1833, viria a provocar estragos avultados em muitas residências desta comunidade, de que é exemplo os acontecidos em casas de João Allen, na Rua da Restauração.
Diga-se que a comunidade britânica, já uns anos antes, durante a Guerra Peninsular, tinha sofrido bastante com as invasões francesas das tropas de Napoleão, o que colocou em risco sério o seu património.
Na maioria dos casos a situação seria ultrapassada, quanto aos bens móveis, com a sua expedição para a velha Albion e, quanto aos bens imóveis, recorrendo a vendas e hipotecas fictícias, garantindo o pagamento de dívidas, também fictícias, com os seus bens de raiz.
No final do século XIX, em 1893, Alberto Pimentel dava conta duma mudança da comunidade inglesa, cerca de 30 anos antes, para uma parte mais ocidental da cidade, precisamente para a zona do Campo Pequeno e imediações da ribeira de Vilar (Rua do Rosário, Rua do Breiner, etc).


Texto de Alberto Pimentel, In “O Porto há 30 anos”


A obra citada no texto anterior foi muito recentemente reeditada pela Universidade Católica do Porto e, pode, assim, estar à disposição dos portuenses.



“O Porto há trinta anos” de Alberto Pimentel


Toda a área geográfica, que tem vindo a ser referida, era ocupada, no século XVIII, por explorações agrícolas e caminhos que levavam os habitantes da cidade do Porto, à Foz, Carvalhido e a Vila do Conde, Barcelos ou Viana do Castelo.
Erguido o cemitério britânico por estas bandas, em 1787, que substituiu a tradição de enterramentos nas margens do rio Douro (Cavaco – V. N. de Gaia) na maré vasa, não tardaria a serem reclamados para urbanização os terrenos em volta.
Diga-se que a igreja de Saint James, anexa ao cemitério, começaria de acordo com algumas condições impostas a ser construída, em 1815, tendo sido concluída, em 1818.
Posteriormente, foi acrescentada uma galeria de forma a albergar mais gente e, em 1866/87, procedeu-se ao alargamento do templo.


Cemitério Britânico do Porto - Gravura J.J. Forrester em 1838


Uma das primeiras famílias a residirem neste local, foi a de Charles Louis Goubien, nascido na Jamaica, casado com a irlandesa Júlia Archer.
No seguimento de um anúncio publicado no “Periódico dos Pobres”, em 24/06/1835, Charles Goubien terá comprado ou alugado a casa, onde mais tarde teria alicerces, a Maternidade Júlio Dinis.
Um pouco distante desta, ainda na então Rua do Campo Pequeno, assentaria residência Charles Coverley, conhecido capitalista ligado aos transportes marítimos.
Logo pegado a esta propriedade (a ocidente), mas em prédio alinhado com a rua e construído em 1845, por José Luís Marreiros, acabará por morar, em meados do século XIX, a família William George Roughton.
Devido à abertura de falência deste, na década de 70, o prédio é ocupado pela família Perry, vinda da Rua de Cedofeita.
No fim do século XIX, será residente ali, João Archer, para na transição de séculos passar a casa a ser ocupada por Ernesto Kopke, conhecido por ter presidido ao julgamento de Urbino Vicente de Freitas, num popular caso de envenenamento.



Planta de Telles Ferreira de 1892 da zona do Campo Pequeno


Legenda:

1. Palacete Pinto Leite
2. Casa de Charles Gubian (Depois, Maternidade Júlio Dinis)
3. Casa de Charles Coverley
4. Casa de José Luís Marreiros
5. Cemitério Inglês
6. Largo do Campo Pequeno (Largo da Maternidade)
7. Fábrica de Tecidos
8. Rua do Campo Pequeno (Rua da Maternidade)



Talbótipo obtido a partir de um prédio da Rua do Campo Pequeno (Rua da Maternidade) de meados do século XIX – Autoria Frederick William Flower


No talbótipo anterior, salvo melhor apreciação, parece que o Norte está na linha do horizonte e, a meio, transversalmente (da esquerda para a direita), a Rua do Rosário e, longitudinalmente, correrá a Rua do Campo Pequeno (Rua da Maternidade).



Talbótipo obtido a partir de um prédio da Rua do Campo Pequeno (Rua da Maternidade) de meados do século XIX – Autoria Frederick William Flower



Perspectiva actual idêntica à do calótipo anterior


Na foto acima é possível observar, sobre a esquerda, com mais destaque, a Torre dos Clérigos e, à sua esquerda, a torre sineira da igreja dos Carmelitas.
Diga-se que o talbótipo ou calótipo que deriva do nome do seu inventor o
britânico William Fox Talbot, em 1836, é um processo fotográfico que consiste na utilização numa câmara escura, de um papel sensibilizado com nitrato de prata e ácido gálico que é exposto à luz por cerca de 20 minutos. Depois, o negativo é fixado numa solução de hipossulfito de sódio, e quando seca, em contacto com papel fotossensibilizado produz a imagem em positivo.
A grande vantagem da calotipia em relação à daguerreotipia é a possibilidade de reproduzir o mesmo negativo, em positivo, quantas vezes sejam necessárias, enquanto a imagem produzida em positivo pelo daguerreótipo é única e sem possibilidade de reprodução.
Para além dos britânicos já mencionados a morar por aqui, bem próximo, na Rua do Rosário, tiveram residência muitos outros, de que nos fala o texto seguinte.


“Um desses proprietários era o Barão Guilherme de Linston, major do exército, comendador da ordem de Cristo, cavaleiro da ordem de Nossa Senhora da Conceição, que havia sido condecorado com a Cruz da Guerra
Peninsular e da medalha da campanha de Inglaterra. O Barão de Linston, que foi ajudante de ordens do brigadeiro Nicolau Trant durante a Guerra Peninsular, casou-se com Rita de Cássia Machado, filha de José António Machado Ferreira de quem herdou uma propriedade que entestava a oriente na rua de Cedofeita e a poente na rua do Rosário, onde os Linston possuíam residência.
Nessa mesma rua do Rosário viveram também vários negociantes ingleses ou estrangeiros não católicos que para ali se dirigiram durante ou após o Cerco do Porto, imitando o movimento realizado pelos conterrâneos da rua da Maternidade. Entre eles avultava o influente Barão de Massarelos, Joaquim Augusto Kopke Schwerin de Sousa (1804-1895), fundador e sócio de várias empresas (Fábrica de Cerâmica de Massarelos, Fundição do Bicalho, Fundição de Massarelos e Companhia de Artefactos de Metais,…), cônsul da Turquia, de Hamburgo e de outras cidades hanseáticas, e negociante em vinhos do Porto. Ali, na sua casa da rua do Rosário, o Barão de Massarelos faleceu em 1895, num edifício que se localizava junto da residência de um dos seus filhos, o já referido juiz Ernesto Kopke, mas também do seu primogénito, Júlio Kopke Severim da Fonseca (1835-1899), que, pelo menos desde 1875, teria residência no n.º 219 da rua do Rosário. Nessa mesma casa, uns anos antes, havia morado a família Whiteley, encabeçada por Thomaz Hurst Whiteley (casado com Georgina Whiteley) e irmão do Reverendo Edward Whiteley, último capelão da Feitoria Inglesa. Numa das muitas viagens de Thomaz Whiteley pelo território triangular entre o Porto, Gaia e o Alto Douro, perto da Régua “caiu nas mãos de um gangue, que não só ficaram na posse do seu cavalo, carteira e relógio, como também lhe tiraram todas as roupas. Depois, colocaram-no de costas voltadas para um pinheiro, os braços à volta do tronco e amarraram os pulsos. Deixaram-no nesta situação embaraçosa da qual só se livrou algumas horas mais tarde por pessoas que lá passaram” (Sellers, 1899). Junto aos Whiteley, do lado norte, moravam os Reid, família de origem escocesa que chegou ao Porto em 1825, num negócio ligado ao comércio do algodão.
A teia de relações sociais ultrapassava, em muitos casos, a nacionalidade ou a religião, somando-se as relações familiares, diretas ou indiretas, como acontecia no caso dos Reid e dos Whiteley, num intrincado complexo de famílias e casamentos cruzados, alimentando o sentido de comunidade que partilhava ruas, escolas, salões e a “última morada”, no cemitério britânico.”
Cortesia de J. Pinto, D. Alves, H. Barbosa, R. Lima, In XI CONGRESSO DA GEOGRAFIA PORTUGUESA



Dada a evidência na frequência deste local pela comunidade britânica, não admira que por aqui viesse a instalar-se, na esquina nordeste da Rua do Rosário com a Rua de Miguel Bombarda, um Hospital Inglês, financiado por um fundo privado e gerido por um médico britânico, Dr. Henry Jebb, pelo menos desde 1845 até meados da década de 50 de XIX.
Em frente aquele hospital e do outro lado da rua, encontrava-se num edifício da primeira metade de XIX, o antigo Colégio Inglês, fundado pela inglesa Miss Brown, no início da década de 50 do século XIX e, mais tarde, dirigido por Miss Hennessey.



Esquinas da Rua do Rosário (longitudinalmente) e Rua de Miguel Bombarda (transversalmente) – Fonte: Google maps



Na foto acima, à esquerda, esteve o colégio de Miss Hennessey que haveria de ocupar instalações no antigo Largo do Mirante (Largo do Coronel Pacheco) e à direita o local onde esteve o hospital privado da comunidade britânica.
Durante a segunda metade do século XIX, a comunidade britânica vai, regra geral, procurar fixar-se numa segunda habitação, com finalidade de veraneio, na Foz do Douro, e acabará mesmo, nalguns casos, por tornar essa habitação, definitiva.

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