“Eu passei os primeiros anos da minha vida
entre duas quintas, a pequena Quinta do Castelo, que era de meu pai, e a grande
Quinta do Sardão que era, e ainda é, da família do meu avô materno, José Bento
Leitão; ambas eram ao sul do Douro, ambas perto do Porto, mas tão isoladas e
tão fora do contacto da cidade que era perfeitamente do campo a vida que ali
vivíamos(…).”
Almeida Garrett (04 Fev 1799 - 09 Dez 1854)
Sobre uma criada,
trazida do Brasil por seu avô, diz Garrett:
“(…) uma parda velha, a boa Rosa
de Lima, de quem eu era o menino bonito entre todos os rapazes, e por quem
ainda choro de saudades apesar do muito que me ralhava às vezes, era a
cronista-mor da família, e em particular da capela e da quinta do Sardão, que
ela julgava uma das maravilhas da terra e venerava como um bom castelhano o seu
Escurial. Contava-me ela, entre mil bruxarias e coisas do outro mundo que
piamente acreditava, que também naquelas coisas “se mentia muito”; que, de meu
avô, por exemplo, diziam que tinha aparecido embrulhado num lençol passeando à
meia-noite em cima dos arcos que trazem a água para a quinta: o que era
inteiramente falso, porque “ela estava certa que, se o Sr. José Bento pudesse
vir a este mundo, não se ia embora sem aparecer à sua Rosa de Lima” – E
arrasavam-se-lhe os olhos de água ao dizer isto, luzia-lhe na boca um sorriso
de confiança que ainda agora me faz impressão quando me lembra.”
"Nasci no
Porto, mas criei-me em Gaia".
Almeida Garrett
Em 1799, Garrett
nasceu no Porto, na Rua do Calvário (hoje a Rua do Dr. Barbosa de
Castro), numa casa que arderia em 27 de Abril de 2019.
Ataque ao fogo ocorrido
na casa onde nasceu Garrett – Fonte: JN
O prédio de
propriedade particular, estava em vias de ser declarado edifício de Interesse
Municipal, tentando o Município adquiri-lo, para aí vir a instalar um polo do
Museu do Liberalismo.
Em 2020,
comemorar-se-ão 200 anos sobre a ocorrência no Porto da Revolução Liberal.
Em 1804, com 5 anos
de idade, Almeida Garrett, foi viver para Vila Nova de Gaia, onde a família
tinha propriedades. Numa primeira fase, habitou a Quinta do Castelo, no lugar
do Candal, freguesia de Santa Marinha, sita nas proximidades das ruínas do
Castelo de Gaia e que tinha origem nos ancestrais do seu pai.
“Diante da
Invasão islâmica da península Ibérica a partir do século VIII, e
posteriormente, no contexto da Reconquista cristã da península, por volta do
ano 1000, a fronteira entre muçulmanos e cristãos fixou-se no rio Douro. Diante
das oscilações da linha de fronteira, a povoação de Cale (Gaia), perdeu a sua
população cristã, que se refugiou na margem norte do rio.
O primitivo
castelo terá sido erguido pelas forças muçulmanas, uma vez que é referido em
uma das antigas lendas associadas a Gaia, que se refere ao confronto entre o
rei cristão D. Ramiro e o rei mouro Alboazer.
Com a conquista
definitiva e subsequente pacificação dos territórios a sul do Douro por volta
de 1035, registou-se um repovoamento da antiga Gaia, incentivado por foral
passado pelos novos senhores das terras conquistadas. A nova povoação
denominou-se "Vila Nova de Gaia", florescendo ao abrigo dos muros do
antigo castelo de Gaia.
O nome das duas
povoações - do Porto e de Gaia - era usualmente referida em documentos coevos
como "villa de Portucale", e o condado do Reino de Leão no qual se
inscreviam, denominado de "Portucalense".
Após a fundação
do reino de Portugal, as duas povoações - Gaia e a Vila Nova - mantiveram-se
autónomas. Gaia recebeu carta de foral passada pelo rei D. Afonso III em 1255
seguindo-se Vila Nova, por D. Dinis, em 1288.
O castelo foi
conquistado pelo príncipe D. Afonso, filho de D. Dinis, em 4 de Janeiro de
1322. Poucos anos mais tarde, o príncipe D. Pedro, ao saber que seu pai, D.
Afonso IV, tinha autorizado a morte de D. Inês de Castro, entrou em guerra
aberta contra o pai e saqueou a região do Entre-Douro-e-Minho (1355-1357),
tendo também se apoderado de Gaia e seu castelo. Data deste período o primeiro
alcaide conhecido do castelo, Rodrigo Anes de Sá, nomeado por D. Pedro, já rei,
em 29 de Julho de 1357.
Nesse período, o
castelo sofreu obras de reparação ou reforço, uma vez que, em 1366, o abade do
mosteiro de Pedroso forneceu vinte carros de lenha para o Castelo de Gaia,
também tendo sido cedidos pela mesma instituição carros e bois para esses
trabalhos.
Ainda nesse
século, em 1383, ambas as povoações foram integradas no julgado do Porto,
perdendo a sua autonomia. Talvez por esse motivo, em 1385 os cidadãos
portuenses, a pretexto de desacordos com o alcaide Aires Gomes de Sá,
assaltaram o castelo e o danificaram de tal modo que o mesmo deixou de ter
alcaide.
In Fortalezas.org
João de Barros, no reinado de D. João III, na sua crónica escreveu sobre
o castelo de Gaia:
"Tem a
cidade o arrabalde de Vila Nova, cuja paróquia é Santa Marinha e junto dela
está o Castelo de Gaia em um lugar alto e mui aprazível. Este castelo é já
derribado, que a cidade já derribou. É tão antigo que, dizem, que o fundou Caio
Júlio César. E nele estavam umas pedras com o nome de Caio César."
Crónica de João de Barros
Nas imediações do
morro da foto acima onde esteve erguido o Castelo de Gaia, se situava a Quinta
do Castelo, pertença da família do pai de Almeida Garrett, António Bernardo da
Silva Garrett (1740-1834), selador-mor da Alfândega do Porto.
Em baixo
apresenta-se uma gravura do morro do Candal (ou morro do Castelo de Gaia), 1849
- Cesário Augusto Pinto (1825-1896), Gaia in As
margens do Douro, collecção de doze vistas e uma mesma perspectiva actual da gravura, obtida no Google maps, onde
é possível visualizar algumas construções que se mantêm.
De notar que para
poente (não visível) se encontrava o Mosteiro do Vale da Piedade.
No blogue Memórias Gaienses da Biblioteca Pública Municipal
de V. N. de Gaia, sobre a gravura acima, de Cesário Augusto Pinto refere-se:
“Na actualidade mantêm-se a maior parte das construções,
a saber: o Lar Pereira Lima, ao alto que pertence à
Misericórdia do Porto, a capela de Nossa Senhora da Bonança (ou do
Bom Jesus de Gaia), os armazéns do vinho do Porto, a casa junto às
escadas da Rua do Salgado.
Na cota baixa, de nascente para poente, ainda existem as
paredes e belas janelas dos dois primeiros edifícios e todo o casario
ribeirinho do Cais de Gaia que aqui parte com o Cais da Fontinha, bem assim o Oratório e escadas da Boa Passagem (Era
aqui que se situava o pelourinho de Vila Nova de Gaia que foi derrubado e
semidestruído na cheia de 1909).
A poente, na cota média, pode ver-se o edifício da Quinta
da Bela Vista onde existia a cerâmica do Vale da Piedade.”
Capela do Bom Jesus
ou Capela de Nossa Senhora da Bonança, na Rua Viterbo de Campos
Em tempos recuados existiram, junto ao castelo de Gaia, diversos templos:
a capela de São Marcos, que a tradição considera ter sido a primeira Sé, a
capela de Nossa Senhora do Castelo, a capela de Nossa Senhora da Piedade e a
capela de São Lourenço mártir.
Por outro lado, a
Quinta do Sardão e o respectivo palacete, de que fala o poeta, no texto acima, viram
a luz do dia por acção do sargento-mor de Ordenanças, José Bento Leitão, em
Oliveira do Douro, onde criaria os seus filhos, nomeadamente, D. Ana Augusta de
Almeida Leitão, mãe do poeta Almeida Garrett.
Gomes de Amorim,
autor das Memórias Biográficas de Garret, descreve a Quinta do Sardão, do
seguinte modo:
"Magnifica e muitas vezes maior que a do
Castello. Compõe-se de pomares, terras de pão e matas. Além de outras
nascentes, recebe agua com abundancia de um aqueducto, formado por vinte e três
arcos, assentes em outros tantos pilares, de estylo romano, semelhantes aos que
levam agua para a Serra do Pilar. O arco mais alto terá uns doze ou quatorze
metros de altura. São erguidos na extremidade sul da quinta, à beira da estrada
de Villar de Andorinho, e fornecem água para um grande depósito, onde concorrem
muitas lavandeiras. A água canalisada por baixo do chão, desde o pinhal, entra
na mina d'onde passa para o cano do aqueducto, a uns duzentos metros do
primeiro arco, vindo de Villar de Andorinho. É deliciosa, fresca e leve como a
da fonte da Sabuga, em Cintra. Na parte superior da base do terceiro pilar,
contando da mina, está, do lado da estrada, esta data, grosseiramente aberta na
pedra, e quasi apagada já pelo tempo"177U”. Supponho ser a data da
fundação. Desenhei fielmente os caracteres".
Cortesia: Isabel
Sereno e João Santos, 1994, In: “monumentos.gov.pt”
No último cartel do
século XIX, em 1879, a família de Almeida Garrett ofereceu a quinta às Irmãs
Doroteias, onde instalaram um colégio.
Aquela Congregação
Religiosa foi fundada em Quinto-Génova, em 1834, por uma genovesa, Paula
Frassinetti.
No início, o colégio
tinha uma organização escolar de três tipos: uma escola masculina, uma feminina
para alunas externas e outra, também feminina, para alunas internas.
Após um interregno
devido à alteração do regime político português – de 1910 a 1921 o Colégio
reabriu com uma organização de dois tipos: uma escola para alunas externas e
outra para alunas internas (ambas femininas).
Em 16 setembro de
1923, a Junta de Freguesia manda tirar a planta do terreno baldio dos Arcos do
Sardão para o colocar em praça pública.
A partir de 1969,
com a introdução do Ensino Infantil, em regime de co-educação, depois estendido
à Primária, a estrutura do Colégio foi tendo sucessivas alterações.
Neste momento, a
população escolar abrange o Jardim de Infância e o 1° Ciclo do Ensino Básico.
Uma característica
arquitectónica que identifica esta quinta é a que se prende com a sua ligação a
um aqueduto.
Para o abastecimento
de água à quinta, seria construído, algures, durante século XVIII, um aqueduto que
levava água de Vilar de Andorinho para a Quinta do Sardão.
A estrutura do aqueduto,
em aparelho rusticado, era constituída por arcada de vinte e três arcos de
volta perfeita, assentes em pilares, de diferentes cérceas.
Este aqueduto
(parcialmente demolido, em várias fases, ao longo dos anos) foi atravessado
pela estrada nacional 222, para Avintes, pelo que seria, nesse trecho,
interrompido em 1966.
Convém salientar que
a data que é mais divulgada para o começo do levantamento do aqueduto é a de
1720 e que o obreiro teria sido o avô de Almeida Garrett.
Não nos parece que
tal seja possível.
José Bento Leitão,
nascido em Vila do Conde, em data indeterminada, por não ser consensual, fez
fortuna no Brasil, em Pernambuco, onde enviuvou e concebeu durante esse
primeiro casamento duas filhas.
Voltou para Portugal
viúvo, muito rico, acompanhado da criada “parda velha”, Rosa de Lima, que foi
presença referenciada nos escritos do poeta.
Em 1766 já era
membro da Ordem de Cristo.
Em 1771, José Bento
Leitão voltaria a casar, agora, com a que seria a avó de Almeida Garrett.
D. Ana Augusta de
Almeida Leitão (1776-1841), mãe de Almeida Garrett, era irmã de João Carlos
(1777-1824) e ambos filhos daquele segundo casamento de José Bento Leitão.
Portanto, se a data
para levantamento do aqueduto fosse 1720 e o seu autor José Bento Leitão, ele
já estaria em Portugal naquele ano, depois de um período a fazer fortuna no
Brasil.
Isso implicaria que
aquando do 2º casamento já tivesse uma provecta idade. Algo não bate certo e
seria essencial saber, com certezas, a idade do nascimento do sargento-mor de
Ordenanças.
“Feito pelo Marquês de
Pombal Deputado da poderosa Companhia dos Vinhos do Alto Douro (cuja sede era
no Porto), [José Bento Leitão] se entregara a espaventosos atos de “brasileiro”
com fortuna: construção da quinta e palacete do Sardão, doações à Misericórdia
de Vila do Conde, vida farta de grande senhor, rodeado de criadagem numerosa,
como a querer reproduzir na Metrópole o bulício da casa grande do Brasil das
patacas.”
Cortesia de Ofélia Paiva Monteiro
Excerto extraído da obra de Virgínia de Jesus Fontoura, “Pedro Gomes Simões: Homem de negócios do
Porto: Século XVIII”
Do texto acima
pode-se inferir que José Bento Leitão em 1761 ainda mantinha negócios com a
colónia brasileira.
Palacete da Quinta
do Sardão
Aqueduto da Quinta
do Sardão
Aqueduto dos Arcos
do Sardão – Fonte: Google maps
(Continua)
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