Comemorações do Centenário
da Fundação da Nacionalidade (1140) e do Centenário da Restauração da
Independência (1640)
No Porto, em 1940, as festividades alusivas àquelas duas
comemorações, centrar-se-iam em volta da Sé Catedral, com uma remodelação geral
do espaço existente.
Em frente à Sé, viria a nascer um largo, que é o que hoje
existe, e pode ser apreciado. Para isso, foi necessário eliminar algumas ruas e
ruelas de um aglomerado habitacional de cariz medieval, e demolir as habitações
que impediam essa tarefa. Foi, assim, intervencionada uma área dentro do
perímetro do chamado Castelo.
Desapareceram, em sequência, para sempre, a Rua da Senhora de Agosto, a Rua do Paço, a Rua das Tendas e o Largo do Paço Episcopal.
A própria Rua
de S. Sebastião viu-se um pouco amputada no seu tamanho.
Pretendeu-se, com a intervenção levada a cabo, a
monumentalização do conjunto dos edifícios episcopais, tornando-os mais
visíveis.
O facto saliente é que, se aquele objectivo foi atingido, por
outro lado, a raiz histórica do lugar perdeu-se, em parte.
Salvou-se a Capela dos Alfaiates, mas num cenário
completamente diferente.
Na foto, a placa toponímica que indica o Largo do Paço
Episcopal. Ao fundo a Sé – Fonte: AHMP
Largo fronteiro à Sé do Porto (à esquerda) antes de 1940. Ao
fundo, o Paço Episcopal e, à direita, a Capela de Nossa Senhora de Agosto (conhecida
por Capela dos Alfaiates) que foi transferida, pedra a pedra, para o gaveto entra
a Rua do Sol e a Rua de São Luís
Aspeto das demolições no Largo do Paço Episcopal (actual
Largo Dr. Pedro Vitorino), para o alargamento do Terreiro da Sé – Fonte: AHMP
Capela dos Alfaiates, na Sé, em 1935
Capela dos Alfaiates no seu lugar actual – Ed. “visitporto.travel”
Alguns anos antes, nas imediações daquele local, e dentro
ainda dos limites da muralha sueva, se tinha procedido a uma outra demolição,
com a qual, alguns portuenses não concordaram.
Tratou-se do derrube do “Arco de Sant’Ana” e, quem mais se
fez, então, ouvir, foi Almeida Garrett.
Assim, em 2 de Junho de 1821, começa a ser demolido, por
ordem da Câmara, o velho “Arco de Sant’Ana”, junto à Sé, resultante de um
pedido de Manuel Luiz da Silva Leça e António Joaquim de Carvalho.
Tal facto, deixaria indignado Almeida Garrett que se manifesta
nos seguintes termos:
“Cahiste pois tu, ó
arco de Sant’Anna, como em nossos tristes e minguados dias, vae cahindo quanto
ha nobre e antigo ás mãos de innovadores plebeus, para quem nobiliarchias são
chimeras, e os veneráveis caracteres heráldicos de rei d’armas Portugal lingua
morta, e esquecida que nossa ignorância despreza, hieroglyphicos da terra dos
Pharaós antes de descoberta a inscripção de Damieta!
Assentaram os
miseráveis reformadores que uma pouca de luz mais e uma pouca de immundicie
menos, em rua já de si tam escura e mal enchuta, era preferível á conservação
d'aquelle monumento em todos os sentidos respeitável!
Com que desapontamento
deste meu coração, depois de tantos annos de ausência, não andei procurando, em
vão!... Na rua de Sant’Anna, uma das primeiras que a minha infancia conheceu,
as gothicas feições d’aquellé arco? e a alampada que lhe ardia continua, e os
milagres de cera que lhe pendiam á roda, e toda aquella associação de cousas,
que me trazia á memória os felizes dias de minha descuidada meninice!”
Almeida Garrett
O Arco de Sant’Anna estava localizado na rua que teve o
mesmo nome, a partir do século XVIII e, antes, durante a idade média, tinha
sido Rua das Aldas e, depois da construção do colégio de S. Lourenço (Grilos),
Rua do Colégio, embora amputada de uma porção, na sua extensão.
O Arco de Sant'Ana das Aldas era o que restava de uma das
quatro portas da velha cidade do Porto, talvez mesmo um postigo aberto no
extremo da muralha do lado norte, que nesse ponto quebrava em direcção ao sul,
correndo em seguida pelas traseiras da antiga Rua dos Mercadores, paralela à de
Sant'Ana.
Sant’Ana, a avó de Jesus Cristo, foi adorada todos os dias
num oratório, implantado num arco da Rua das Aldas.
Aí, correndo em busca de auxílio, as parturientes, em
dificuldades, tinham a devida assistência, numa casa contígua ao oratório que
lhes disponibilizavam, quer durante o dia ou à noite, as Cadeiras de Sant’Ana, nas
quais se recostavam e adquiriam a fé que necessitavam, em troca da oferta de um
pouco de azeite (a lâmpada do Arco mantinha-se permanentemente acesa) ou de uma
pequena dádiva em dinheiro.
A 26 de Julho, dia da festa anual da padroeira, o Arco onde
assentava o oratório com a imagem da Santa era ricamente decorado com panos
(alguns deles bordados a ouro e prata) e flores, dando ao Arco o aspecto de uma
capela-mor.
Quando o Arco de Sant’Ana foi demolido, em 1821, a imagem da
Santa e as Cadeiras de Sant’Ana passaram para a capela de S. Crispim,
junto da Rua da Biquinha, continuando a servir do mesmo modo que anteriormente.
Assim, na tarde de 29 de Junho de 1821, a imagem alvo de
veneração foi, sob o estandarte da irmandade dos sapateiros, curtidores, surradores
e correeiros, conduzida, em procissão e em magnífico andor, pelos mestres que
nesse ano eram juízes ou tinham assento na Casa dos Vinte e Quatro (em que
estes ofícios gozavam do direito de banco), para a capela de S. Crispim e, aí,
colocada em altar especial.
Do velho arco de Sant'Ana, actualmente, apenas sobrevive a
porta que permitia o acesso ao nicho onde estava a imagem de Sant’Ana com a
Virgem e o Menino, apesar de, em 13 de Maio de 1943, a Câmara Municipal ter
aprovado um projecto para o reconstituir e reimplantar, no seu local primitivo,
o que não se concretizaria.
Hoje, a imagem de Sant’Ana está esquecida na Capela de S.
Crispim, entretanto, deslocada, nos finais do século XIX, para a actual Rua de
Santos Pousada.
Local actual do Arco de Sant'Ana - Ed. Graça Correia
Interior da Sé, em 1910, antes do restauro dos anos 30 do
século XX – Ed. Foto Guedes
Sé em 1934 – Ed. Alvão
Entrada da Sé em 1934 – Ed. Alvão
Castelo da Sé e Sé
catedral
Durante a nossa 1ª dinastia até ao reinado do D. João I, o
Bispo e a Sé, como centros de poder, pontificaram no governo da cidade. A
partir daí, com a ajuda do rei, os burgueses puderam, aos poucos, determinar o
seu destino.
«Fomos à procura e, no
"Corpus Códice", importante documento de leitura obrigatória para
quem quiser conhecer a história do Porto, do tempo em que ela era feudo dos
senhores bispos, num trecho datado de 1339, em que a Igreja determinava as
coimas, ou seja, as multas, a aplicar a quem não cumprisse determinadas regras,
nomeadamente as que diziam respeito aos privilégios dos portuenses, lá aparece
o seguinte:
"nenhum rico
homem, nem rica-dona, nem cavaleiro, não pousará dentro na cerca do castelo e
se aí for pousar o dito Senhoria da Igreja lhe fechará "as portas do dito
castelo e terá dele as chaves o bispo ou seu mandado".
Também no
"Catálogo dos bispos do Porto", escrito em 1623 pelo prelado D.
Rodrigo da Cunha (bispo da diocese portucalense entre 1619 e 1627), se abordam
as questões que aconteceram entre o austero bispo D. Vasco Martins e os homens
do Senado (leia-se Câmara) que tanto agitaram a cidade aí por 1341. Escreveu D.
Rodrigo:
"chegou o negócio
(os acontecimentos) a termos tais, que em certo alvoroço se juntaram alguns do
povo e com mão armada se foram ao paço do bispo apostados em o afrontarem e
maltratarem, mas ele, que soube do motim primeiro que os conjurados chegassem à
Sé em que assistia a um ofício fúnebre de certa pessoa nobre, se recolheu ao
castelo que era a fortaleza da Igreja do Porto".
“Numa das pedras da
torre virada a norte, existem dois curiosos elementos escultóricos: um
"signum salomonis" (sino saimão) que fica junto ao primeiro gigante;
e a figura de uma barca, que os especialistas dizem ser a mais antiga
representação iconográfica de uma embarcação que é por vezes identificada como
sendo uma coca (esta, de origem nórdica, era utilizada no tráfego costeiro).
Mas há também quem
considere aquela figura esculpida no granito como sendo o navio de S. Vicente e
ligue a sua existência na referida torre da catedral à lenda de S. Vicente
mártir, que é o padroeiro de Lisboa e foi o primeiro padroeiro da cidade do
Porto.
A lendária história é
conhecida: o diácono Vicente foi martirizado por Daciano, governador de
Saragoça e Valência, por ordem expressa do imperador Maximiano. O corpo de S.
Vicente, continua a lenda, foi recolhido num barco que, sob a proteção de dois
corvos, aportou ao rio Tejo. D. Afonso Henriques trouxe um braço do mártir para
o Porto, e S. Vicente foi padroeiro desta cidade de 1173 a 1453.
Foi grande, no Porto,
o culto de S. Vicente cuja imagem esteve na capela de Nossa Senhora da
Encarnação, também conhecida por capela de S. Tiago, que ficava nos claustros
da Sé. A festa a S. Vicente era no dia 22 de Janeiro e tinha como promotores os
correeiros, peleiros, caldeireiros e douradores que tomaram o mártir como
patrono.
(…) A imagem de S.
Vicente está na Sé, no altar de Sant' Ana, no transepto, perto da porta que dá
acesso à sacristia, onde antigamente esteve a capela da família dos Alões.
Durante muitos anos,
em frente à imagem de S. Vicente, na catedral, esteve sempre acesa, de dia e de
noite, a chama de uma lamparina de azeite. Em 1600, foi criado um prazo,
segundo o qual um tal Francisco de Carvalho, morador no lugar de Melres, então
do extinto concelho de Aguiar de Sousa, que ali tinha um olival, era obrigado a
oferecer, anualmente, dois almudes de azeite, que à sua custa tinha a obrigação
de trazer a esta cidade do Porto, para que nunca se apagasse a chama votiva no
altar de S. Vicente.”»
Cortesia de Germano Silva
A área à volta da Sé, desde sempre, foi a residência das
personagens importantes do clero e da burguesia do Porto.
Na rua, que pode dizer-se ficava por trás da Sé e, por isso
mesmo, se chamava Rua de Trás da Sé e que a partir de 11 de Outubro de 1919, a
Câmara determinou que seria a Rua da Catedral e hoje é a Rua D. Hugo, as casas
daqueles burgueses e clérigos de elevado estatuto eram porta com porta, como se
vê pela identificação respectiva nas plantas seguintes.
Ocupação dos prédios da Rua de Trás da Sé, para Norte da
Capela de Nossa Senhora das Verdades (1) – Planta de Telles Ferreira de 1892
Ocupação dos prédios do troço da Rua de Trás da Sé mais a
Norte – Planta de Telles Ferreira de 1892
No fim da década de 30 do século passado, a área fronteira à
Sé, onde vivia sobretudo o povo, foi arrasada para dar outro enquadramento à catedral.
Vista aérea do casario fronteiro à Sé, antes das demolições
– Crédito a “Estrela Vermelha”
Sé e Paço Episcopal
com demolições já a decorrer para abertura do largo em frente à Sé
Em 1934, os
trabalhos de construção civil a decorrer na entrada da Sé
Em 1940, na Calçada
de Vandoma, junto da Galilé
A meio, a calçada de
Vandoma de acesso à Sé. À direita, o Solar dos Correia Montenegro (demolido
poucos anos depois)
Rua de Nossa senhora
de Agosto (1933), desaparecida com as demolições – Ed. Bomfim Barreiros (AHMP)
Demolições à entrada
da Calçada de Vandoma
As demolições
efectuadas na Sé com o objectivo de ganhar um largo
Após o arranjo
urbanístico acontecido em volta da catedral, a inauguração oficial do Terreiro
da Sé seria levada a cabo, a 7 de Junho de 1940, pelo Ministro das Obras
Públicas Duarte Pacheco, Presidente Comissão Administrativa da C.M.P., Mendes
Correia e outras individualidades.
Cerimónia de
inauguração da nova zona envolvente à Sé Catedral, que seria baptizada como
Terreiro D. Afonso Henriques e que, hoje, é o Terreiro da Sé
Na foto acima observa-se
a chegada das individualidades, subindo a Calçada de Vandoma, para procederem à
inauguração, que ficaria conhecida como o “Acto Medieval”, do novo Largo da Sé,
em 1940.
As casas que se veem
atrás da comitiva seriam, mais tarde, também demolidas, para abertura da
Avenida Afonso Henriques, de acesso ao tabuleiro superior da ponte Luíz I,
entre 1947 e 1949.
Inauguração do
Terreiro D. Afonso Henriques, hoje, Terreiro da Sé
Perspectiva obtida a
partir do Terreiro da Sé, em que se vêm a Torre dos Clérigos, a antiga Torre
dos Alões (a meio), a Câmara Municipal do Porto e o falso Pelourinho
Na foto anterior, a meio, no Largo da Sé, observa-se uma placa em pedra
invocando a reunião havida, em 1147, pelo bispo do Porto Pedro Pitões quando foi
encarregado pelo rei D. Afonso Henriques de receber uma frota de cruzados do
norte da Europa que tomavam parte da Segunda Cruzada. Aí, D. Pedro fez um
discurso aos cruzados para convencê-los a ajudar os portuenses a conquistar
Lisboa.
E, assim, na cidade
do Porto, se comemoraram, de uma vez só, dois centenários.
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