Sobre este período da história da cidade, não se vê melhor
forma de a dar a conhecer, que não seja pela divulgação na sua totalidade, do texto
que se segue da autoria de Hélder Pacheco, uma referência na interpretação da
história da cidade do Porto e que merece, pela sua excelência, ser divulgado.
"Esquadrinhando os meandros do que sucedeu no Porto no tempo
antes e depois da República, analisando os anos em que a mudança parecia
inevitável e o que sucedeu a seguir, é difícil não pensar em sequência. E, se
não continuidade, pelo menos transição para outra realidade que se prenunciava.
E não poderia ser de outra maneira. As cidades solidamente
ancoradas na tradição, ciosas da sua identidade e acostumadas à contradição e,
quando não, ao conflito entre estabilidade e transformação, não mudam o bilhete
de identidade tão depressa quanto pretendem os demiurgos das novidades
políticas. Não porque, como pensava o Príncipe de Lampedusa, no Porto pós-5 de
Outubro tudo ficasse na mesma, «apenas com uma insensível substituição de
classes», mas porque as mudanças dos costumes e mentalidade portuenses há muito
tinham começado a manifestar-se e a influir no quotidiano do Burgo.
Berço do liberalismo monárquico, cartista mas,
simultaneamente, setembrista e patuleia, estas aparentes contradições seriam,
afinal, imagem de marca de uma cidade ciosa dos pergaminhos democráticos,
conservadora quanto bastasse, mas, nos interstícios do seu jacobinismo,
receptiva à descontinuidade. Uma cidade profundamente católica, onde tinham
firmado raízes as igrejas protestantes (a que a influência inglesa não seria
estranha) e, não obstante a fidelidade ao fundo religioso secular, os
movimentos anticlericais se manifestavam intensamente. (Enquanto em 1909
desfilava solenemente, de S.ta Clara para S. Francisco, a
Procissão do Enterro – manifestação religiosa que constituía grande tradição do
Burgo – e, depois, a de Corpus Christi, em 26.4.1910, à entrada da Biblioteca
Pública, aquando da homenagem a Herculano, a multidão erguia vivas à Pátria, à
Liberdade e ao Povo Livre e gritando – Abaixo a reacção! Abaixo o
Clericalismo!)
Em 1911 realizar-se-iam, com grande imponência, as
cerimónias da Semana Santa, mas o Café Central (na Praça) seria praticamente
destruído, pelo facto de, devido à solenidade, o dono ter proibido os jogos de
dominó e bilhar! E se os comerciantes da Ribeira restabeleciam a festa da S.ª
da Boa Nova, sua padroeira, um mês antes, tinham sucedido motins populares, com
apedrejamento da Associação Católica, e o jornal católico “A Palavra” seria
assaltado e suspenso.
Por tal motivo, Bruno auto-suspenderia o “Jornal da Tarde”
«até que a normalidade legal» fosse restabelecida através de «providências
sérias e eficazes».
Em cidade atreita à estabilidade cara à sua classe média,
tais divergências iriam, em muitos aspectos, pautar as etapas da transição
entre os dois regimes. Como que procurando reencontrar o rumo ou reconstituir
os fragmentos de uma realidade em mutação, algumas personalidades
esforçar-se-iam pela consecução de políticas tendentes a revalorizar o ambiente
social e económico do Burgo. Refiro-me aos presidentes da Câmara da monarquia.
Entre 1900 e 1901, seria o portuense Venceslau de Lima, do Partido Regenerador,
deputado ligado à reforma da instrução, Par do Reino, Ministro e Presidente do
Conselho. Defendeu a obra do Porto de Leixões e a construção da via-férrea da
Alfândega. De 1902 a 1905, foi a vez do médico, administrador de empresas e
portuense, Sousa Avides (Regenerador). Estreme defensor dos interesses do Porto
no parlamento, deu atenção à reforma dos serviços, ao combate ao surto de
meningite e, particularmente, ao saneamento. Em 1905-06, outro Presidente, o
incansável portuense, João Baptista de Lima Jnr (do Partido Progressista),
comerciante e Presidente da ACP, deu importância ao abastecimento público,
lançando o novo projecto do Mercado do Anjo, o concurso para a exploração dos
transportes públicos e a instalação da luz eléctrica nas ruas. Geriu, como
pôde, as dificuldades financeiras do município.
A verdade é que o Porto tinha acumulado, na última década de
oitocentos, frustrações, derrotas e imponderáveis que abalariam a sua convicção
de cidade «Invicta» e «Eterna», de que se orgulhava, minando as bases da
confiança em que assentara a sua influência política, económica e social na
vida do país. Este ciclo, de que o Burgo tardaria a recompor-se (se alguma vez
o conseguiu), iniciar-se-ia com o 31 de Janeiro. Última revolução romântica
que, afinal, quase ninguém queria, nem sequer o Partido Republicano, excepto
sargentos, soldados, povo e alguns idealistas sustentando um movimento que,
embora vencido, abalaria as profundezas do país e levaria Severo Portela a
escrever: «O 31 de Janeiro do Porto, proclamou a República em Portugal nas
consciências, para que em 5 de Outubro, em Lisboa, ela fosse proclamada no
“Diário do Governo”.»
Mas o Burgo conheceria, no plano financeiro, outro 31 de
Janeiro: a Salamancada, negócio desastroso, envolvendo a banca e
inúmeros investidores, reunidos no Sindicato para a construção e exploração das
linhas de Salamanca, por Barca de Alva e Vilar Formoso.
A iniciativa levaria a certa euforia na afirmação da cidade
e dos seus anseios de internacionalização (Ruben A.: «falava-se em viajar, ir a
Paris no Sud Express, e o célebre Lino, da casa Lino junto aos
Lóios, afirmara que já contava 34 idas a Paris e uma a Lisboa. Saía por Barca
de Alva e directo esbarrava na Étoile»). O deficit acumulado
pelo projecto (contrariado pelos republicanos), apesar da intervenção
governamental, não evitaria grandes prejuízos financeiros e crise bancária da
praça do Porto, em 1893 (Fernando de Sousa: «O 31 de Janeiro constituiu no
domínio político o que a Salamancada representou no domínio económico: o fim de
um ciclo da história da cidade, iniciado em 1820.
A partir de então, o Porto deixaria de ter capacidade de
diálogo ou de réplica com Lisboa, que se transformaria, em definitivo, no único
pólo de decisão nacional.»)
Sobressaltos e dificuldades não ficariam, todavia, por aqui.
Em 1899, contra todas as probabilidades (até a honorável Academia de Ciências
de Paris demonstraria a sua perplexidade), o Porto seria assolado pela última
epidemia de peste bubónica na Europa. A doença, se no plano da sua propagação,
graças à tenacidade de Ricardo Jorge (o que lhe custou as iras de parte da
cidade), seria circunscrita a cerca de 200 mortos, teria consequências
importantes: por um lado, veio pôr a nu a gravíssima situação ao nível da
habitação popular, saneamento, abastecimento de água e tratamento dos lixos (o
Porto era, então, uma cidade «mortuária» ou «cemiterial»). Por outro lado,
talvez em tardio ajuste de contas com a ousadia do 31 de Janeiro, o pânico governamental
levaria a impor ao Burgo o famigerado cordão sanitário, cerco militar que,
durante meses, o isolou do país, precipitando a falência de indústrias, a ruína
de algum comércio, a miséria, o desemprego e o desespero de parte da população.
O Porto, que, na véspera de 31 de Janeiro, mantinha
invejável posição nos campos industrial e financeiro, era, portanto, na década
anterior à proclamação da República, uma cidade em dificuldade, vivendo certa
crise de afirmação política e, sobretudo, económica relativamente ao último
quartel do séc. XIX, quando a «opinião da Praça Nova» era temida pelo Terreiro
do Paço. E sobretudo porque – enquanto espaço de iniciativas cívicas – vivera
um conjunto de realizações susceptíveis, para a dimensão de uma cidade com 110
667 habitantes, em 1878, e 146 736, em 1890, de causar inveja à nossa
contemporaneidade. Assim, desde 1835, quando surgiu a Real Associação Portuense
dos Artistas de Pintura, Escultura e Arquitectura ou Amigos das Artes, 1855,
com o Oporto Cricket and Lawn-Tennis Club e 1851, com a Sociedade de Socorros
Mútuos dos Tipographos Portuenses, teria início a brilhante tradição
associativa cultural, desportiva e mutualista que, até 1910, viu surgir
centenas de colectividades naquele que constitui uma das marcas da identidade
portuense.
Este dinamismo não voltaria a conhecer a expansão do período
liberal-monárquico e os 16 anos da I República ficariam aquém da criatividade
recreativa e mutualista da fase anterior. Em contrapartida, no tempo da
ascensão dos «sports atléticos», o Burgo viu surgir algumas das mais
emblemáticas instituições desportivas: Académico F.C., S.C. Salgueiros, C.S.
Nun’Álvares, S.C. Cruz, S.C. Vasco da Gama, Ramaldense F.C., Estrela e
Vigorosa, C.D. Portugal e outros. A cidade convertia-se à nova realidade
emergente: além do foot-ball se afirmar como fenómeno popular,
ciclismo, remo, ténis, water-polo, natação, patinagem ocupavam os
lazeres de praticantes e assistentes.
Aspecto revelador do modo de ser reivindicativo na defesa
dos interesses portuenses, em que monárquicos e republicanos se empenhavam, é a
sequência de algumas acções. Assim, em 1906, um comício do Centro Regenerador
protestava violentamente contra o facto de o governo ter colocado a cidade em
estado de sítio com o desembarque de tropas em Campanhã, acusando-o de procurar
coarctar a liberdade de voto nos actos eleitorais a realizar. Participaram
políticos prestigiados como Lima Jnr, Sousa Avides, José Arroio, Campos
Henriques, etc. E, nas eleições municipais de Novembro deste ano, a cidade
protagonizaria uma experiência política invulgar, com o aparecimento do
“Movimento de cidadãos pela cidade”, encabeçado pelo PRP e reunindo todas as
facções políticas unidas «na vontade de colocar os interesses do Porto acima
das divergências partidárias». Desta coligação só ficariam de fora o partido do
governo de João Franco e o Nacionalista. Da lista de cidadãos, em evidente
demonstração de pragmatismo eleitoral, fariam parte António da Silva Cunha
(industrial da Fábrica Confiança), Tito Fontes, Nunes da Ponte e Cândido de
Pinho (médicos), Francisco Xavier Esteves (engenheiro) Germano Martins
(advogado), Alfredo Marinho (dos Marinhos, industriais), etc.
Alguns membros cimeiros do PRP e outros monárquicos.
O Manifesto Eleitoral é sintomático da determinação que
animava os mentores desta iniciativa: «A luta vai decidir-se entre a cidade e
um bando. Contra uma coligação híbrida e monstruosa, um povoado inteiro se
ergue. São cem mil almas afirmando um protesto; são cem mil bocas lançando o
mesmo clamor de execração (…) Os dinheiros da cidade é bem que somente à cidade
aproveita, para a desenvolver e embelezar. Que com a chegada às cadeiras da
Câmara da nova vereação, se inaugure um período de honrada administração, de
passo com atilado zelo pelas melhorias locais. (…) Que a vereação seja de
futuro a legítima e altiva representação da cidade, ciosa das suas regalias,
dando aos munícipes todo o apoio e falando aos governos a clara e forte
linguagem de quem não vive para cirrilhos, nem faz da Câmara celeiro próprio e
dos apaniguados. (…) A lista da cidade é, pelos homens que a constituem,
ilustres pela inteligência e actividade honrada, um penhor seguro de que
cumprirão a sua tarefa inteira.
Eleja-a o Porto. É o seu dever – e será o seu orgulho. E é
tempo. À urna pela Lista da Cidade. À urna pelo Porto».
A vitória seria retumbante batendo largamente os partidos
governamentais e nacionalistas.
No parlamento, João Arroio afirmaria: «O que sucedeu no
Porto, foi um golpe cruel na monarquia, que deve ter causado calafrios a todos
os que são derrotados e às instituições monárquicas».
A última Câmara em monarquia constituiria, portanto, cadinho
onde fermentariam algumas realizações em prol da cidade, que as administrações
republicanas viriam a empreender.
Quatro anos antes do 5 de Outubro, ideias e ideais do novo
regime empolgariam a política autárquica. Para a entendermos, basta consultar
as actas das Vereações.
Assim, em Janeiro de 1907, o Dr. Nunes da Ponte, abordando
questões de ensino, insurgia-se contra o facto de o Porto contribuir com 116
000$000 rs para o ensino primário, gastando 43 688$325, enquanto Lisboa,
contribuindo com 96 000$000 rs, gastava 177 000$000!
Em Fevereiro de 1907, outro vereador republicano, Xavier
Esteves, devido ao facto da Câmara não possuir condições financeiras para
construir bairros destinados a substituir as ignóbeis espeluncas do
Barredo e congéneres, proporia que se procurasse captar a participação dos
capitalistas portuenses – através de incentivos, prémios e facilidades – no sentido
de as empresas construírem casas para as «classes pobres». Após as campanhas
levadas a cabo no início do século XX, pelo “O Comércio do Porto”, desenhava-se
a preocupação municipal de intervir no problema que, há décadas, constituía
nódoa vergonhosa da cidade.
Pelo mesmo vereador, em Abril de 1907, seria apresentado na
Câmara o projecto para o novo Mercado do Bolhão, a construir pelo Município, e,
em Setembro, o Plano Geral de Melhoramentos, defendendo a «abertura urgente» de
3 grandes avenidas: Praça à Trindade, estendendo-se até ao Marquês, Lordelo ao
Castelo do Queijo, Hospital de Santo António à Boavista; a construção de
novo edifício para os Paços do Concelho, um novo cemitério (no Viso), um Parque
da Cidade (no local do actual) e um novo Mercado (seria, depois, o Bom
Sucesso), além de avenidas, radiantes e transversais em várias zonas (não
faltava visão, pensamento e audácia a esta Câmara única).
Em 6 de Março apoiado vivamente pelo público (que acorria às
reuniões) e outros Vereadores, Nunes da Ponte reivindicaria a autonomia do
Município, pelo facto de o Ministro da tutela ter negado autorização de
pagamento aos Fenianos da verba que lhes havia sido atribuído para a realização
dos festejos de Carnaval. Na sua intervenção, afirmaria: a Câmara tem
de se libertar da tutela, que só serve para entorpecer qualquer iniciativa,
pois como é sabido, nada se pode fazer sem a competente autorização do governo
(…). Há necessidade de que o Porto inicie uma campanha formal para se conseguir
a autonomia.
Duarte Leite (historiador ilustre e Primeiro-Ministro, em
1912) apoiaria, defendendo a necessidade de reclamar do Governo o direito da
Câmara do Porto à completa autonomia administrativa.
Aquele mesmo vereador, afirmaria noutra ocasião: O
Porto não apresenta progressos em harmonia com o número dos seus habitantes. Na
reclamação que o senhor Presidente propõe que se faça, não há partidos; há
apenas cidadãos que pugnam pelo progresso e engrandecimento da cidade. O
desassombro das posições na defesa dos ideais democráticos não seria, porém,
exclusivo republicano. Ainda em 1907, personalidades de grande prestígio no
campo monárquico, como o Conde de Samodães, Cunha Pimentel, Sousa Avides,
Wenceslau de Lima, Lima Jnr, etc., identificando-se como cidadãos do
Porto, representantes daqueles que combateram pelas conquistas liberais protestariam
«veementemente» contra a anunciada visita de João Franco à cidade.
Com Cândido de Pinho na presidência da Lista da Cidade, a
Câmara impulsionaria a obra, longamente ansiada, de saneamento do Burgo e
receberia «brilhantemente», segundo a imprensa da capital, o rei D. Manuel II
na sua visita ao Porto, em 1908. A coligação tremeu (mas não se dissolveu) face
aos protestos da minoria republicana da Vereação, que: respeitando os
sentimentos monárquicos dos seus colegas e a coerência dos seus princípios,
declara-se alheia a todos os actos colectivos desta corporação, realizados
durante a presença do Chefe de Estado (…), que possam significar o mais leve
aplauso a um regime que não se conforma com as suas aspirações patrióticas.
O Porto ia, entretanto, amadurecendo eleitoralmente a sua
opção política e, em 5.4.1908, realizar-se-iam as eleições para deputados. No
Círculo Oriental, a lista republicana (18 037 votos) venceu a concentração
monárquica (13 450 votos) de regeneradores, progressistas e um dissidente
destes.
No Círculo Ocidental venceu a lista monárquica (16 073
contra 13 168 votos). No conjunto da cidade, o PRP obteria a maioria dos votos.
A geografia eleitoral da cidade encontrava-se claramente polarizada em zonas
com bases sociais distintas: na oriental, densamente operária, do Bonfim,
Campanhã, S.to Ildefonso, os centros democráticos de instrução,
cultura e recreio levavam a cabo intensa campanha não só de agitação mas,
principalmente, de consciencialização e acção política. E mesmo no círculo
ocidental (tratando-se embora de eleições de sufrágio não universal,
restringindo substancialmente a capacidade electiva), nas freguesias de menor
incidência popular, os votos na lista republicana eram significativos.
Nos últimos cinco anos de regime monárquico, as iniciativas
republicanas foram contínuas: 1906 – a Comissão Municipal Republicana
congratula-se com a reabilitação do Capitão Dreyfus e homenageia Emile Zola,
seu defensor; é distribuído vigoroso panfleto com o título “Pelo Porto”, de
propaganda da “Lista da Cidade”; são enviados centenas de telegramas
protestando contra a expulsão do parlamento dos deputados republicanos Afonso
Costa e Alexandre Braga e realizam-se dois comícios de protesto pelo mesmo
facto; calcula-se que 20 000 pessoas aclamaram aqueles deputados expulsos na
sua chegada a S. Bento – a repressão policial é violenta com mortos e feridos;
a Comissão Municipal Republicana leva a efeito grande comício de repúdio pela
expulsão dos deputados e realiza-se grande manifestação de pesar – envolvendo
milhares de pessoas de todas as categorias sociais – durante o funeral de uma
vítima dos incidentes anteriores; inaugura-se o Centro Democrático de Instrução
Dr. José Falcão, bem como os Centros Republicanos Dr. Afonso Costa e Guerra
Junqueiro.
1907 – Inaugura-se o Centro Republicano Dr. Duarte Leite; é
nomeada a comissão instaladora do Centro Republicano do Porto e fundado o
Centro Republicano de Massarelos (com biblioteca e escola primária).
1908 – O PRP, em reunião pública, decide disputar as
eleições legislativas, apresentando como candidatos Guerra Junqueiro, Paulo
Falcão, Basílio Teles, Duarte Leite e outros; comício republicano no Bonfim; em
plena visita do soberano ao Porto (recebida por milhares de pessoas em Campanhã
e, durante um mês, homenageado e visitando as instituições portuenses), tem
lugar no Campo 24 de Agosto grande comício de propaganda republicana.
1909 – Inauguração do Clube Democrático Bernardino Machado;
comício no Salão da Auto-Motora; funda-se o Grémio Propagandista da Mocidade
Republicana do Bonfim; comício anticlerical, com milhares de pessoas, na
Travessa de Montebelo; abre o Centro Escolar Republicano Basílio Teles (Foz);
funda-se o Grupo Musical “Filhos da República”; a cavalaria da Guarda Municipal
e a Polícia dissolvem violentamente uma manifestação popular contra a execução
do republicano espanhol Francisco Ferrer (criador da Escola Moderna); grande
comício pelo mesmo motivo.
Em Fevereiro de 1909 sucederia o inimaginável: no Campo de
24 de Agosto teve lugar um grande comício de protesto contra a
vexatória tutela do poder central sobre os municípios do país, e, muito
especialmente, contra a insólita maneira como a mesma era exercida sobre a
Câmara do Porto.
Em Maio de 1909, a Câmara lançaria os concursos para os
projectos dos novos Matadouro Municipal (cuja municipalização estava no
horizonte) e do edifício dos CTT, em Entreparedes.
Além de tudo quanto nos revela a continuidade do pensamento
cívico do Burgo na transição para a República, ainda existe a imprensa.
Imagem de marca das liberdades democráticas por que o
liberalismo portuense se bateu, o aparecimento de publicações periódicas no
período entre os dois regimes é paradigmático da atitude das camadas mais
cultas e politizadas da sociedade tripeira.
Basta ver que em 1906 reaparece a Portugalia,
recolecção magnífica de materiais para o estudo do povo português, e surge
o Jornal do Porto, editado sob a égide dos partidos da concentração
liberal. E, depois, o Panorama, revista ilustrada de recreio e
cultura popular.
Em 1907 (ano da repressão da imprensa portuense pelo governo
de João Franco) publicam-se a Nova Silva (antecessora de A
Águia), O Radical, O Sorriso (literário
ilustrado) e A Voz do Povo (órgão do Partido Socialista) e
reaparece O Grito do Povo.
Em 1908, apareceriam: O Nacional (diário
regenerador-liberal), O Tripeiro (para «servir o Porto e os
seus legítimos interesses morais e espirituais»), O Riso, Correio
do Norte (defensor do trabalho nacional), Illustração Popular (semanário
da arte), O Azourrague (órgão dos estudantes
intransigentes), O Campeão Escolar (defensor dos interesses da
instrução e do professorado) e Agricultura Moderna.
De 1909 são: O Povo Portuguez, Nova
Lucta, O Porto («diário extra-partidário»), A
Defesa Operaria, O Libertador, O Typographo, O
Clarão, O Morcego («defensor dos interesses académicos»), A
Lyra, A Patria («jornal republicano»), Federação
Escolar(«instrucção e professorado») e reaparece o diário republicano O
Nacional.
Em 1910 surge: Apollon (mensário de
arte), Luta Operaria, República, Povo Livre(semanário
republicano), Gazeta Nacional («folha monárquica»), A
Alma, Distrito do Porto (órgão do Partido Regenerador), O
Mosquito (quinzenal literário), A Aurora, Correio
do Norte (órgão católico), O Lusitano, O Noticioso, O
Amigo dos Pobres («órgão dos que têm frio, fome e falta de
instrução»), A Plateia, A Tribuna e, bom será não
esquecer, o incomparável A Águia, que viria a tornar-se verdadeira
consciência crítica do novo regime.
Em cidade para a qual a imprensa parecia fazer parte da
matriz da sua modernidade, a partir de 1911, o ritmo editorial de natureza
política, recreativa, social, utilitária, profissional e, particularmente,
reivindicativa, seria incrementado pelas novas condições e mudanças em curso.
Surgem, por isso, O Esforço (jornal
académico), Correio de Portugal, A Scentelha, O
Gabirú, O Heroe, Os Malmequeres, A Gazeta
dos Correios, O Gráfico, A Lavoura, A Luz
do Porvir (defensor das classes trabalhadoras), A Pátria, A
Montanha (órgão das Comissões Paroquiais Republicanas) e A
Folha Nova (diário republicano).
De 1912 são: O Eco (órgão do Partido
Radical), Alma Lusa, Luz e Vida, A Verdade, A
Paz, A Liberdade, Diário do Porto, A
Comédia (quinzenário teatral), Madrugada, O Teatro, Alerta (do
grupo de defesa da República), O Porto Académico, Dionísios, O
Correio (semanário monárquico) e A Mulher Livre (órgão
da Mocidade Republicana Intransigente).
Em 1913, este movimento editorial ampliar-se-ia
(designadamente na sua feição republicana):
Gente Nova, A Manhã, A Mocidade, El
Eco Español, O Grilo («noticioso sem política»), Geração
Nova (quinzenário radical republicano), O Imparcial (semanário
republicano), O Diabo, O Eco, A Farça, O
Parolo, A Troça, Acção, O Amigo do Povo («folha
republicana anticlerical), A Canalha (órgão de propaganda
republicana), A Comuna (quinzenário anarquista), O
Correio (semanário monárquico), O Imparcial (semanário
republicano), O Norte (semanário monárquico), A Ordem (semanário
católico) e A Verdade (semanário republicano).
E, então, a República. Desta vez não saída da tropa e do
povo nas ruas, como em 31 de Janeiro, mas vinda através do telégrafo, em 6 de
Outubro. Com a Lista da Cidade na governação camarária, a transição política
foi imediata.
Às 3 h 45 m, o notável portuense, José Nunes da Ponte faria,
da varanda da Câmara (de que seria designado Presidente), a proclamação
oficial, dizendo: O povo do Porto, que há mais de duas dezenas de anos
derramou o seu sangue generoso pela conquista dessa aspiração grandiosa, não
pode deixar de felicitar-se e rejubilar com o conhecimento desse facto notável
que vem marcar na história luminosa do nosso País uma época de regeneração e de
prosperidade que há muito constituía a mais nobre ambição de todos os
verdadeiros portugueses. É, pois, cidadãos, com o coração a transbordar de
alegria que eu tenho neste momento a insigne honra de, na qualidade de vereador
mais velho da Câmara Municipal do Porto, proclamar dos paços do Concelho a
República Portuguesa (…). Significativamente, em termos de continuidade da
gestão municipal, o executivo manter-se-ia em funções após o 5 de Outubro,
incluindo o próprio presidente, Cândido de Pinho, como vereador.
Talvez por isso, o ano de 1911 seria, na administração da
cidade, um período de realizações, lançamento de projectos e acções
demonstrativas de outro entendimento da organização da vida urbana. Não admira.
Tratava-se de pensar republicanamente em termos cívicos,
sociais e urbanísticos, com a responsabilidade de levar à prática os ideais até
aí apresentados como alternativa. E uma das decisões emblemáticas do novo poder
seria o modo de aplicação no Porto do Decreto do Governo Provisório, de
12.10.1910, que, no seu art.º 2.º, consignava: As municipalidades
poderão, dentro da área dos respectivos concelhos, considerar feriado um dia
por ano, escolhendo-o de entre os que representem as festas tradicionais e
características do município. E determinava-se que as
autoridades locais, cumprissem e fizessem cumprir e guardar o que o Decreto
continha.
Ante as divisões no seio do executivo (já presidido pelo
Eng.º Francisco Xavier Esteves, Presidente da A.I.P., gestor da Sociedade de
Electricidade do Norte, da C.ª de Cimentos Tejo e Director dos C.F.º da Beira
Alta, introdutor do betão armado no país, como material da construção e autor
do projecto da Livraria Lello), em Sessão de 19.1.1911, o vereador, médico e
portuense emérito, Dr. Souza Júnior, propôs, inspirado n’um alto
principio democratico, que não devia a Comissão Administrativa do Municipio
deliberar nada sem que o povo do Porto, por qualquer forma, se pronunciasse em
tal assumpto.
Seria o JN a dar conteúdo prático a tal proposta, através de
um referendo, junto da população.
A votação foi renhida entre o dia de S. João e o 1.º de
Maio, até que o santo precursor se distanciou, sendo aprovado o resultado, em
reunião camarária de 2.3.1911, com alguma controvérsia entre renovadores /
liberais (que aprovariam S. João) e republicanos ortodoxos (que preferiam uma
festa civilista), seguida de acesa discussão. No acto, Xavier Esteves afirmaria
não dever a Câmara contrariar a maioria da cidade que tinha
plebiscitado aquela data, expressa em 6 565 votos a favor, contra 3 076 do
1.º de Maio e 1975, do 8 de Dezembro. O Porto seria, assim – ao que se sabe -,
a primeira cidade a escolher, por referendo, o seu feriado municipal.
A acção política seria, ao longo de 1911, ininterrupta com a
inauguração do Centro Republicano e Escolas de Nevogilde; fundação da União
Republicana; comemoração, com grande cortejo e representação maciça das
colectividades, do 20.º aniversário do 31 de Janeiro (o mesmo sucederia nos
anos seguintes); constituição de uma Federação dos Hospitais para
melhorar as condições de assistência médica; grandiosos festejos
comemorando a abertura da I Constituinte (enquanto as relações com a Igreja se
deterioravam, culminando com o afastamento do Bispo D. António Barroso, no dia
da festa, os sinos de quase todas as igrejas repicaram alegremente); actos de
regozijo perante a eleição do 1.º Presidente da República; vibrantes
manifestações populares, na Baixa, contra as incursões monárquicas na fronteira
Norte; festejos populares comemorando a implantação da República; grande
cortejo cívico para o lançamento da 1.ª pedra do Monumento ao Triunfo da
República (85 metros de altura, em cimento, a construir na Praça do mesmo nome,
jamais teria concretização); inauguração do novo Centro Democrático; eleição de
10 deputados republicanos (e 1 socialista) nas concorridas eleições para a
Constituinte. (Toque do fait-divers que também faz parte das
cidades: um dos mais populares cabarets do Burgo seria o
Café-Restaurante “República” onde, em Abril de 1911, se estreou a «estonteante»
Concepcion Dávila, “La Bella Assucena”, bailarina e cançonetista sevilhana que
«endoudou» a boémia portuense.)
Ainda em 1911, no plano social, destacaram-se algumas
iniciativas: a Liga Vegetariana cria um curso para crianças pobres dos dois
sexos; a Liga de Educação Nova inaugura um curso grátis de instrução primária
para adultos; funda-se a Cozinha do Povo, na Carvalhosa, para fornecer, a
preços módicos, refeições às famílias pobres da «rica» freguesia de Cedofeita.
Em 1912, seria inaugurada a Cantina Escolar para as crianças
pobres, bem como as Escolas criadas pelo Centro Republicano da freguesia da
Vitória, e abririam as aulas da Universidade Popular, iniciativa da “Renascença
Portuguesa”, então fundada como base estruturante cívica e ideológica do novo
regime. O ano seria também de intensa agitação e conspiração monárquica, com
incursões a Norte, movimentações de tropas, prisões de implicados na
contra-revolução, manifestações e desordens protestando contra as acções de
subversão do regime, motins anticatólicos, etc.
Mas apesar de, em muitos aspectos, a situação social e
política ser de instabilidade e de se tornar previsível a confrontação entre o
novo poder e o movimento operário (em 1911 houve incidentes provocados por
empregados da Companhia das Águas; greve geral selvagem dos transportes
públicos, que duraria 25 dias; confrontações entre as autoridades policiais e
comícios anarquistas contra a carestia de vida, comícios de protesto contra os
especuladores, etc.), a administração republicana encetaria intensa actividade
de combate aos grandes problemas da cidade.
1911 seria, ainda aqui, exemplar quanto à atitude da Câmara
face a questões até então ignoradas ou subavaliadas. Começaria por incumbir o
Director de Saúde de proceder ao levantamento das condições de salubridade das
Ilhas do Porto e apresentar o respectivo Relatório. (Todos sabiam – mas fingiam
não saber – que a situação era calamitosa. Um artigo de “O Século” revelava a
existência de habitações com menos de 3m3 por habitante e em
que o ar-ambiente continha micro-organismos em quantidade 3 vezes superior aos
esgotos de Paris.)
Um mês depois, face ao Relatório, a Câmara discutiu a
possibilidade de edificar casas económicas em número que permitisse acabar com
as ilhas. A estimativa orçamental de um milhão de escudos revelar-se-ia
incompatível com a capacidade financeira existente. Para planificar e executar
o seu plano de desenvolvimento, a Câmara – retomando a tradição da Junta de
Obras Públicas dos Almadas – criaria a Junta Autónoma das Obras Públicas,
destinada a promover o progresso urbano da cidade (de imediato
seria decidido iniciar a construção da Avenida marginal Porto-Foz e prolongar a
Rua de S. Lázaro até à de S.to António – uma e outra ficaram em
projecto…).
Mas a acção do Município será mais alargada e reveladora de
uma consciência cívica inovadora e politicamente pragmática. Era, de facto,
gente a equacionar de outra maneira as necessidades do Burgo.
Em Fevereiro de 1914 seria nomeada uma comissão Câmara /
Carris para estudar as bases da municipalização dos transportes públicos. Em
Março, a Câmara deliberou demolir os muros dos cemitérios que separavam
defuntos católicos e não-católicos. Em Junho era iniciada grande campanha
contra as moscas (agentes da tuberculose, febre tifóide, cólera e diarreia
infantil – que dizimavam a população mais carenciada), distribuindo 10 000
impressos informativos e insecticidas.
Em reunião da Vereação, o Presidente da Câmara defenderia a
anexação de Matosinhos pelo Porto, tendo em vista a gestão e o desenvolvimento
do Porto de Leixões. Depois, para atenuar a crise do abastecimento da cidade,
que provocava agitação preocupante, a Câmara importaria 1 000 cascos de azeite
para abastecimento público. E, mais notável ainda, os 40 maiores contribuintes
da cidade aceitariam, por unanimidade, emprestar 250 contos à edilidade para a
construção do (que seria) moderníssimo, à alemã, Matadouro da Corujeira.
De qualquer forma, cedo viriam à superfície as contradições
que iriam pronunciar-se entre as aspirações da cidade e as políticas estatais.
1912 seria marcado por fortes movimentos de contestação, face ao aparente
esquecimento a que pareciam votados os interesses portuenses por parte do
Governo e do Parlamento.
E a prova de que as queixas eram transversais, as acções
desencadeadas conheceriam enorme adesão, desde as associações patronais, às
forças políticas e à população em geral.
Em 13 de agosto de 1911 o grupo de Defesa da República dera
o tom às manifestações, organizando, na Praça da Alegria, grande comício para
discutir os problemas essenciais que interessavam ao Porto. Todavia, no mesmo
ano, dois tiques centralistas viriam à superfície. Em 30 de Maio, os
respectivos alunos protestariam contra a transferência da Escola de
Telegrafistas para Lisboa. E, em Agosto, a Sociedade Nacional de Belas Artes
metia-se na vida dos republicanos tripeiros, protestando junto do Governo
contra o projecto do monumento que a C.M.P. pretendia erguer ao triunfo da
República, considerando-o uma ofensa que se pretende infligir à arte
portuguesa, através de uma torre de carácter inteiramente
industrial (significativamente, os sectores mais conservadores da
cidade afinariam pelo mesmo diapasão, pois, no cortejo carnavalesco, o
Presidente da Câmara seria apelidado como «Homem do jimento armado»,
em alegoria num carro puxado por um jumento carregando a representação do
monumento, insinuando as ligações do Eng.º Xavier Esteves à indústria
cimenteira).
Exultando embora com a criação da Universidade, e conhecendo
inegável processo de crescimento (ou talvez por isso) quando, pelo Censo de
1911, atingiu 193 312 hab., representando, desde 1900, um aumento de 2 600
hab./ano, o Porto ansiava por outros voos, além de ter de arrumar a casa,
através da resolução de problemas herdados por arrastamento.
Era o caso da situação dos «Expostos»: em Fevereiro de 1912,
as autoridades decidiriam intervir junto do Governo no sentido da transferência
de 113 crianças abandonadas no Hospício dos Expostos para novas instalações nas
Águas Férreas, devido ao estado de ruína do pardieiro onde se
encontravam. Em Maio, inúmeras entidades, públicas e privadas, protestam
contra o enervante desinteresse com que Parlamento e Governo vinham
tratando muitas reclamações do Porto. Tal acção foi protagonizada pelas
principais associações económicas, autoridades civis e Câmara.
E, tal como sucedera nos tempos da Outra Senhora,
seria avançada a criação do Partido “Legião dos Cidadãos do Porto”, sob
cuja bandeira todos os portuenses, fossem quais fossem as suas opiniões
políticas, deveriam reunir-se e iniciar uma luta sem tréguas contra aqueles
que, no galarem do poder, tão ostensiva e continuadamente vinham ferindo os
seculares direitos, os legítimos interesses e as mais justificadas aspirações
do Porto.
Facto exemplar: o Partido Republicano deliberou
solidarizar-se com tal movimento. O Poder deve ter percebido os sinais da
cidade. Três dias passados, o Presidente do Conselho (Augusto de Vasconcelos,
que viria a ser substituído pelo portuense Duarte Leite) informava o Governador
Civil que, perante o descontentamento da cidade, o executivo determinara a
imediata discussão parlamentar de projectos de lei dirigidos ao progresso do
Porto – designadamente as expropriações necessárias à realização de grandes
empreendimentos urbanísticos projectados pelo Município.
No dia seguinte, as «forças vivas» do Burgo realizariam
imponente manifestação de apoio à Câmara e ao Deputado Silva Cunha, pela forma
como defendiam os interesses e direitos do Porto. Na realidade, os
acontecimentos eram sintomáticos do crescente mal-estar perante o impasse na
concretização de uma das bandeiras do ideário republicano agitadas contra o
espírito centralizador do Código Monárquico de 1896. Começava a tornar-se
evidente que as condições políticas e sócio-económicas inviabilizavam quer a
autonomia do Poder Local, quer a própria descentralização administrativa e,
contrariamente, às expectativas, desenhava-se, com contornos cada vez mais
nítidos, a centralização dos poderes político, económico e financeiro.
Das eleições de 1913 – as primeiras conforme a Constituição
da I República – sairia a Câmara que, presidida pelo industrial Henrique
Pereira de Oliveira e tendo vereadores notáveis como Eduardo Santos Silva e
Elísio de Melo, lançaria um conjunto de iniciativas passando à prática as
ideias de um projecto republicano para a cidade. Projecto que mudaria a face do
Burgo, no seu tecido urbano e social, através da adopção de medidas cujo
alcance – se tivessem sido plenamente concretizadas – transformaria por
completo a vida portuense, regenerando áreas há muito depauperadas – casos da
saúde pública, instrução e habitação.
A Câmara (concretizando as implicações do Decreto de
29.3.1911, que reorganizava os serviços de Instrução Primária) tornar-se-ia
precursora no lançamento dos ensinos infantil e primário, públicos, aprovando a
criação de 90 escolas (46 masculinas e 44 femininas) triplicando o parque
escolar da cidade nessas áreas. Além disso, no sentido de promover a
instrução das classes trabalhadoras, seriam instituídos ou alargados cursos
nocturnos de educação pré-escolar e criada uma rede concelhia de bibliotecas populares.
Com Eduardo Santos Silva como mentor do plano, o Município,
em colaboração com as Juntas de Paróquia, organizaria um sistema de assistência
a crianças pobres, criando cantinas escolares em todas as freguesias e
abrangendo as escolas na distribuição de refeições.
A actividade camarária – já considerável, relativamente às
carências pressentidas numa cidade onde, em 1910, no primeiro ano de vida
morriam cerca de 25% das crianças recém-nascidas – não cessava.
Visando melhorar as condições das camadas populares, seria
proposta a criação de “Junta de Assistência à Mulher e à Criança”, e elaborado
um plano de municipalização da assistência infantil, englobando lactários,
creches e escolas junto das fábricas. Seriam também criadas escolas para
deficientes, organizados cursos de aperfeiçoamento e instalada uma Biblioteca
Pedagógica para professores. Foram ainda cedidos terrenos (na Carvalhosa) para
a construção da Escola de Farmácia e um edifício para a instalação da Secção
Feminina do Liceu do Porto, além de se procurar solução para edificar o Liceu
da Zona Oriental.
Pela primeira vez, o Porto tinha à frente da Câmara cidadãos
que assumiam a dimensão social da política numa cidade em que parte
significativa da população vivia em condições quase sub-humanas (o óbice para a
prossecução de tais desígnios seria a falta de verbas que, a partir de 1913, se
agudizaria com a crise financeira, a instabilidade e a sabotagem económica das
vésperas da I Guerra Mundial).
A calamitosa situação habitacional do Burgo (onde, em 1899,
30% da população vivia em ilhas) já suscitara o aparecimento dos primeiros
bairros destinados à população de fracos recursos, por iniciativa do “Comércio
do Porto” (1899/1905), em parceria com a C.M.P.
As preocupações republicanas com o problema levariam à
promulgação, em 1918, do Decreto 4137, regulamentando a construção de habitação
operária. Mas até aí o Porto se anteciparia, pois, de forma pioneira, o
Município tentaria enfrentar aquela tragédia cívica, construindo, entre 1915 e
1919, quatro Colónias Operárias, com 191 alojamentos (Estêvão de Vasconcelos,
Antero de Quental, Viterbo de Campos e Manuel Laranjeira), ainda hoje
recomendáveis, além, ao que se pensa, do Bairro do Mercado (na Foz).
As intenções sociais da Câmara seriam também visíveis em
pormenores como a adopção (aclamada na Vereação) de 8 horas de trabalho diário
para operários e empregados do Município, e a institucionalização do 1.º de
Maio como feriado para os mesmos.
Ou ainda na extinção (16.1.1914) da tradicionalíssima “Feira
dos Moços” (na Corujeira), por «afrontosa à Civilização» (antes, escrevia Gomes
de Amorim: «O mercado dos escravos brancos tanto existe no Brasil para os
jovens emigrantes portugueses, como existe em Portugal, para os órfãos,
expostos, filhos de gente pobre, que nas “feiras dos moços”, semanal ou
mensalmente (…), são leiloados ou entregues a quem os solicitar.»).
Faltava, porém, a cereja no topo do bolo: a modernização
urbanística. Seria a oportunidade de Elísio de Melo fazer aprovar o seu Plano
de Melhoramentos para a Baixa do Porto, que incluía o arrasamento do almadino
Bairro do Laranjal para a construção da Avenida Central e suas derivantes, além
do novo edifício dos Paços do Concelho.
Iniciadas com a 2.ª Câmara presidida por Pereira de
Oliveira, em 1915, as obras deste «centro cívico» transformariam, completa e
radicalmente, o coração da urbe. E com gente que sonhava alto, via largo e
pensava grande, em Abril de 14 seria apresentado o projecto do novo Mercado do
Bolhão mais amplo, mais asseado e mais decente, logo aprovado e
iniciado de modo tal que em 1915 receberia os primeiros lojistas.
Mas, apesar deste afã renovador, nem tudo eram rosas,
especialmente no referente àquilo que o Porto e os portuenses tinham combatido
e a que sempre se mostraram particularmente sensíveis: o centralismo do Poder.
Em matéria assistencial, por exemplo, com poucas excepções atravessam parte do
século XIX as queixas quanto às diferenças de tratamento governamental,
relativamente a Lisboa. Além de outras reivindicações, a cidade reclamara
longamente a criação de um Hospital de Alienados (eram enviados para
tratamento, na capital, a expensas da Santa Casa) e teve de o construir sem
apoio estatal. O mesmo se passava com uma instituição destinada ao tratamento
da tuberculose (de que o Porto possuía das taxas mais altas de mortalidade na
Europa). Teria de o construir à sua custa. E, ainda, para o tratamento de
crianças, etc., etc. O Relatório da SCMP, de 1878, é incisivo: se vamos
contando os benefícios que esta Santa Casa recebe e tem recebido dos Governos,
não esqueçamos este (a recusa do Hospital de Rilhafoles, único
nacional, de receber os doentes do Norte); a humanidade que lhes
agradeça.
Além do mais, outra antiga reivindicação do Burgo era a
construção de um segundo Hospital, dadas as enormes insuficiências
assistenciais por, devido ao aumento da população e carências sociais
crescentes, a lotação do Hospital da Misericórdia ser insuficiente para as
necessidades do Porto e a região por ele servida. Debalde. Nenhum governo da
monarquia daria resposta à situação hospitalar da cidade – há muito
identificada. A mudança de regime reavivou a esperança, sobretudo quando, na
Câmara dos Deputados, em sessão de 26.6.1912, foi discutido o projecto de lei
n.º 269, com o seguinte articulado: art.º 1.º É criado na cidade do
Porto um hospital de policlínica para tratamento de duzentos enfermos, pelo
menos, e ensino dos alunos da Fac. De Medicina – denominado Hospital da Cidade.
art.º 2.º O referido hospital começará a edificar-se dentro do prazo de três
meses, a contar da aprovação deste projecto de lei, sendo o local para
edificação escolhido pela Câmara Municipal (…) O projecto foi aprovado
na presença do Presidente do Ministério, o portuense Duarte Leite. Em
28.6.1914, o Decreto seria retomado e, através de Lei 269, novamente aprovado
no Parlamento. Demorou 40 anos a ser concretizado!
A transferência de verbas e os subsídios do Estado ao
hospital da cidade constituíam outro contencioso há muito mantido com o Poder.
Apesar das expectativas, nada se alteraria – bem pelo contrário – a avaliar
pela crítica constante do Relatório de 1913, da SCMP: Na lei orçamental
do Ministério do Interior para 1912-1913 foi incluido um subsídio anual de
6:000$ para o Hospital de Santo António, que de facto o recebeu em duodécimos
de 500$00.
No orçamento do referido Ministério de 1913-1914 foi
votado êsse mesmo subsídio, mas com a obrigação de a Misericórdia pagar
5:400$00 aos assistentes da Faculdade de Medicina, ficando livres apenas
600$00. A Santa Casa recusou-se a tomar semelhante encargo e hoje recebe
sómente para o Hospital de Santo António a esmola do Govêrno de 50$00 mensais!
Deve notar-se que o Govêrno fez isto precisamente no momento em que era
autorizado pela lei de 1 de Julho de 1913 a contrair um empréstimo de
3.000:000$00 destinado: à construção do Manicómio Bombarda e de uma Maternidade
em Lisboa; à construção de um Hospital de Alienados em Coimbra; e a auxiliar a
remodelação e alargamento dos serviços do Hospital de S. Marcos, de Braga. Só a
êste último Hospital deu o Govêrno 300:000$00; ao passo que regateou ao
Hospital de Santo António os míseros 6:000$00 que lhe concedia, recebendo dêle
serviços valiosíssimos!
Sim, porque no Hospital de Santo António interna a
polícia do Pôrto mais de 1:200 doentes por ano, e numa enfermaria recebe as
meretrizes, serviço êste que pertence à polícia sanitária; mantem na cadeia da
Relação duas enfermarias, uma para homens e outra para mulheres, destinadas a
receber os presos enfermos, serviço êste que devia ser pago pelo Estado;
fornece gratuitamente medicamentos para o Aljube e para os dois Juízos de
Investigação Criminal, e dá, finalmente, à Faculdade de Medicina 296 leitos
para o ensino dos seus alunos, o que representa para o Hospital um grande
encargo.
Pois bem! Em paga de tudo isto o Govêrno suprimiu ao
Hospital de Santo António o triste subsídio que lhe dava! Mas ainda podia ser
pior; salvou-se a esmolinha de 50$00 mensais! É esta a gratidão do Govêrno para
com a Misericórdia do Pôrto, que vem fazendo quási toda a assistência
hospitalar do norte do país, há mais de quatrocentos anos
Poderosas razões tinha a cidade para se sentir frustrada.
Ainda assim, o elan republicano não esmoreceria, tendo o
Partido Democrático vencido, no Porto, as eleições municipais e legislativas de
1913, 15, 19, 21, 22 e 25. E ainda viria a revolta de 3 de Fevereiro de 1927,
contra a Ditadura Militar (em que, mais uma vez, o Burgo ficou sozinho). Não
questionando o regime, os portuenses pretendiam, simplesmente, o seu
aprofundamento no sentido de encontrar respostas para os problemas e aspirações
da urbe. Na coerência de alguns valores – talvez em vias de se tornarem
arqueologia política – como liberdade, democracia, república, muito tem
resistido esta cidade!
(De qualquer forma nada melhor do que exaltar a realidade
contando a história exemplar do Sr. Apolinário José Lino, morador na ilha da
Rua do Príncipe, n.º 542, latoeiro de profissão.
Designando-se a si próprio como «cidadão libaral», com outros
conspirou secretamente e, para o que, desse e viesse, escondia em casa uma
espingarda.
No dia 6 de Outubro de 1910, pegou na arma e foi postar-se à
porta do Banco de Portugal, em S. Domingos, «para guardar o dinheiro da
República».
Morreu novo e pobre e a viúva recusou uma pensão que os
correligionários lhe quiseram atribuir, «porque o marido não fez mais do que a
sua obrigação»)."
Com a devida vénia a Hélder Pacheco
Com a devida vénia a Hélder Pacheco
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